Estado e violência urbana: Danos individuais e danos coletivos?

AutorFelipe Braga Netto
Páginas303-331
ESTADO E VIOLÊNCIA URBANA: DANOS
INDIVIDUAIS E DANOS COLETIVOS?
Felipe Braga Netto
Doutor em Direito pela Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro. Mestre em
Direito pela Universidade Federal de Pernambuco. Membro do Ministério Público
Federal (Procurador da República). Procurador Regional Eleitoral de Minas Gerais
(2010/2012) Professor de Direito Civil e Direito do Consumidor da Escola Superior
Dom Helder Câmara (2003/2018). Professor de Teoria Geral do Direito, Direito
Civil e Direito do Consumidor da Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais
(2002/2006). Professor da Escola Superior do Ministério Público da União. É autor dos
seguintes livros: Teoria dos ilícitos civis (3ª edição), Manual de Direito do Consumidor à
luz da jurisprudência do STJ (13ª edição), Manual da Responsabilidade Civil do Estado
(4ª edição) e coautor do Manual de Direito Civil Volume Único (3ª edição), do Novo
Tratado de Responsabilidade Civil (3ª edição), do Curso de Direito Civil Responsabi-
lidade civil (5ª edição), entre outros. Publicou capítulos de livros em 31 obras coletivas.
e-mail: felipepeixotobraga@gmail.com. Site: felipebraganetto.com.br
Sumário: 1. Novas chaves de leitura: sempre resistimos ao novo? – 2. Em busca de novos níveis
de eciência da atividade estatal? – 3. A escada histórica da responsabilidade civil: diálogos
com o tema da violência urbana – 4. A segurança como tarefa fundamental do Estado: a teoria
dos deveres de proteção – 5. Mudando a direção do olhar: buscando novas dimensões de
análise – 6. Referências bibliográcas.
1. NOVAS CHAVES DE LEITURA: SEMPRE RESISTIMOS AO NOVO?
Se vivemos numa sociedade marcada pela instantaneidade na transmissão das
informações, vivemos também numa sociedade de risco. Marcada por perigos va-
riados e constantes. A própria percepção dos riscos – e nossos temores – é bastante
diversa daquela dos nossos antepassados. Sem falar que o direito dos nossos dias,
de índole difusa, não opera na lógica mais – pelo menos não exclusivamente – na
esfera do um-contra-um. Aliás, não são apenas os indivíduos que merecem proteção
jurídica, mas as coletividades, a comunidade humana.1 Seja como for, há pouco (de
original) a dizer sobre a violência. Qualquer criança, diante de poucas horas em
frente à televisão, será apresentada à triste realidade em que vivemos. Vivemos num
mundo violento, essa é a dura verdade. Violência de múltiplas formas, não raro gra-
tuita, progressivamente banal. Há algum tempo os jornais noticiaram um inusitado
caso que ilustra bem essa banalização: uma universitária, estagiária de determinada
empresa, contratou bandidos para matar colegas de trabalho e assim “abrir espaços”
na corporação, para que ela pudesse trabalhar mais próxima do chefe...
1. EDELMAN, Bernard. La personne en danger. Paris: PUF, 1999, p. 528.
DANO MORAL.indb 293 20/03/2019 11:41:21
FELIPE BRAGA NETTO
294
A respeito do tema as perguntas são muitas – e a cada uma delas, outras surgem,
ou podem surgir.
Hoje a situação pode ser resumida da seguinte forma: o dever de prestar segurança
pública é do Estado. Mas, Estado, não se preocupe – poderíamos dizer. Trata-se de um
dever puramente retórico, um dever fraco. Talvez nem fraco, um dever inexistente,
um dever que, se descumprido, não traz consequência alguma, não muda nada para
ninguém. Exagero? Não. Pelo menos não em termos de responsabilidade civil do
Estado, no que diz respeito à violência urbana. Há, é verdade, aqui e ali, exceções
na jurisprudência, mas são ainda apenas isso: exceções. O lugar comum teórico não
aceita que o Estado responda por esses danos, e não parece disposto sequer a discutir
a questão com seriedade.
Por aí vemos que, de modo explícito ou velado, transferimos deveres – ou certos
ônus – de uns para outros. O ônus da segurança pública foi transferido aos cidadãos.
Isso já faz parte do nosso dia a dia através de seguros, quase sempre relativos a bens
patrimoniais (sobretudo veículos). Mas esse é um ônus possivelmente razoável,
próprio da vida social. O que não nos parece razoável nem proporcional, no entanto,
é passar aos cidadãos o ônus da segurança pública que falhou, quando essa falha foi
traduzida em danos gravíssimos para certos cidadãos – mortes ou sequelas físicas
permanentes, por exemplo.
Mas o Estado não pode ser o segurador universal, não pode responder por tudo
– alguém rebaterá. De fato, não pode. É preciso que criemos, socialmente, f‌iltros.
Precisamos estabelecer meios e formas para que apenas casos graves, com vítimas
vulneráveis, e singularmente desproporcionais tenham espaço num ambiente de
recursos escassos. Juridicamente, acreditamos, já dispomos de elementos normati-
vo-conceituais para impor a responsabilidade estatal até de modo mais amplo. Mas
a funcionalidade dos conceitos – e até, para quem preferir, a análise econômica do
direito (que absolutamente não será tratada neste artigo) – sugerem que tenhamos
um olhar mais amplo. E esse olhar mais amplo recomenda que partamos, na matéria,
para dar um passo além, mas esse passo deve ser dado com prudência e responsabi-
lidade social.
Lembremos que nas relações de consumo os riscos da atividade correm por
conta do fornecedor de serviços. São nulas, nesse sentido, as cláusulas contratuais
que transferem ao consumidor esse risco. Embora em campo obviamente distinto,
convém indagar se a postura hermenêutica que empurra para o cidadão – e apenas
para ele – os riscos dos danos sofridos em razão da violência urbana, e claramente
conectados com uma segurança pública reconhecidamente def‌iciente (para dizer o
mínimo), é algo que está de acordo com nossa democracia constitucional, e com a
leitura atual que fazemos dos direitos fundamentais.2
2. Rodotà já houvera percebido que o dano, considerado em si mesmo, não é ressarcível ou irressarcível. Será
a posterior ligação a um sujeito determinado que irá torná-lo ressarcível (RODOTÀ, Stefano. Il problema
della responsabilità civile. Milano: Giuffrè, 1967, p. 74).
DANO MORAL.indb 294 20/03/2019 11:41:21

Para continuar a ler

PEÇA SUA AVALIAÇÃO

VLEX uses login cookies to provide you with a better browsing experience. If you click on 'Accept' or continue browsing this site we consider that you accept our cookie policy. ACCEPT