Direito ao esquecimento e a transexualidade: como proteger uma privacidade fluída no reino das liberdades?

AutorJúlia Costa de Oliveira
Ocupação do AutorMestre em Direito Civil pela UERJ. Advogada
Páginas171-198
DIREITO AO ESQUECIMENTO
E A TRANSEXUALIDADE:
COMO PROTEGER UMA PRIVACIDADE FLUÍDA
NO REINO DAS LIBERDADES?
Júlia Costa de Oliveira
Mestre em Direito Civil pela UERJ. Advogada.
Sumário: 1. Introdução. 2. Breves linhas sobre a liberdade de expressão na realidade brasilei-
ra. 3. Privacidade: perspectiva histórica e evolução conceitual. 4. Direito ao Esquecimento.
4.1 Panorama nacional. 4.2 Conito com as liberdades comunicativas. 4.2.1 Argumentos
pró-liberdades comunicativas. 4.2.2 Argumentos pró-direito ao esquecimento. 4.3 Direito
ao Esquecimento e a transexualidade. 5. Síntese Conclusiva.
1. INTRODUÇÃO
As profundas transformações sociais decorrentes dos avanços tecnológicos e a
consequente ressignif‌icação de institutos tradicionais como a privacidade costumam
render muitas ref‌lexões nos âmbitos sociológicos e f‌ilosóf‌icos. Além de se dedicarem a
desvendar o que provoca fenômenos como o da “liquefação”1 da sociedade, os f‌ilósofos
e sociólogos se preocupam em entender os novos padrões de comportamento e antever
sua inf‌luência no futuro.
Essas questões também chegam à esfera jurídica, que precisa se adaptar e, ao mesmo
tempo, conformar os novos hábitos ao ordenamento vigente. De um lado, há a necessidade
de adaptação, uma vez que as novas tecnologias criam, muitas vezes, situações inéditas,
até então desconsideradas pelo Direito e que passam a demandar tutela jurídica. Por
outro, torna-se igualmente necessário assegurar que as inovações não criem uma nova
ordem legal, e sim se adequem àquela existente: embora seja um espaço de liberdade, a
internet não é e nem pode ser um universo sem lei.2
É interessante notar que, com a liquidez que inunda o mundo atual, alguns valores se
tornam surpreendentemente f‌luidos, como a vida íntima, e outros extremamente rígidos,
a exemplo da liberdade de expressão. Fato é que, no decorrer da história, a sociedade
brasileira, assim como tantas outras ao redor do mundo, padeceu dos males paradoxais
de insuf‌iciências e excessos. Por cerca de 20 anos, viveu-se sob o regime opressivo e
1. Atribui-se Zygmunt Bauman a noção de modernidade ou sociedade líquida. BAUMAN, Zygmunt. Modernidade
Líquida. Trad. Plínio Dentzien. Rio de Janeiro, Zahar, 2001.
2. V. posicionamento do Min. Herman Benjamin no REsp. 1.117.633/RO, 2ª T., Rel. Min. Herman Benjamin, j.
09.03.2010.
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JÚLIA COSTA DE OLIVEIRA
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autoritário da ditadura militar, cujas ferramentas de controle social incluíam o uso da
força e a restrição à livre circulação da informação. Já na modernidade líquida, vive-se
a ditadura da superexposição, em que o controle social é exercido de forma sutil, pela
(falsa) sensação de liberdade irrestrita e enxurrada de informações.
Para (sobre)viver, há quem adote um comportamento conforme e aqueles que,
contrariamente, optam pelo caminho da resistência. Ainda que pouco (e cada vez me-
nos) usual, existem pessoas que se opõe à espetacularização da vida nas redes e que
buscam uma rotina off-line, não com o intuito de se calar, mas apenas de não publici-
zar suas opiniões e experiências. Não basta, porém, adotar uma postura reservada e
esperar que as mídias e as massas afastem de mim esses gadgets. A exposição pode não
ser uma escolha, e sim uma imposição – por vezes até legítima – em nome da proteção
de valores e interesses que se sobrepõem, no caso concreto, aos direitos à vida íntima,
à imagem e à honra.
Há hipóteses, porém, em que a proteção da esfera íntima assume relevância (ainda)
maior, sendo necessário empregar os instrumentos adequados para garanti-la. Exemplo
disso são as informações pessoais das pessoas trans, cuja divulgação pode comprometer
signif‌icativamente o tão buscado – e merecido – reconhecimento da identidade de gênero
auto percebida. Para que isso seja assegurado, é interessante pensar sobre outra questão
bastante atual, a saber, o direito ao esquecimento, e como ele pode ser útil para esse f‌im.
Através de discussões sobre noções atualizadas do direito à privacidade e da liberdade
de expressão, este artigo pretende abordar a temática do direito ao esquecimento e tra-
tar, especialmente, de sua possível implementação como instrumento de tutela do livre
desenvolvimento da identidade das pessoas trans.
2. BREVES LINHAS SOBRE A LIBERDADE DE EXPRESSÃO NA REALIDADE
BRASILEIRA
Para melhor compreensão do papel desempenhado pela liberdade de expressão
no ordenamento pátrio, é essencial entender, primeiro, o caminho por ela percorrido, o
qual explica, em grande parte, sua amplíssima proteção e, na mesma medida, a grande
reprovabilidade de medidas ou comportamentos repressores.
O Brasil é uma democracia ainda jovem. Ao longo do século XX, nosso país pas-
sou por diversos períodos autoritários, o último dos quais perdurou por mais de 20
anos e se caracterizou pela repressão e arbitrariedade. A retomada democrática se dá
pela promulgação, em 1988, de uma nova Constituição Federal (“CF/88”), voltada à
promoção de uma ordem jurídica justa, solidária, livre e pluralista. Esses e os demais
valores constitucionais orientam-se, todos, pelo princípio supremo da dignidade da
pessoa humana, que reclama o abandono dos abusos passados para criação de uma
nova realidade.
A censura foi um dos produtos mais trágicos dos regimes autoritários passados.
Por conta disso, o novo ordenamento tomou como uma de suas principais missões
instrumentalizar o combate veemente a essa ferramenta antidemocrática. Para tanto,
diversos dispositivos constitucionais voltaram-se ao reconhecimento e garantia das
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