O regime jurídico da responsabilidade civil nos ensaios clínicos no ordenamento luso-brasileiro

AutorPaula Moura Francesconi de Lemos Pereira
Ocupação do AutorDoutora e mestre em Direito Civil pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ)
Páginas113-137
O REGIME JURÍDICO DA RESPONSABILIDADE
CIVIL NOS ENSAIOS CLÍNICOS NO
ORDENAMENTO LUSO-BRASILEIRO
Paula Moura Francesconi de Lemos Pereira
Doutora e mestre em Direito Civil pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ).
Pós-graduada em Advocacia Pública pela CEPED-UERJ. Pós-graduada em Direito da
Medicina pelo Centro de Direito Biomédico da Universidade de Coimbra. Professora
da PUC-Rio e da Pós-Graduação Lato Sensu do Centro de Estudos e Pesquisas no
Ensino de Direito (CEPED-UERJ). Membro do IBDCivil, IBIOS, do IBDCont e IBERC,
da Comissão de Direito Civil e de Órfãos e Sucessões da OAB/RJ. Advogada. E-mail:
paula@francesconilemos.com.br.
Sumário: 1. Introdução. 2. Ensaios clínicos no ordenamento luso-brasileiro. 2.1 Ensaios
clínicos no ordenamento jurídico português. 2.2 Ensaios clínicos no ordenamento jurídico
brasileiro. 3. O regime jurídico da responsabilidade civil nos ensaios clínicos no ordenamento
brasileiro. 4. Considerações nais.
1. INTRODUÇÃO
Em janeiro de 2016, foi noticiado em Portugal, na França e em diversos países o
acidente que culminou com a morte e lesões graves em jovens franceses saudáveis, que
participaram, mediante remuneração, de ensaio clínico para teste de uma nova molécula
(BIA 10-2474 – inibidor da enzima FAAH) com a f‌inalidade de tratar problemas motores
ligados às doenças neurodegenerativas, de humor e de ansiedade. O estudo foi patroci-
nado pelo laboratório português Bial e realizado em um centro de pesquisa na França.1
Esse fato trouxe à discussão as repercussões de certos acidentes no campo da respon-
sabilidade civil envolvendo ensaios clínicos. Como reparar as vítimas do evento danoso?
No Brasil, por não existir lei regulando2 essa atividade, como ocorre em Portugal, dá
ensejo a várias indagações acerca do instituto da responsabilidade civil, tais como: (i)
quais as normas que regulam os ensaios clínicos?; (ii) aplica-se o Código de Defesa do
Consumidor ou a lei civil?; (iii) qual seria o regime de responsabilidade civil aplicável
(objetiva, subjetiva)?; (iv) quem seriam os agentes responsáveis pelo evento danoso?;
(v) seria possível aplicar as excludentes de responsabilidade? e (vi) deve haver seguro?
1. CAMPOS, Alexandra; BORJA-SANTOS, Romana. É da portuguesa Bial o medicamento que deixou um homem
em morte cerebral em França. Público, 15 jan. 2016. Disponível em: [https://www.publico.pt/mundo/noticia/
doente-em-morte-cerebral-apos-ensaio-clinico-em-franca-1720299]. Acesso em: 09.01.2017.
2. Está em tramitação na Câmara dos Deputados, Projeto 7.082/2017, que “Dispõe sobre a pesquisa clínica com seres
humanos e institui o Sistema Nacional de Ética em Pesquisa Clínica com Seres Humanos.”, recentemente aprovado
pela Comissão de Ciência e Tecnologia, Comunicação e Informática, com emendas. Disponível em: [http://www.
camara.gov.br/proposicoesWeb/f‌ichadetramitacao?idProposicao=2125189]. Acesso em: 26.04.2018.
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PAULA MOURA FRANCESCONI DE LEMOS PEREIRA
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A def‌inição de ensaio clínico3 pode ser extraída da Organização Mundial da Saúde:
“qualquer pesquisa que seleciona prospectivamente participantes humanos, indivíduos
ou grupos de pessoas, para participarem de intervenções relacionadas à saúde humana
para avaliar efeitos e resultados na saúde”.
As pesquisas clínicas com novos medicamentos envolvendo seres humanos é de
grande relevo científ‌ico e social. O desenvolvimento de novos medicamentos benef‌icia
os enfermos, previne, atenua ou debela uma série de doenças, problemas físicos ou psí-
quicos, além de propiciar bem-estar à saúde. Praticamente todas as pessoas no mundo
necessitam de medicamentos. Todavia, ao lado do progresso científ‌ico está a necessidade
de garantir a proteção da pessoa humana – do participante de pesquisa, cujo interesse
merecedor de tutela deve se sobrepor a qualquer outro.
Os ensaios clínicos têm ganhado maior socialização e notoriedade em razão de avan-
ços biotecnológicos, do aumento da procura por novas curas, da busca por tratamentos
experimentais, seja por medicamentos ainda em pesquisa, seja por aqueles ainda não
aprovados no país. No Brasil tem crescido o número de demandas para fornecimento pelo
Estado,4 planos e seguros de saúde de medicamentos experimentais,5 gerando grande
debate, até mesmo para proteção da própria pessoa.
3. Nos termos do artigo 6º, XXII, da Resolução RDC 9/2015 da ANVISA, ensaios clínicos são pesquisas conduzidas
“com o objetivo de descobrir ou conf‌irmar os efeitos clínicos e/ou farmacológicos e/ou qualquer outro efeito
farmacodinâmico do medicamento experimental e/ou identif‌icar qualquer reação adversa ao medicamento
experimental e/ou estudar a absorção, distribuição, metabolismo e excreção do medicamento experimental para
verif‌icar sua segurança e/ou ef‌icácia.” BRASIL. Agência Nacional de Vigilância Sanitária. Resolução da Diretoria
Colegiada – RDC 9, de 20 de fevereiro de 2015. Dispõe sobre o Regulamento para a realização de ensaios clínicos
com medicamentos no Brasil. Diário Of‌icial da União: seção 1, Brasília, DF, n. 41, p. 69, 03.03.2015.
A lei portuguesa, Lei 21/2014, de 16 de abril, def‌ine ensaio clínico ou ensaio como “qualquer investigação con-
duzida no ser humano, destinada a descobrir ou a verif‌icar os efeitos clínicos, farmacológicos ou outros efeitos
farmacodinâmicos de um ou mais medicamentos experimentais, ou a identif‌icar os efeitos indesejáveis de um ou
mais medicamentos experimentais, ou a analisar a absorção, a distribuição, o metabolismo e a eliminação de um
ou mais medicamentos experimentais, a f‌im de apurar a respetiva segurança ou ef‌icácia;” (artigo 2º, alínea “n”).
Disponível em: [http://www.pgdlisboa.pt/leis/lei_mostra_articulado.php?nid=2089&tabela=leis]. Acesso em:
02.01.2020.
4. “Decisão: O Tribunal, apreciando o tema 500 da repercussão geral, deu parcial provimento ao recurso extraor-
dinário, nos termos do voto do Ministro Roberto Barroso, Redator para o acórdão, vencidos os Ministros Marco
Aurélio (Relator) e Dias Toffoli (Presidente). Em seguida, por maioria, f‌ixou-se a seguinte tese: “1. O Estado não
pode ser obrigado a fornecer medicamentos experimentais. 2. A ausência de registro na ANVISA impede, como
regra geral, o fornecimento de medicamento por decisão judicial. 3. É possível, excepcionalmente, a concessão
judicial de medicamento sem registro sanitário, em caso de mora irrazoável da ANVISA em apreciar o pedido
(prazo superior ao previsto na Lei 13.411/2016), quando preenchidos três requisitos: (i) a existência de pedido
de registro do medicamento no Brasil (salvo no caso de medicamentos órfãos para doenças raras e ultrarraras);(ii)
a existência de registro do medicamento em renomadas agências de regulação no exterior; e (iii) a inexistência
de substituto terapêutico com registro no Brasil. 4. As ações que demandem fornecimento de medicamentos sem
registro na ANVISA deverão necessariamente ser propostas em face da União, vencido o Ministro Marco Aurélio.
Ausente, justif‌icadamente, o Ministro Celso de Mello”. BRASIL, Supremo Tribunal Federal, RE 657718, Relator
Marco Aurélio, Brasília, 22 mai. 2019.
5. Recurso especial. Rito dos recursos especiais repetitivos. Plano de saúde. Controvérsia acerca da obrigatoriedade
de fornecimento de medicamento não registrado pela ANVISA. [...] 2.2. É legítima a recusa da operadora de
plano de saúde em custear medicamento importado, não nacionalizado, sem o devido registro pela ANVISA, em
atenção ao disposto no art. 10, V, da Lei 9.656/98, sob pena de afronta aos arts. 66 da Lei 6.360/76 e 10, V, da Lei
6.437/76. Incidência da Recomendação 31/2010 do CNJ e dos Enunciados 6 e 26, ambos da I Jornada de Direito
da Saúde, respectivamente, A determinação judicial de fornecimento de fármacos deve evitar os medicamentos
ainda não registrados na Anvisa, ou em fase experimental, ressalvadas as exceções expressamente previstas em
lei; e, É lícita a exclusão de cobertura de produto, tecnologia e medicamento importado não nacionalizado, bem
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