Empresa, o Trabalho e o Direito que o Regula

AutorEduardo Pragmácio Filho
Páginas81-106

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Até aqui, foram vistas algumas lições fundamentais para se construir o esboço de uma teoria da empresa para o direito do trabalho brasileiro. Além da noção celetista de empresa, foram abordadas várias teorias econômicas (custos de transação, agenciamento, nexo de contratos e direitos de propriedade), a teoria do risco empresarial, e, por fim, a teoria de Asquini. Esse cabedal teórico é o ponto de partida.

Agora, é preciso contextualizar o próprio trabalho na atualidade, que se organiza para além de uma concepção tradicional (um único empregador, com um típico contrato, com tempo indeterminado, no mesmo espaço físico), para, em contraponto, indicar pelo menos dois exemplos do que se chama ambiente de trabalho “fissurado” (mais de um ente exercendo as funções de empregador, com contratos atípicos): (i) as cadeias de abastecimento; e (ii) as franquias.

Há uma desconexão entre o velho direito e o novo trabalho.

O ambiente de trabalho “fissurado” e a emergência de múltiplas organizações do trabalho

David Weil (2014) trouxe uma importante reflexão em seu livro The fissured workplace77. Inicialmente, apresenta algumas vinhetas dos atuais ambientes

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de trabalho, dentre elas, a de uma camareira que trabalha no Hotel Marriot, localizado no passeio do famoso Cais de São Francisco (Califórnia). O hotel é de propriedade de uma imobiliária hoteleira chamada Host Hotels and Resorts Inc. A camareira recebe, diariamente, avaliação e supervisão, além de ter suas horas de trabalho gerenciadas na folha de pagamento pela Crestline Hotels and Resorts Inc., uma companhia de gerenciamento de hotéis. A camareira segue diariamente as ordens e os procedimentos padrões para limpeza, arrumação e qualidade ditados pelo Marriot, cujo nome, além de estar estampado no fardamento da camareira, o proprietário do hotel (Host Hotels) usa e exibe na fachada.

Em outros tempos, diz Weil (2014, p. 2), o Marriot teria empregado diretamente a camareira. Mas isso não é o que acontece hoje. Por outro lado, grandes companhias, como o Marriot, passaram a investir em construir marcas (branding) e consumidores devotados, como pilares da estratégia de seus negócios. E, com isso, também, espalharam o seu saber e seus padrões às pessoas responsáveis em prover seus produtos e serviços.

Note-se: o Marriot é (também) uma marca e um padrão de excelência; o hotel californiano, em verdade, não pertence ao Marriot, mas à imobiliária Host Hotels. Por sua vez, à Crestline Hotels, cabe o gerenciamento da folha de pagamento e a supervisão do trabalho da camareira. No entanto, para o hóspede, para o consumidor, essa transformação, essa “fissura” nos alicerces do ambiente de trabalho é invisível. O que ele vê na fachada do prédio, na farda dos funcionários e na roupa de cama do hotel é o nome Marriot. E é nele em quem o consumidor confia.

Weil (2014, p. 7) entende que o antigo alicerce rígido do ambiente de trabalho está “fissurado”, rachado. A relação clara, bilateral, bem definida, de empregador e empregado, está “fissurada”, rachada. As tarefas básicas de uma relação de emprego, como contratar, avaliar, remunerar, fiscalizar, dirigir, agora são resultado de múltiplas organizações.

As grandes empresas, segundo Weil (2014, p. 8), continuam entregando valores (values) para seus consumidores e investidores, no entanto, não empregam mais (diretamente) uma legião de trabalhadores para fazerem seus produtos e serviços, ao contrário, delegam a uma rede de empresas menores esta tarefa. Uma das consequências imediatas dessa mudança é o pagamento de salários e benefícios menores, tornando o trabalho, em princípio, mais precário.

Várias são as causas do “fissuramento” do ambiente de trabalho. Dentre elas, citemos o desejo de alterar as responsabilidades e os custos trabalhistas para entes menores e terceiros, evitando custos previdenciários, tributários e relacionados à responsabilidade civil e de saúde e segurança do trabalho. Estas transformações não ocorrem somente por motivos perniciosos, decorrem,

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também, por outro lado, por conta do desenvolvimento tecnológico, para se focar no core busines, deixando de lado tarefas menos importantes e que podem ser passadas para terceiros, operando sob padrões e monitoramento rigorosos (WEIL, 2014, p. 10).

Assim, três estratégias integradas estão subjacentes ao fissuramento do ambiente de trabalho da empresa, segundo Weil (2014, p. 11): (i) focar nas receitas e no core business; (ii) terceirizar, espalhar o trabalho, para diminuir custos; e (iii) criar padrões para manter a qualidade e impor custos.

A primeira das estratégias, focar no core business, leva a empresa a direcionar toda sua atenção àquelas atividades que mais agregam valor, como o design de produtos, a inovação e a qualidade, isto é, desenvolverá as marcas, como o Marriot fez no exemplo acima, e irá fortalecer a fidelização dos consumidores, por meio de publicidade e branding. Então, atividades fora desse escopo serão terceirizadas.

A segunda estratégia, a terceirização, é delegar tarefas menos importantes, de menor valor agregado. Com isso, diminui-se o custo da mão de obra, porque serão pagos menores salários e benefícios, uma vez que a produção (manufatura) ou outras tarefas menos relevantes serão transmitidas a terceiros que têm menor capacidade de prover melhores salários e benefícios.

A terceira e última estratégia é criar e impor padrões de qualidade e de custos. Esta estratégia decorre da segunda, a terceirização, pois delegar a outras pessoas boa parte das tarefas e da produção é colocar em risco toda a operação. Por isso, a grande empresa cria padrões (standards) claros, explícitos, detalhados, que devem ser seguidos à risca, do que fazer e de como fazer, com qualidade. Mas criar os padrões não é suficiente. É preciso impôlos e monitorálos, sobretudo com as ferramentas tecnológicas e de telemática, impor também uma tabela de custos da produção e de serviços, além de fortes sanções em caso de descumprimento do seguimento desses padrões.

Então, empresas criam, impõem e monitoram padrões, usam autêntico poder, mas geram um falso distanciamento das organizações subalternas (terceirizadas) quando se trata das obrigações da relação de emprego (WEIL, 2014, p. 14).

Por isso, Weil (2014, p. 15) alerta para o fato de que focar nas principais competências e nos benefícios da especialização, por meio de uma produção organizada de forma flexível, pode levar ao desenvolvimento de novos e melhores produtos e serviços a menores preços, mas a reorganização também pode trazer reais consequências sociais se o negócio for empreendido sem considerar os custos e as consequências de suas ações.

A primeira dessas consequências sociais é enfraquecer o cumprimento de padrões mínimos de proteção trabalhista. Grandes empresas, na maioria dos

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casos, sempre pagaram salários maiores do que o mínimo legal e sempre deram mais benefícios do que a lei garante. O “fissuramento” altera esses incentivos, quando delega o trabalho para organizações menores que tendem sempre a diminuir custos e pagar menos pela força de trabalho.

A segunda é o fato de que, ao se dividir o trabalho em várias partes e para terceiros, provocam-se externalidades, isto é, efeitos colaterais em pessoas que não participaram do ato decisório (como empregados, consumidores e até a população local), o que pode resultar acidentes, lesões e fatalidades. Fragmentar e fissurar necessita de coordenação, e quando ausente ou falha, ocorrem acidentes, como de fato aconteceu no trágico evento do desabamento do edifício Rana Plaza, em Bangladesh78, no qual mais de 1.100 pessoas morreram.

A terceira consequência é a (nova) divisão do “bolo” gerado pelo excedente da atividade da empresa, sua margem, gerando impactos nos consumidores (com menores preços), nos investidores (com melhores retornos) e nos trabalhadores (menores salários), isto é, redistribuindo a riqueza mais aos investidores e menos aos trabalhadores.

Tudo isso põe em xeque os limites e as fronteiras da responsabilidade do empregador. Às vezes, o empregador é só nominado empregador. No exemplo dado há pouco, o hotel californiano, a camareira segue os padrões e as atividades normatizadas pelo Marriot, as ordens diretas do dono do hotel (imobiliária Host Hotel) e recebe salários e fiscalização da Crestline. O direito do trabalho não pode ignorar as relações de poder existentes entre as organizações, do topo ao fundo da cadeia (WEIL, 2014, p. 21).

O modo como se organiza esse “trabalho fissurado” pode ocorrer, por exemplo, por meio de franquias, de subcontratação e de cadeias de abastecimento (supply chains).

O que se defende, aqui, nesta tese, para os casos de franquia e de cadeias de abastecimento, é que se deve identificar, observar e rastrear o poder de organizar a atividade empresarial, partindo da noção de custo de transação. Uma transação pode ser feita no mercado ou na empresa, dependendo do seu custo (procurar, barganhar, monitorar etc.). Nos ambientes fissurados, por causa da tecnologia da informação, a transação que aparentemente está se fazendo no mercado, em verdade, está ocorrendo na mesma empresa, porque está sob a mesma autoridade, sob o mesmo poder, embora disfarçada de empresas diferentes.

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Não há, de fato, o custo de transação no mercado a que se referiu Coase. Para ele, os principais custos de uma transação no mercado são (i) descobrir com quem se deseja fazer a transação; (ii) informar às pessoas que se quer fazer a transação e em quais termos; (iii) conduzir as negociações dos termos do contrato; (iv) redigir esse contrato; e (v) fiscalizar a...

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