Fim da Vida Humana : A fronteira entre o direito e o dever

AutorErnesto Lippmann e Denise Souza de Queiroz
Páginas233-263
CAPÍTULO 7
FIM DA VIDA HUMANA:
A FRONTEIRA ENTRE O DIREITO E O DEVER
Ernesto Lippmann
Advogado, foi professor do curso de Direito da PUC/SP e consultor jurídico do
Conselho Regional de Medicina do Estado de São Paulo. Atualmente é membro da
Comissão de Biotecnologia e Biodireito da OAB/SP. O texto contou com a revisão da
estagiária Esther Éles.
Denise Souza de Queiroz
Graduada pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo – PUC/SP. Advogada.
A ideia de que a medicina é uma luta contra a morte está errada.
A medicina é uma luta pela vida boa, da qual a medicina faz parte.
Rubem Alves
Sumário: 7.1. Introdução – 7.2. A problemática em torno do direito de morrer dignamente:
o caso do cientista australiano de 104 que viajou para Suíça para morrer – 7.3. Direito à vida
e seus direitos conexos; 7.3.1. Prolongamento articial da vida; 7.3.2. Direito à vida e seus
contrapontos: o direito à dignidade – 7.4. Papel do testamento vital para garantir a dignidade
– 7.5. A redação do testamento vital; 7.5.1. O testador e seus procuradores; 7.5.2. A revogação
do testamento vital – 7.6. Reconhecimento jurídico do testamento vital e a bioética – 7.7. O
avanço do direito de morrer – 7.8. Conclusões – 7.9. Referências Bibliográcas
7.1. INTRODUÇÃO
N. tem 84 anos, sofre de Alzheimer e tem diabetes. Embora não contate adequa-
damente, todos sabem quando ele sofre. Está sendo alimentado por sonda e está há
mais de um mês na UTI. Ele está “contido”, ou seja, tem seus braços e pés amarrados,
sem poder se movimentar, pois tentou arrancar os tubos de soro e alimentação. Em
face das complicações da diabete, em breve deverá ter seu pé amputado. N. Sofre
uma parada cardíaca. O médico deve decidir pela reanimação?
Embora N. não tenha feito um testamento vital, pois era uma pessoa simples,
sendo encarregado de uma garagem depois de ter sido motorista durante muitos
anos, sempre deixou claro para seus familiares que não queria sofrer antes de morrer.
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Seus f‌ilhos não querem que o pai continue sofrendo. Não há qualquer prognóstico
de cura, ou mesmo de uma melhor qualidade de vida que possa ser propiciada pela
equipe médica. Eles sofrem ao ver o pai amarrado na cama, enquanto as enfermeiras
se revezam para fazer punções e outros exames invasivos, enquanto ele f‌ica balbucian-
do algumas palavras, como “casa”, sinalizando que ele deseja ir para sua residência.
Nesse caso e em tantos outros, a vida é um direito ou um dever? Justif‌ica-se uma
série de tratamentos médicos para prolongar a vida, em estado terminal, daquele que
sofre? A maioria das pessoas tem medo de uma morte sofrida, num ambiente hospi-
talar. Até que ponto o Ordenamento Jurídico e a bioética permitem e recomendam
esse prolongamento? O que o paciente e sua família podem fazer para fazer valer a
sua vontade?
Quando a vida deixa de ser um direito, ela deve se transformar em dever? So-
mos obrigados a mantê-la, mesmo contra a nossa vontade, em especial nos casos de
prognóstico de terminalidade? Como f‌ica a questão do direito à dignidade do ser
humano? Qual o valor que deve prevalecer? E se um paciente considerar uma con-
dição de vida pior do que a morte?
Af‌inal, a vida é um direito ou um dever? Como fazemos para assegurar que ela
seja um direito? Este é o tema deste capítulo, no qual iremos analisar tais questões sob
o prisma da bioética e mostrar como fazer valer o nosso direito a uma morte digna, e
de recusarmos um tratamento cujo grau de risco e sofrimento seja desproporcional
ao que acreditamos como razoável, bem como a forma de exercer esse direito através
do testamento vital.
Nesse sentido, relativamente ao direito à vida, e a possibilidade de abdicação
desse direito, o Professor Roberto Dias assevera:
A expressão “inviolabilidade do direito à vida”, consagrada constitucionalmente, não indica que
a vida é um dever para consigo mesmo e para com os outros, tampouco pode ser entendida como
um direito absoluto, indisponível e irrenunciável. Nos termos da Constituição, a “inviolabilidade”
de tal direito signica que ele não tem conteúdo econômico-patrimonial e, mais do que isso,
ninguém pode ser privado dele arbitrariamente. Nesse sentido é que ele deve ser entendido como
indisponível: ninguém pode dispor da vida de outrem. “A inviolabilidade da vida tem que ver com
terceiros, cuja ação contra a vida alheia é coibida, mas não se pode ler o texto constitucional de
forma a proibir que qualquer pessoa decida sobre a duração de sua vida”.1
7.2. A PROBLEMÁTICA EM TORNO DO DIREITO DE MORRER DIGNAMENTE:
O CASO DO CIENTISTA AUSTRALIANO DE 104 QUE VIAJOU PARA SUÍÇA
PARA MORRER
É possível que a maioria dos leitores já tenha assistido a série estadunidense cha-
mada House, M.D, em que o Dr. Gregory House (interpretado pelo ator Hugh Laurie),
1. DIAS, Roberto. O Direito Fundamental à Morte Digna – Uma Visão Constitucional da Eutanásia. Belo Hori-
zonte: Fórum, 2012, p. 122-123.
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