Isonomia e capacidade contributiva perante a regressividade do sistema tributário

AutorEduardo Sabbag
Páginas107-138
ISONOMIA E CAPACIDADE CONTRIBUTIVA
PERANTE A REGRESSIVIDADE
DO SISTEMA TRIBUTÁRIO
Eduardo Sabbag
Sumário: 1. A igualdade: considerações iniciais – 2. A isonomia tributária – 3. A capacidade
contributiva: a equidade e a tributação justa; 3.1 A capacidade contributiva e o mínimo vital;
3.2 A capacidade contributiva e seu plano histórico; 3.3 A capacidade contributiva na Carta
Magna de 1988; 3.3.1 A capacidade contributiva e a exclusiva associação a impostos; 3.3.2 A
capacidade contributiva e a expressão “sempre que possível”; 3.3.3 Impostos diretos e indiretos:
conceito e classicação; 3.3.4 A capacidade contributiva e a progressividade; 3.3.5 A capacidade
contributiva e a proporcionalidade; 3.3.5.1 A proporcionalidade e a regressividade no sistema
tributário brasileiro; 3.3.6 A capacidade contributiva e a seletividade – Conclusão – Referências.
1. A IGUALDADE: CONSIDERAÇÕES INICIAIS
A regra da igualdade (ou da isonomia) consiste senão em aquinhoar igual-
mente aos iguais e desigualmente aos desiguais, na medida em que se desigualam.
Tal armação originou-se do sábio ensinamento de Duguit, que, reproduzindo
o pensamento de Aristóteles, permitiu que a clássica ideia da igualdade relativa
fosse divulgada a nós por Ruy Barbosa.1
A relativização da igualdade obsta que se trate com desigualização aqueles
considerados “iguais”, ou, ainda, que se oferte um linear tratamento isonômico
àqueles tidos como “dessemelhantes”, sob pena de se veicular uma condenável
desigualdade no lugar de uma aconselhável isonomia. Sendo assim, quando o
tratamento diferenciado, dispensado pelas normas jurídicas, guarda relação de
pertinência lógica com a razão diferencial (motivo da atitude discriminatória),
não há que se falar em afronta ao princípio de isonomia. Por outro lado, a adoção
de um dado fator de discriminação, sem qualquer correspondência com a lógica
racional de diferenciação, colocará em xeque a almejada ideia de igualdade.
Entre nós, o princípio da isonomia foi prescrito, de forma genérica, no caput
do art. 5º do texto constitucional, nos seguintes termos:
1. BARBOSA, Ruy. Oração aos moços. São Paulo: [s.e.] Arcádia, 1944, p. 10-11.
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Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasi-
leiros e aos estrangeiros residentes no país a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à
igualdade, à segurança e à propriedade (...).
É de fácil constatação a insigne posição ocupada pelo princípio da isonomia
considerado “sobreprincípio” para Paulo de Barros Carvalho2 –, em comparação
com outros princípios e normas constitucionais.3
A ordem constitucional doméstica prevê que o princípio da igualdade,
ocupando destacado lugar na enumeração de tais garantias individuais, a saber,
o próprio caput do art. 5º, regerá todos os outros direitos que a ele sucedam.4
No plano doutrinário, surgem duas faces ou dimensões da igualdade: a
igualdade perante a lei e a igualdade na lei (através da lei). Note-as:
A igualdade perante a lei mostra-se na substituição do governo dos homens
pelo governo das leis, aproximando-se a isonomia do princípio da legalidade.5
Aqui a igualdade, em uma lógica estritamente formal, serve como imperativo de
hipoteticidade da norma jurídica.6 Na igualdade perante a lei, vericar-se-á tão
somente se a lei está sendo cumprida, no plano formal, de maneira uniforme para
todos os cidadãos a que se dirige.
A igualdade na lei (ou por intermédio da lei), por sua vez, é uma diferente di-
mensão da isonomia, que se volta ao legislador, a m de que este institua a norma
com respeito ao imperativo corrente de que os iguais deverão ser igualmente tratados,
enquanto os desiguais, na medida de suas dessemelhanças, deverão ser desigualmente
tratados. Vale dizer que esta dimensão da igualdade mostra-se como cláusula geral de
proibição do arbítrio, obstaculizando ao legislador a adoção de critérios casuísticos
e opções políticas no tratamento normativo das situações equivalentes, que o levem
a promover discriminações gratuitas e articiais. A propósito, o legislador será cha-
mado a enfrentar a legitimidade dos critérios adotados, com base na razoabilidade.
Sendo assim, o Estado, diante de diferenças reais, pode se abrir à discriminação,
desde que essa seja razoável, ou seja, mostre-se como racionalmente tolerável.
Aliás, o eminente constitucionalista José Joaquim Gomes Canotilho,7 quando
se refere ao indigitado princípio da isonomia, explora-o à luz da retrocitada proi-
2. CARVALHO, Paulo de Barros. O princípio da anterioridade em matéria tributária. Revista de Direito
Tributário. São Paulo: Malheiros, n. 63, [s.d.], p. 104.-
3. V. BORGES, José Souto Maior. Princípio da isonomia e sua signicação na Constituição de 1988. Revista
de Direito Público, São Paulo, n. 93, ano 23, jan./mar. 1990, p. 34.
4. V. CAMPOS, Francisco. Direito constitucional. Rio de Janeiro: Freitas Bastos, 1956, v. 2, p. 12.
5. V. CANOTILHO, José Joaquim Gomes. Constituição dirigente e vinculação do legislador. Coimbra:
Coimbra, 1994, p. 381.
6. V. MACHADO, Hugo de Brito. Os princípios jurídicos da tributação na Constituição de 1988, 5. ed., p. 63.
7. V. CANOTILHO, José Joaquim Gomes. Direito constitucional e teoria da Constituição. 3. ed. Coimbra:
Almedina, 1999, p. 398.
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bição geral do arbítrio, no sentido de que “existe observância da igualdade quando
indivíduos ou situações iguais não são arbitrariamente (proibição do arbítrio)
tratados como desiguais. Por outras palavras: o princípio da igualdade é violado
quando a desigualdade de tratamento surge como arbitrária”. E, ao falar sobre a
costumeira associação do princípio da igualdade com o princípio da proibição
do arbítrio, o eminente autor8 aduz que este último “costuma ser sintetizado da
forma seguinte: existe uma violação arbitrária da igualdade jurídica quando a
disciplina jurídica não se basear num: (i) fundamento sério; (ii) não tiver um
sentido legítimo; (iii) estabelecer diferença jurídica sem fundamento razoável.
Daí se falar nas duas dimensões da igualdade: (I) aquela por meio da qual a
norma se destina isonomicamente a todos aqueles que realizarem a conduta des-
crita na hipótese legal; e (II) aqueloutra, em que se busca vedar as desequiparações
irracionais, nas quais transborda a inadequação entre meio e m, servindo como
cláusula geral de proibição do arbítrio.
2. A ISONOMIA TRIBUTÁRIA
O princípio da isonomia ou igualdade tributária (ou princípio da proibição dos
privilégios odiosos),por sua vez, está expresso no art. 150, II, nos seguintes termos:
É vedado (...) instituir tratamento desigual entre contribuintes que se encontrem em situação
equivalente, proibida qualquer distinção em razão da ocupação prossional ou função por ele
exercida, independentemente da denominação jurídica dos rendimentos, títulos ou direitos.
Trata-se de postulado especíco que veda o tratamento tributário desigual
a contribuintes que se encontrem em situação de equivalência ou equipolência.
Enquanto o art. 5º, caput, da CF, expõe a temática da igualdade de modo genérico,
o art. 150, II, da CF, explora-a de modo especíco, fazendo-a convergir para a
seara da tributação.
No plano semântico, nota-se que o referido preceptivo se põe como um
contraponto scal àquilo que se proclamou armativamente no art. 5º, caput, da
Carta Magna. Com efeito, enquanto neste se busca armar, no plano positivo,
uma realidade, dispondo-se que “todos são iguais perante a lei, (...), no comando
especíco, afeto à isonomia tributária (art. 150, II, CF), almeja-se negativamente
inibir uma dada conduta, por meio do mandamento é vedado instituir tratamento
desigual (...)”.
Se o postulado da isonomia tributária preconiza que é defeso instituir trata-
mento desigual entre contribuintes que se encontrem em situação de equipolência,
8. CANOTILHO, José Joaquim Gomes. Direito constitucional e teoria da Constituição. 3. ed., p. 401.
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