Jurisdição, processo e liberdade

AutorTrícia Navarro Xavier Cabral
Páginas29-46
2
JURISDIÇÃO, PROCESSO E LIBERDADE
2.1. BREVES NOTAS SOBRE A JURISDIÇÃO MODERNA
O processo civil é escorado em quatro importantes pilares: ação, defesa, juris-
dição e processo.
A ação sempre foi alvo de atenção pelos processualistas, em um contexto his-
tórico em que a busca por reconhecimento de direitos e de ampliação do acesso à
justiça eram o mote do jurisdicionado.
Em seguida, o processo virou o alvo dos doutrinadores, que procuraram rede-
f‌inir a sua f‌inalidade, especialmente a partir da necessidade de se atingir resultados.
Agora pretende-se fazer uma releitura da jurisdição, avaliando como a sua
evolução e as suas características afetam as técnicas processuais.
A atividade jurisdicional do Estado é atribuída ao Poder Judiciário, que com-
põe, ao lado do Executivo e Legislativo, os Poderes da União responsáveis pela
realização dos fundamentos do Estado Democrático de Direito. O poder atribuído
ao Judiciário emana do povo (art. 1º, parágrafo único, CF/88), possuindo funções,
estrutura e órgãos próprios (arts. 92 a 126, CF/88), que permitem o exercício da
atividade jurisdicional.
Assim, a jurisdição estatal decorre da soberania do Estado, do poder de im-
pério estatal, que, por delegação, confere aos juízes a função primordial de julgar,
representando a soma de atividades do juiz que tem por f‌inalidade a tutela dos
direitos. Em outros termos, a atividade jurisdicional constitui função de substi-
tuição def‌initiva e obrigatória da atividade intelectiva do particular pela atividade
intelectiva do juiz.1
No contexto tradicional, segundo Geraldo de Ulhoa Cintra,2 a jurisdição,
além de atuar as normas jurídicas, agiria em obediência a um preceito secundário
chamado sanção, para tomar medidas e assegurar a satisfação de interesses de-
correntes de relação jurídica, cuja norma jurídica foi desobedecida por parte dos
destinatários. Acrescenta que a jurisdição vem satisfazer ao interesse do próprio
1. PASSOS, J.J. Calmon de Passos. Da jurisdição (Cadernos de Textos, Cursos, Mementos e Sinopses). Bahia:
Publicações da Universidade da Bahia, III-1, 1957, p. 19-20.
2. CINTRA. Geraldo de Ulhoa. Da jurisdição. (Estudo crítico através de uma fonte histórica – a LXV Disser-
tação Acadêmica de Cristiano Tomásio). Rio de Janeiro: Lux, 1958, p. 322-323.
LIMITES DA LIBERDADE PROCESSUAL • TRÍCIA NAVARRO XAVIER CABRAL
14
Estado, que, como personif‌icação jurídica da sociedade, intenta a atuação do
direito para garantir os f‌ins individuais e coletivos, como condição essencial para
a própria vida social.
De acordo com Nicola Picardi,3 em razão de conjunturas históricas, a jurisdição,
como expressão da soberania nacional e integrante do Poder do Estado, foi ganhando
maior protagonismo, independência e paridade com os demais Poderes, fruto do
deslocamento de eixo dos problemas decisionais do Legislativo e do Executivo para
onde se encontrem as melhores viabilidades de solução.
Por consequência, a atividade do juiz, antes tratada como uma função admi-
nistrativa, burocrática, e resumida à f‌idelidade à lei, ganhou legitimação própria e
reconhecimento institucional, calcada nos anseios do Estado e da sociedade, colo-
cando em debate a sua relevância política na sociedade moderna.
Não obstante, Lodovico Mortara,4 em obra datada de 1923, ao tratar do problema
constitucional da função jurisdicional possibilita repensar o processo civil, por meio
de uma perspectiva pública. Para ele, o juiz aplica a lei por meio da interpretação das
normas.5 Assim, ao reconhecer a natureza pública do processo, o jurista italiano teve
um papel fundamental no desenvolvimento dos contornos publicistas do direito
processual, com implicações também na jurisdição. No trabalho, o jurista italiano faz
uma análise da evolução da jurisdição desde o direito romano, passando pelo tempo
de império, até se chegar ao momento do estado liberal. Faz ampla crítica à falta
de autonomia da jurisdição quando ela era subordinada ao papa ou aos monarcas.
Observa, ainda, que os limites da jurisdição civil partiram da noção de estado liberal,
bem como que a jurisdição não se presta somente à proteção do direito subjetivo,
mas também ao direito objetivo.6 Suas premissas, além de inf‌luenciarem o desen-
volvimento das teorias sobre a jurisdição, trouxeram importantes consequências
para o estudo do processo civil.
Passadas as diversas fases evolutivas, Ovídio Araújo Baptista da Silva7 ensina que
a jurisdição moderna é fruto do processo político de formação do Estado, tornando-
-se uma função estatal, um serviço público comprometido com os seus interesses.
3. PICARDI, Nicola. Jurisdição e processo. (Organizador e revisor técnico da tradução Carlos Alberto Alvaro
de Oliveira). Rio de Janeiro: Forense, 2008, p. 24-32.
4. MORTARA, Lodovico. Commentario del Codice e dele Leggi Procedura Civile. Volume I. (Teoria e sistema
dela giurisdizione). 5ª. ed., revista e ampliada. Milano: Casa Editrice Dottor Francesco Vallardi; 1923.
5. MECCARELLI, Massimo. Lodovico Mortara. Contribuição Italiana à História do Pensamento - Direito
(2012). Disponível em: < http://www.treccani.it/enciclopedia/lodovico-mortara_%28Il-Contributo-ita-
liano-alla-storia-del-Pensiero:-Diritto%29/>. Acesso em: 11.03.2019.
6. Segundo Lodovico Mortara, o poder jurisdicional é um poder sancionatório do direito objetivo, e se
diferencia dos poderes legislativo e político-administrativo por ser uma função vinculada à necessidade
de operar em observância e pela execução da lei, sendo um poder privado de faculdade discricionária.
MORTARA, Lodovico. Istituzioni di Procedura Civile (Nuova edizione dei “Principii di Procedura Civile”
interamente rifatta). Firenze: G. Barbèra, 1922, p. 12-14.
7. SILVA, Ovídio Araújo Baptista da. Jurisdição, direito material e processo. Rio de Janeiro: Forense, 2008,
p. 265.

Para continuar a ler

PEÇA SUA AVALIAÇÃO

VLEX uses login cookies to provide you with a better browsing experience. If you click on 'Accept' or continue browsing this site we consider that you accept our cookie policy. ACCEPT