O Limbo da Proteção Social: Entre a Assistência e a Previdência

AutorFabio Luiz dos Passos
Páginas19-27

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Fabio Luiz dos Passos 1

1. Introdução

Conforme a redação do art. 194 da Constituição Federal, a seguridade social compreende um conjunto integrado de ações de iniciativa dos Poderes Públicos e da sociedade, destinadas a assegurar os direitos relativos à saúde, à previdência e à assistência social.

A ideia de integração dos três âmbitos de atuação que integram a seguridade social ainda é relativamente nova no Brasil, posto que inaugurado com a Constituição Federal de 1988 e, embora já tenham transcorrido 25 anos desde então, não é de fácil assimilação e compreensão, seja por parte da administração pública, seja por parte do Poder Judiciário.

Embora a ideia de seguridade social esteja alicerçada no modelo criado na década de 1940 por Beveridge, ainda é interpretada a partir da ótica bismarckiana de proteção segmentada, classista e excludente, característica dos primórdios da era industrial.

Assim, não é difícil perceber a existência de um hiato de proteção social entre os campos de abrangência da previdência social e da assistência social; um "limbo" no qual o cidadão fica desassistido pelo Estado, pois não está formalmente integrado à previdência social de modo a obter os benefícios previdenciários, ainda concebidos e interpretados sob um viés bismarckiano, e tampouco se apresenta em condição de mise-rabilidade que acarrete, nesta mesma interpretação clássica, a necessidade da proteção assistencial.

Ademais, se percebe com frequência na atuação judicial uma interpretação do alcance da assistência social desapegada da realidade económica e social vivenciada pelo (e no) Estado

Brasileiro nestes primórdios do século XXI, e ainda alicerçada na interpretação legal restritiva e na limitada capacidade estatal de proteção característica da década de 1990, resultando em uma aplicação do direito social em contrariedade com as disposições constitucionais fundamentais.

Em relação à assistência social, Boschetti (2003, p. 44) informa que [...] esta política social enfrentou muitas resistências para ser legalmente reconhecida como direito e continua sofrendo enormes resistências na sua implementação como tal, porque ela é uma política em constante conflito com as formas de organização social do trabalho.

A isto se acresce a visão paternalista e interesses eleitoreiros sobre a assistência social por parte dos agentes políticos, bem como, a dificuldade de assimilação por parte do próprio cidadão necessitado da proteção social como um direito de cidadania.

2. Pobreza e exclusão social: uma delimitação de conceitos

Nas sociedades pré-modernas, antecedentes à Era Industrial, a pobreza era reconhecida como um fato natural, algo inerente à vida, que simplesmente ocorria, tal como as secas e as más colheitas (gIDDENS, 1996, p. 142).

Neste contexto, acidentes, assim como mudanças drásticas na condição de vida dos indivíduos, também eram admitidos como ocorrências naturais, que se davam tanto para o bem como para o mal, inexistindo qualquer possibilidade de previsão ou correção, uma vez que provinham da vontade divina ou do destino.

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Ocorrências prejudiciais ao indivíduo, em sua condição física ou social, representavam o aspecto negativo do destino, a má sorte ou, literalmente, "des-graça".

A vinculação da sorte humana aos desígnios divinos justificava o entendimento da pobreza "como algo necessário, ou mesmo um benefício para pessoas carentes, pois seria a efetiva garantia de admissão no Reino de Deus, haja vista a situação de extrema carência e desapego a bens materiais" (IBRAHIM, 2011, p. 32). Segundo registra Ibrahim (2011, p. 39), "São Tomás de Aquino [...] não reconhecia quaisquer direitos aos pobres, devido à sua posição meritosa, com entrada garantida no Reino de Deus". Ademais, além de representar uma condição natural, a pobreza por vezes externava características de punição divina. O auxílio aos pobres não consistia em um critério de justiça social, mas tão somente de caridade, uma conduta ditada pela moral (IBRAHIM, 2011, p. 39), refletindo a generosidade dos indivíduos mais abastados.

Com o iluminismo surge a compreensão das ideias de risco e de acidente, intimamente relacionadas. Inicialmente os acidentes estavam associados a ocorrências periódicas que, embora ocasionadas em razão do azar poderiam ser identificadas e catalogadas, posto que, ligados à vida comum, aos grupos populacionais, eram entendidos como provenientes de causa externa.

Tal como informa Ibrahim (2011, p. 36), "na modernidade, o auxílio aos necessitados deixa de ser visto como mera virtude, tornando-se fundamento da sociedade".

Neste contexto, a ideia de risco, inerente ao pensamento iluminista, é parte do esforço para controlar o futuro e dominar a história no interesse de desenvolver os objetivos humanos. O reconhecimento e valorização do risco e a definição de limites de controle, sempre passíveis de adequação, expressa uma situação para a qual o remédio é possível e desejável.

Assim, "a difusão do conceito de seguro social reflete não tanto novas formas de perceber a injustiça social como a importância adquirida pela ideia de que a vida social e económica pode ser controlada pelos seres humanos" (GIDDENS, 1996, p. 142).

Já no início do século XVI se encontram proposições tendentes a minimizar a pobreza, no interesse da sociedade, embora ainda com fundamento na obrigação judaico-cristã de prestar caridade.

Johannes Ludovicus Vives, professor em Louvain, França, de origem judia catalã, em 1526, elaborou detalhado plano de renda mínima às populações carentes, denominado De Subventione Pauperum, onde mostra a legitimidade da prestação de assistência aos pobres pelos poderes públicos, proveniente de:

[... ] esmolas dadas de livre vontade. Mas (que) seria muito mais eficaz que a assistência privada, por ser mais bem distribuída — entre todos os necessitados e somente eles.

(VANDERBORGHT, 2006, p. 37)

A partir do final do século XVII, já nos primórdios da revolução industrial, a visão sobre a pobreza se orientou para o desenvolvimento da riqueza nacional. A pobreza deixou de ser reconhecida como uma condição natural, mas também não se limitava à concepção de carência de recursos. Pobres eram aqueles que não podiam ou não queriam trabalhar. Segundo

Giddens (1996, p. 140),

[... ] a vinculação do pauperismo com a falta de educação moral estava muito clara: trabalho para aqueles que se esforçam, castigo para os que não, e pão para os que não possam. Por sua vez, a resolução moral se relacionava diretamente com o bem-estar social; porque [...] a pobreza torna os homens tumultuosos e inquietos, e combatê-la é um ato de prudência civil e sabedoria política.

Neste contexto, o conceito de pobreza estava claramente relacionado às necessidades da indústria crescente.

Com o desenvolvimento da sociedade industrial, a ideia de pobreza passou a estar vinculada à suficiência de renda para a provisão das necessidades básicas da subsistência, e avaliada estritamente em termos monetários. Como visto na descrição histórica, esta conceituação levou ao desenvolvimento das diversas ferramentas de proteção social a partir do final do século XIX, no intuito de evitar que os homens "se encontrem continuamente a braços com os horrores da miséria". (LEÃO XIII, 1891 item 51)

Neste sentido, afirma Ibrahim (2011, p. 67), que "a pobreza é definida, sucintamente, como uma acentuada restrição no bem-estar, tendo, em regra, significado em termos monetários". Uma das dificuldades encontradas neste parâmetro é o de estabelecer critérios objetivos para definir pobreza e assim possibilitar efetivas ações para combatê-la. "A solução tradicional é a criação de linhas de pobreza, as quais, uma vez ultrapassadas, qualificam como pobres aqueles com rendimento e/ou gastos abaixo de determinada fronteira" (IBRAHIM, 2011, p. 68). Estas linhas de pobreza são fixadas arbitrariamente e geralmente estão relacionadas à ideia de mínimo existencial.

No início da década de 1980, Rosanvallon (1984, p. 94) já afirmara que a pobreza "não pode ser definida simplesmente, por um critério de rendimento. O isolamento, o local de vida (cidade ou campo) podem aumentar os efeitos do rendimento". Portanto, a pobreza pode também ser reconhecida em relação a "determinados setores, como os pobres em saúde, Previdência Social etc., mas sem esquecer que a visão mais ampla de bem-estar traduz a possibilidade do indivíduo aderir à vida em sociedade" (IBRAHIM, 2011 p. 67).

Daí decorre a ideia de vulnerabilidade social, caracterizada pela possibilidade de o indivíduo com renda limítrofe regredir em sua condição financeira e/ou social, ultrapassando o limiar da pobreza em um momento futuro.

Rousseau (1753, p. 46) ao elaborar o discurso sobre a origem da desigualdade entre os homens, já afirmara que "é manifestamente contra a lei da natureza, de qualquer maneira que a definamos, [...] que um punhado de pessoas nade no supérfluo, enquanto à multidão esfomeada falta o necessário".

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Porém, o mesmo autor reconhecendo a origem destas desigualdades, na própria sociedade, afirmou que [...] a desigualdade, sendo quase nula no estado de natureza, tira a sua força e o seu crescimento do desenvolvimento das nossas faculdades e dos progressos do espírito humano, tornando-se enfim estável e legítima pelo estabelecimento da propriedade e das leis. (ROUSSEAU, 1753, p. 46)

Neste sentido, Ibrahim (2011, p. 105) demonstra que a evolução das exigências sociais pode conduzir o indivíduo a pobreza, ao afirmar que a necessidade de melhor competitividade no mercado global impõe não só estruturas enxutas e funcionais, mas também mão de obra cada vez mais qualificada, o que gera aumento de desemprego, o qual, por sua vez...

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