Novas impostações para a impessoalidade e para a moralidade: cidadania digital e administração pública consensual

AutorJosé Luiz de Moura Faleiros Júnior
Ocupação do AutorMestre em Direito pela Universidade Federal de Uberlândia - UFU
Páginas169-247
CAPÍTULO 3
NOVAS IMPOSTAÇÕES PARA
A IMPESSOALIDADE E PARA A
MORALIDADE: CIDADANIA DIGITAL E
ADMINISTRAÇÃO PÚBLICA CONSENSUAL
3.1 CIDADANIA NO SÉCULO XXI: IMPESSOALIDADE E MORALIDADE
REALÇADAS
O clássico conceito de cidadão, def‌inido por Aristóteles na antiguidade grega, era
privilégio de poucas classes detentoras do poder; um atributo escasso, diferenciador.1
Era, em última instância, verdadeiro signo distintivo, que vinculava determinado in-
divíduo à possibilidade de participação em processos decisionais – especialmente por
meio do voto.2
Com o avançar da história, o referido conceito ganhou novos signif‌icados, mas
sempre se manteve atrelado à ideia de democracia. De acordo com Pietro Costa, na
Roma Antiga, não se tinha uma cópia f‌iel da polis grega, uma vez que a civitas romana
mais se alinhava ao sentido renovado da relação de cidadania, que marcaria toda a tra-
dição político-jurídica ocidental.3 Segundo Jorge Miranda, “[c]idadania signif‌ica ainda,
1. ARISTÓTELES. A política. Tradução de Nestor Silveira. São Paulo: Folha de S. Paulo, 2010, Livro III, p. 53-55. Eis
o trecho: “Mas, sendo a cidade algo de complexo, assim como qualquer outro sistema composto de elementos ou
de partes, é preciso, evidentemente, procurar antes de tudo o que é um cidadão. Por que a cidade é uma multidão
de cidadãos, e assim é preciso examinar o que é um cidadão, e a quem se deve dar este nome. (...) Ponhamos de
lado, pois, os que obtêm este título por qualquer outro modo, como, por exemplo, aqueles a quem se concedeu o
direito de cidadania. O cidadão não é cidadão pelo fato de se ter estabelecido em algum lugar – pois os estrangeiros
e os escravos também são estabelecidos. Nem é cidadão por se poder, juridicamente, levar ou ser levado ante os
mesmos tribunais. Pois isso é o que acontece aos que se servem de selos para as relações de comércio. (...) Em
uma palavra, cidadão é aquele que pode ser juiz e magistrado. Não existe def‌inição melhor. Alguns cargos tomam
um tempo limitado, não podendo ser exercidos duas vezes pela mesma pessoa, ou então somente depois de um
período determinado. Alguns existem, ao contrário, cuja duração é ilimitada, como acontece com as funções de
juiz e de membro das assembleias gerais. (...) Por aí se vê, pois, o que é o cidadão: aquele que tem uma parte legal
na autoridade deliberativa e na autoridade judiciária – eis o que chamamos cidadão da cidade assim constituída.
(...) Cidadão, segundo a nossa def‌inição, é o homem investido de certo poder.”
2. BELLAMY, Richard. Citizenship: a very short introduction. Oxford: Oxford University Press, 2008, p. 1-2. Destaca:
Historically, citizenship has been linked to the privileges of membership of a particular kind of political community –
one in which those who enjoy a certain status are entitled to participate on an equal basis with their fellow citizens in
making the collective decisions that regulate social life. In other words, citizenship has gone hand in hand with political
participation in some form of democracy – most especially, the right to vote.
3. COSTA, Pietro. Cittadinanza. Roma-Bari: Laterza, 2005. E-book. Segundo o autor: “Roma non era stata una copia
conforme della pólis greca: la civitas romana aveva compiuto una sua originale traiettoria allontanandosi progres-
ADMINISTRAÇÃO PÚBLICA DIGITAL • JOSÉ LUIZ DE MOURA FALEIROS JÚNIOR
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mais vincadamente, a participação em Estado democrático. Foi nessa perspectiva que
o conceito foi elaborado e se difundiu após a Revolução Francesa.”4 Era um novo ideal
de cidadania que f‌lorescia pari passu à evolução do Estado, e que seria remodelado,
rearranjado e repensado no curso dos vários séculos subsequentes.
O sociólogo norueguês Stein Rokkan prestou importantes contributos para ex-
plicar a evolução histórica da concepção moderna de cidadania democrática, mas foi
com Thomas Marshall5 que se atingiu a baliza conceitual para o fundamento constitu-
cional da cidadania6 – que viria a ser albergada pelos diversos ordenamentos no curso
do século XX, com a ascensão dos Estados Democráticos de Direito – então entendida
como vínculo de pertencimento do indivíduo à sociedade estatal, do qual decorre uma
exigência ao exercício de direitos fundamentais.
Segundo Christian Le Bart:
Inspirada na Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão de 1789, a democracia moderna
confere aos indivíduos várias liberdades fundamentais: o direito à vida e à dignidade, a liberdade de
movimento, o direito à propriedade e o direito à propriedade; o respeito à privacidade, liberdade de
empresa, liberdade religiosa... Esses direitos individuais são complementados por direitos sociais, como
à organização sindical, à greve, a criar uma associação, reunir-se... e, é claro, votar em representantes.
O desenvolvimento do estado gerou novos direitos sociais exigindo a intervenção deste último para
prestar auxílio aos indivíduos: direito à educação, saúde, trabalho, cultura ... (Preâmbulo da Consti-
tuição Francesa 1946, Declaração Universal dos Direitos Humanos 1948).7
sivamente dalla sua arcaica conf‌igurazione per coincidere (idealmente o immaginariamente) con l’ecumene (ed era
cambiato di conseguenza il senso del rapporto di cittadinanza, che la Constitutio antoniniana del 212 aveva esteso a tutti
i sudditi dell’impero). Che Roma fosse una pólis nel senso greco del termine, come voleva Polibio, era probabilmente un
anacronismo già a metà del II secolo a.C., quando l’autore greco scriveva le sue Storie; ma era un anacronismo di cui si
era fatto latore anche Cicerone in pagine i cui echi si propagheranno in tutta la tradizione politico-giuridico occidentale.
4. MIRANDA, Jorge. Teoria do Estado e da Constituição. Rio de Janeiro: Forense, 2005, p. 205-206.
5. MARSHALL, Thomas Humphrey. Cidadania, classe social e status. Tradução de Meton Porto Gadelha. Rio de
Janeiro: Zahar, 1967, p. 68-69. Anota: “A história dos direitos políticos difere tanto no tempo como no caráter. O
período de formação começou, como af‌irmei, no início do século XIX, quando os direitos civis ligados ao status de
liberdade já haviam conquistado substância suf‌iciente para justif‌icar que se fale de um status geral de cidadania.
E, quando, começou, consistiu não na criação de novos direitos para enriquecer o status já gozado por todos, mas
na doação de velhos direitos a novos setores da população. (...) Está claro que, se sustentarmos que, no século
XIX, a cidadania na forma de direitos civis era universal, os direitos políticos não estavam incluídos nos direitos
de cidadania. Constituía o privilégio de uma classe econômica limitada cujos limites foram ampliados por cada
lei de reforma sucessiva. (...) Foi, como veremos, próprio da sociedade capitalista do século XIX tratar os direitos
políticos como um produto secundário dos direitos civis. Foi igualmente próprio do século XX abandonar essa
posição e associar os direitos políticos direta e indiretamente à cidadania como tal. (...) A participação nas comuni-
dades locais e associações funcionais constitui a fonte original dos direitos sociais. Esta fonte foi complementada
e progressivamente substituída por uma Poor Law (lei dos pobres) e um sistema de regulamentação de salários
que foram concebidos num plano nacional e administrados localmente.”
6. BELLAMY, Richard. Citizenship, cit., p. 45-46. Diz: “The sociologists T. H. Marshall and Stein Rokkan established
what has become the standard narrative of the evolution of modern democratic citizenship. This account draws on their
analysis of the history of West European democracies in the 18th, 19th, and 20th centuries. They saw citizenship as
the product of the interrelated processes of state-building, the emergence of commercial and industrial society, and the
construction of a national consciousness, with all three driven forward in various ways by class struggle and war. Though
these three processes tended to be phased, each provided certain of the preconditions for bringing together popular and
legal rule within the new context of democratic, welfare, nation states operating within a capitalist market economy.
7. LE BART, Christian. Citoyenneté et démocratie. Paris: La Documentation Fraçaise, 2016, p. 28, tradução livre.
No original: “S’inspirant de la Déclaration des droits de l’homme et du citoyen de 1789, la démocratie moderne confère
aux individus un certain nombre de libertés fondamentales : droit à la vie et à la dignité, liberté de circulation, droit
de propriété, droit au respect de la vie privée, liberté d’entreprendre, liberté religieuse… Ces droits individuels sont
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CAPíTULO 3 • NOVAS IMPOSTAÇÕES PARA A IMPESSOALIDADE E PARA A MORALIDADE
O pioneiro estudo de Marshall esteve à frente de seu tempo8, mas isto não o isentou
de críticas, especialmente sob o argumento de que ele ignora o papel desempenhado pelas
pressões externas na promoção de direitos; outros diziam que, mesmo na Grã-Bretanha,
os três conjuntos de direitos não surgiram na ordem ou nos períodos mencionados, nem
se mostraram tão complementares quanto ele supunha. Assim, os direitos sociais teriam
surgido, na maioria dos países, antes e depois dos direitos políticos – na verdade, eles
eram frequentemente oferecidos pela classe politicamente dominante de cada época
como uma forma de atenuar as demandas por direitos políticos.
Os direitos sociais também poderiam colidir com certos direitos civis, como o di-
reito à propriedade. Entretanto, essas correções nos detalhes de sua base argumentativa
são perfeitamente compatíveis com sua lógica subjacente, que permanece convincente.
E, embora Marshall às vezes tenha sido lido como defensor de uma progressão quase
inevitável dos direitos civis para os políticos e para os direitos sociais cada vez mais
completos, essa não era a opinião dele.9 Ele viu a aquisição de direitos como uma luta
contingente e interminável. Cada fase do desenvolvimento dos direitos decorre de um
grupo subordinado que consegue obter concessões daqueles com poder em sua luta para
serem tratados com igual preocupação e respeito – nesse movimento transformador,
Marshall identif‌icou seu objeto de estudo.
Avança-se no tempo até as proposições de Hannah Arendt, explicitadas em meio
às suas observações da condição de perda de cidadania dos refugiados de guerra:
Só conseguimos perceber a existência de um direito de ter direitos (e isto signica viver numa estrutura
onde se é julgado pelas ações e opiniões) e de um direito de pertencer a algum tipo de comunidade
organizada, quando surgiram milhões de pessoas que haviam perdido esses direitos e não podiam
recuperá-los devido à nova situação política global.10
A autora desenvolve seu conceito de cidadania a partir de um ‘direito a ter direitos’
(e, aqui, a remissão a Rodotà é importantíssima do ponto de vista da autodeterminação11),
que encontra no sufrágio seu elemento de maior destaque, mas não o único, uma vez
que a redução da participação popular ao voto culmina, segundo sonoras críticas da
doutrina, em pouca ou nenhuma participação.12
complétés de droits sociaux comme ceux de se syndiquer, de faire grève, de créer une association, de se réunir… et bien
sûr celui de voter pour désigner des représentants. Le développement de l’État a engendré de nouveaux droits sociaux
appelant l’intervention de celui-ci pour venir en aide aux individus: droit à l’éducation, à la santé, au travail, à la
culture… (Préambule de la Constitution française de 1946, Déclaration universelle des droits de l’homme de 1948).
8. SOUKI, Lea Guimarães. A Atualidade de T. H. Marshall no estudo da cidadania no Brasil. Civitas: Revista de
Ciências Sociais, Porto Alegre, v. 6, n. 1, p. 39-58, jan./jun. 2006, p. 41.
9. BELLAMY, Richard. Citizenship, cit., p. 47.
10. ARENDT, Hannah. Origens do totalitarismo: antissemitismo, imperialismo, totalitarismo. Tradução de Roberto
Raposo. São Paulo: Cia. das Letras, 2013, p. 238.
11. RODOTÀ, Stefano. Il diritto di avere diritti, cit., p. 273.
12. BEÇAK, Rubens. A hipertrof‌ia do Executivo brasileiro: o impacto da Constituição de 1988. Campinas: Millennium,
2008, p. 72. Comenta: “O questionamento encontrou campo fértil particularmente nos EUA, onde, sobretudo
após a emblemática convenção democrática de 1968, plantou-se a máxima ‘a cura para os males da democracia
é mais democracia’. Papel importante neste processo todo é o do incremento do pluralismo, com toda gama de
diversidades dos mais variados aspectos sendo cada vez mais valorizada. Numa sociedade em que tudo assume o
valor de importante, com a exacerbação exponencial dos individualismos e idiossincrasias, natural a percepção
de que um sistema fundado na verif‌icação do bem comum pelo critério da maioria seria contestado.”

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