Ultrapassando as periclitâncias da publicidade e da eficiência: procedimentalização, gestão de riscos e transparência na governança digital

AutorJosé Luiz de Moura Faleiros Júnior
Ocupação do AutorMestre em Direito pela Universidade Federal de Uberlândia - UFU
Páginas249-336
CAPÍTULO 4
ULTRAPASSANDO AS PERICLITÂNCIAS
DA PUBLICIDADE E DA EFICIÊNCIA:
PROCEDIMENTALIZAÇÃO, GESTÃO
DE RISCOS E TRANSPARÊNCIA NA
GOVERNANÇA DIGITAL
Uma pesquisa da BBC mostrou que quatro em cada cinco adultos consideram o
acesso à Internet um direito fundamental1, o que revela a importância deste tema para
a compreensão dos novos limites e das vindouras fronteiras da atuação pública. A Pri-
mavera Árabe – já mencionada no terceiro capítulo –, iniciada em dezembro de 2010,
foi intensif‌icada pela tecnologia2, o que exemplif‌ica o papel da Internet na difusão e na
coalizão de pessoas em torno de iniciativas digitais. No f‌inal de 2011, houve protestos
nos Estados Unidos da América contra as leis do Stop Online Piracy Act (SOPA) e do
Protect IP Act (PIPA)3, novamente demonstrando esse efeito.
No início de 2012, seguiu-se um movimento europeu contra o Acordo Comercial
de Combate à Contrafação (Anti-Counterfeiting Trade AgreementACTA).4 Em maio de
2011, Frank La Rue, relator especial das Nações Unidas (ONU) sobre a liberdade de
expressão, explorou as principais tendências e desaf‌ios à liberdade de expressão pela
Internet, em relatório que provou ser um ponto de virada na discussão. Após analisar o
impacto da Internet no mundo contemporâneo, em particular nos protestos árabes, La
Rue concluiu que a Internet se tornou uma ferramenta indispensável para a realização
de uma série de direitos humanos.5
1. INTERNET access is ‘a fundamental right’. BBC, 8 mar. 2010. Disponível em: http://news.bbc.co.uk/2/hi/8548190.
stm. Acesso em: 22 nov. 2019.
2. Em seu comentário sobre o Manifestante da Primavera Árabe como a ‘Pessoa do Ano de 2011’, Rick Stengel, da
Time, argumenta que a tecnologia realmente importava para os protestos árabes, mas isso não fez da Primavera
Árabe uma revolução tecnológica. As redes sociais não causaram esses movimentos, mas os mantiveram vivos e
conectados. (STENGEL, Rick. Person of the Year introduction. Time, 14 dez. 2011. Disponível em: https://bit.
ly/2sAHoza. Acesso em: 22 nov. 2019.)
3. WORTHAM, Jenna. A political coming of age for the tech industry. The New York Times, 17 jan. 2012. Disponível
em: https://nyti.ms/39BI0oK. Acesso em: 22 nov. 2019.
4. Para maiores informações, consulte-se: BARALIUC, Irina; GUTWIRTH, Serge; DEPREEUW, Sari. Copyright
enforcement in Europe after ACTA: what now? Netherlands Journal of Legal Philosophy, Utrecht, v. 41, n. 2, p.
99-104, 2012.
5. LA RUE, Frank. Report of the Special Rapporteur on the promotion and protection of the right to freedom of
opinion and expression. Conselho de Direitos Humanos da Organização das Nações Unidas, 6 mai. 2011.
Disponível em: http://www2.ohchr.org/english/bodies/hrcouncil/docs/17session/A.HRC.17.27_en.pdf. Acesso
em: 22 nov. 2019.
ADMINISTRAÇÃO PÚBLICA DIGITAL • JOSÉ LUIZ DE MOURA FALEIROS JÚNIOR
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Enfatizou-se que deveria haver o mínimo de restrição possível ao f‌luxo de infor-
mações pela Internet, com poucas exceções previstas no direito internacional para a
efetiva tutela dos direitos humanos. Tomando nota do relatório La Rue, em 29 de junho
de 2012, o Conselho de Direitos Humanos da ONU adotou uma resolução, exortando
os Estados a promover e facilitar o acesso amplo e indistinto de seus cidadãos à Internet
e à cooperação internacional, visando o desenvolvimento de meios de comunicação e
informações e à instalação de mecanismos para a promoção da efetiva comunicação em
todos os países.
O exposto acima indica um consenso crescente de que a Internet constitui um
valor em si mesma e que, portanto, deve receber proteção legal. Um próximo passo
neste desenvolvimento é o apelo para dar à Internet (ou seu uso) o status de um direito
fundamental. Nesse contexto, pode-se apontar, por exemplo, o trabalho da coalizão de
Direitos e Princípios da Internet que lançou seus 10 Internet Rights and Principles e atu-
almente redige uma Charter of Human Rights and Principles for the Internet. Também se
pode recordar a Bill of Rights for the Internet, de Andrew Murray, proposta em setembro
de 2010.6
Se os deveres de proteção a direitos fundamentais são emanações inescapáveis em
um momento da sociedade pós-moderna7 em que toda a procedimentalização gover-
namental gira em torno de tendências globalistas como a implementação de mecanis-
mos de participação popular e, no que concerne aos novos f‌iltros dessas emanações, a
propagação de uma cultura de governança pública, novas tendências surgem, ainda,
para os atos e processos administrativos, então vislumbrados sob a ótica da intervenção
tecnológica nas rotinas e nos procedimentos administrativos em geral.
Segundo José Fernando Brega,
(...) apontam-se como princípios do governo eletrônico aqueles referentes à equivalência de suportes,
à equivalência de garantias e à interoperabilidade, todos eles com indicação de alguma referência
normativa, embora não sejam explicitamente contemplados pelo ordenamento jurídico. Também o
princípio da eciência pode ser considerado uma das bases do governo eletrônico, embora a ele não
esteja restrito. Além disso, outros princípios referentes à atuação administrativa, que não surgiram
em razão das novas tecnologias, (...) poderão ser usados para a compreensão dos inúmeros aspectos
jurídicos mais concretos relativos à incorporação das novas tecnologias nas atividades administrativas,
(...). Também poderão servir para facilitar a aplicação, ao governo eletrônico, do regime jurídico perti-
nente à Administração Pública, o que ocorrerá por meio da adoção de novos instrumentos normativos
ou pela reinterpretação da legislação que tenha sido elaborada em um contexto distante do atual.8
6. MURRAY, Andrew. A Bill of Rights for the Internet. The IT Lawyer, 2010. Disponível em: http://theitlawyer.
blogspot.com/2010/10/bill-of-rights-for-internet.html. Acesso em: 20 nov. 2019.
7. TEUBNER, Gunther. Constitutional fragments: societal constitutionalism and globalization. Tradução do alemão
para o inglês de Gareth Norbury. Oxford: Oxford University Press, 2012, p. 54. Anota o autor: “Strikingly, although
these processes are set in motion by functional diff erentiation, the constitutional norms are not directed towards the
major function systems themselves. Financial and product markets are fully globalized, scientif‌ic communication takes
place at a global level, the system of communicative media, news agencies, television, and the Internet all transmit
news across the whole world. However, there is no sign of a global economic constitution, scientif‌i c constitution, or
media constitution sui generis. It is not function systems that are constitutionalized via decision- making premises
or fundamental rights. As has been experienced with neo-corporatist constitutions within nation states, the function
systems themselves lack the capacity to act, become organized and thus, to become constitutionalized.
8. BREGA, José Fernando Ferreira. Governo eletrônico e direito administrativo, cit., p. 73.
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CAPíTULO 4 • ULTRAPASSANDO AS PERICLITÂNCIAS DA PUBLICIDADE E DA EFICIÊNCIA
Se a tendência à formação dos governos eletrônicos decorre desse novo viés, é
imprescindível que sejam investigados esses novos modelos para atos e processos
administrativos, especialmente para que sejam averiguados os impactos desses novos
modais – particularmente pela presença da tecnologia nessas rotinas – em relação à
própria dinâmica de operabilidade dos interesses e afazeres de Estado para que se possa
compreender até mesmo o papel de cada instituição nesse novo arranjo propiciado pela
sociedade da informação em meio à alavancagem do governo eletrônico.9
Pensa-se não apenas na teorização dos impactos tecnológicos, mas na verdadeira e
efetiva Operabilidade do direito público10, tal e qual se deu na emanação de princípios
para a regência do novo direito privado, a partir do advento do Código Civil de 2002.
Noutros termos, impõe-se uma investigação que, visando ao aprimoramento do Re-
gime Jurídico Administrativo, trabalhe com conceitos que propiciem nova ênfase aos
princípios da publicidade e da ef‌iciência a f‌im de que os mesmos se traduzam em novas
formulações para a adequada compreensão desse cenário.11
Os perigos da tecnocracia surgem como obstáculo de importantíssima aferição
nesse contexto específ‌ico – e sobre o tema se trará um tópico específ‌icao –, materiali-
zando periclitâncias que devem ser conhecidas pelo operador do direito que se dedique
à investigação proposta, mas, em linhas essenciais, o que este capítulo apresentará são
novas propostas para a emanação dos dois mencionados princípios em um contexto
no qual a presença da tecnologia e, especialmente, dos mecanismos de inteligência
artif‌icial e a propagação da chamada Internet das Coisas, contribui diretamente para o
acirramento de riscos não apenas democráticos, mas também gerenciais, decorrentes
da consolidação das redes:
Novos assuntos constitucionais surgiram no curso da globalização: organização internacional, regimes
transnacionais e redes. Eles são caracterizados por desnacionalização e fragmentação, um alto nível
de autonomia e uma orientação especíca do problema. Apesar das objeções dos estudiosos cons-
titucionalistas de visão nacionalista, não há alternativa senão reconhecer um número considerável
de instituições transnacionais como sujeitos constitucionais. Como mostrado no capítulo anterior, se
queremos fazer justiça às realidades globais, teremos de considerar três pontos: (1) O Estado-nação
não pode mais ser considerado como o único sujeito constitucional possível. (2) A fragmentação da
sociedade global em regimes funcionalmente denidos é hoje uma realidade. (3) Não são apenas as
9. OSTROM, Elinor. Understanding institutional diversity. Princeton: Princeton University Press, 2005, p. 257.
Comenta: “In light of still further evidence about the performance of self-organized systems that are consistent with
the earlier derived design principles, we can conclude that there are ways of organizing governance that increase the
opportunities for adaptation and learning in a changing and uncertain world with continuing advances in knowledge
and technologies.
10. Cláudio Luiz Bueno de Godoy explica que, pelo princípio da Operabilidade, “procura-se a superação de diver-
gências teoréticas e formais, acerca de institutos de direito, pela sua capacidade de ser executado. Por outra,
prefere-se à vinculação da norma a um conceito por vezes tecnicamente discutível, o seu tratamento de modo a,
fugindo desse liame teórico, permitir a sua mais fácil realização – sentido da operabilidade. O exemplo citado é
o do tratamento da prescrição e da decadência, sobre cuja distinção teórica divergem, de há muito, os autores.
Preferiu-se no Código Civil, em vez de tentar solucionar ou se posicionar sobre o debate, regrá-las de forma a
que possam ser operadas sem gerar dúvidas. Isso ubicando a regra da prescrição em dispositivo próprio da parte
geral, para que se saiba que, fora dele, serão de decadência.” (GODOY, Cláudio Luiz Bueno de. Função social do
contrato. São Paulo: Saraiva, 2004, p. 118.)
11. MESSA, Ana Flávia. Transparência, compliance e práticas anticorrupção na Administração Pública, cit., p. 135
et seq.

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