O princípio da segurança jurídica e a obrigação de devolução de benefícios previdenciários concedidos por força de decisão judicial cassada

AutorRoberto de Carvalho Santos
Páginas136-144

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Roberto de Carvalho Santos 1

Introdução

O tema deste artigo aborda, de forma mais específica, a questão referente à necessidade de modulação temporal, inclusive pelo juiz de primeira instância, da decisão do Superior Tribunal de Justiça – STJ que entendeu pela obrigação do beneficiário vinculado ao Regime Geral de Previdência Social – RGPS devolver benefícios previdenciários que foram concedidos por força de decisão judicial posteriormente cassada (Tema 692).

Este artigo tem por finalidade analisar a insegurança jurídica provocada por essa mudança de entendimento do STJ, afetando decisões judiciais que já tinham sido proferidas com base em entendimento anterior da mencionada Corte e do Supremo Tribunal Federal – STF.

Diuturnamente, verifica-se que diversos magistrados, sem fazer qualquer distinguishing, têm aplicado esse novel entendimento consubstanciado no julgamento do repetitivo, autorizando o Instituto Nacional do Seguro Social – INSS a descontar os valores pagos com base em decisão judicial reformada no benefício que segurado porventura ainda perceba ou mesmo cobrar os valores integralmente pagos, com evidente alijamento dos princípios da segurança jurídica e da dignidade da pessoa humana.

A mudança de entendimento do superior tribunal de justiça no julgamento do resp 1 401.560/mt

O Poder Judiciário, sobretudo no âmbito dos tribunais superiores, propugnava o entendimento segundo o qual o art. 115, inciso II, § 1º, da Lei n. 8.213/1991, que prevê a obrigação de devolução de benefícios previdenciários recebidos indevidamente, somente poderia ser aplicado se houvesse a comprovação de má-fé por parte dos segurados ou dependentes vinculados ao RGPS.

O fundamento precípuo invocado para fundamentar essas decisões consiste na natureza alimentar dos benefícios previdenciários e, portanto, não seria cabível sustentar a repetição dos valores auferidos e cancelados após o devido processo legal, sejam eles deferidos em razão de erro da administração pública ou decorrente do cumprimento de decisão judicial, ainda que prolatada precariamente.

Em que pese esse cristalizado entendimento, o STJ, no julgamento do Tema 692 (apreciado sob o regime de recurso repetitivo no REsp n. 1.401.560/MT), modificou sua posição para sustentar que não se aplica o princípio da boa-fé objetiva para o segurado ou dependente que obteve um benefício com esteio em decisão judicial ainda não definitiva, eis que sabia – ou deveria saber – que o pronunciamento do Judiciário poderia ser modificado nas instâncias superiores ou pelo próprio juiz que proferiu o decisum. Com efeito, eventual reforma da decisão judicial culminaria na obrigação de devolução das verbas alimentícias.

Ressalte-se que o STJ, no julgamento do citado recurso representativo de controvérsia, não procedeu a qualquer modulação temporal dos efeitos da decisão, de maneira que diversas Cortes, sobretudo no âmbito das Turmas Recursais dos Juizados Especiais Federais, passaram a adotar esse entendimento para determinar a

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devolução dos valores alimentares concedidos por força de decisão judicial posteriormente cassada, ainda que o decisum tenha sido prolatado antes do trânsito em julgado do mencionado repetitivo.

Da violação ao princípio da segurança jurídica em face da mudança do entendimento jurisprudencial

O princípio da segurança jurídica, também conhecido como princípio da confiança legítima (proteção da confiança), é um dos princípios básicos do Estado de Direito, fazendo parte do sistema constitucional como um todo.

Como decorrência desse princípio geral do Direito, invoca-se também o princípio da boa-fé para impor ao Poder Público os deveres de agir com certa previsibilidade e de respeitar as situações constituídas pelas normas por ele editadas e reconhecidas, de modo a trazer estabilidade e coerência em seu comportamento.

A Lei n. 9.784, de 29 de janeiro de 1999, quando estabelece as disposições gerais no âmbito da Administração Pública Federal, determina a aplicabilidade desses postulados, conforme se infere da disposição contida no inciso XIII do parágrafo único do art. 2º do aludido diploma legal:

Art. 2º A Administração Pública obedecerá, dentre outros, aos princípios da legalidade, finalidade, motivação, razoabilidade, proporcionalidade, moralidade, ampla defesa, contraditório, segurança jurídica, interesse público e eficiência.

Parágrafo único. Nos processos administrativos serão observados, entre outros, os critérios de:

(...)

XIII – interpretação da norma administrativa da forma que melhor garanta o atendimento do fim público a que se dirige, vedada aplicação retroativa de nova interpretação.

Assim sendo, a nova hermenêutica sobre a aplicação da norma legal no âmbito da Administração Pública Federal não poderá ter aplicação retroativa, sob pena de ofensa ao postulado da segurança jurídica.

A mesma preocupação também deve existir no tocante à anulação do ato administrativo de concessão de um benefício previdenciário. O Poder Judiciário tem assentado, em diversos julgados, que o princípio da estrita legalidade conjuga-se, sistematicamente, com os princípios da boa-fé e da segurança jurídica.

Na mesma linha, LUISA CRISTINA PINTO NETTO afirma:

É possível sustentar que o princípio da legalidade (estrita) deve ceder, em determinados casos, diante de outros princípios, como o da segurança jurídica e da proteção à boa-fé. Pode-se, talvez com mais acerto, conceber a legalidade em sentido mais amplo, matizada pela segurança jurídica e pela proteção da boa-fé, admitindo preterir artigos de lei – ou melhor, regras jurídicas – para considerar uma situação nascida em confronto com tais artigos – rectius, regras – consolidada em virtude do decurso de tempo e da necessidade de estabilidade das relações sociais; (...)

Percebe-se que, contrariamente ao que tem sido preconizado pela própria administração pública, o novo entendimento objeto deste artigo tem sido aplicado com eficácia ex tunc, compelindo o segurado a devolver benefícios previdenciários que estavam sendo percebidos com base em uma decisão judicial – muitas delas proferidas em sede de sentença ou mesmo no âmbito de um tribunal de segunda instância.

Com relação ao julgamento do Tema 692 por parte do STJ operou-se o trânsito em julgado da decisão proferida por aquela Corte somente em 03.03.3017, quando já estava em vigor o Novo Código de Processo Civil.

Nos termos do art. 1.046 do CPC, em vigor desde 18 de março de 2016, com a redação que lhe deu a Lei n. 13.105, de 16 de março de 2015, suas disposições aplicar-se-ão, desde logo, aos processos pendentes.

O CPC 2015 traz consigo os seguintes artigos relacionados à modulação de efeitos e sobre o direito jurisprudencial:

Art. 927 Os juízes e os tribunais observarão:

(...)

§ 3º Na hipótese de alteração de jurisprudência dominante do Supremo Tribunal Federal e dos tribunais superiores ou daquela oriunda de julgamento de casos repetitivos, pode haver modulação dos efeitos da alteração no interesse social e no da segurança jurídica.

§ 4º A modificação de enunciado de súmula, de jurisprudência pacificada ou de tese adotada em julgamento de casos repetitivos observará a necessidade de fundamentação adequada e específica, considerando os princípios da segurança jurídica, da proteção da confiança e da isonomia.

Infere-se claramente que pela conjugação entre o caput do art. 927 – que menciona que os juízes e os

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tribunais – e o § 3º do mesmo artigo que a modulação – para a preservação do interesse social e da segurança jurídica – pode ser aplicada por todos os magistrados na hipótese de mudança de jurisprudência dominante, ainda que o órgão prolator não tenha modulado a eficácia de sua decisão como se procedeu no julgamento do Tema 692.

Nesse sentido, a Turma Nacional de Uniformização dos Juizados Especiais Federais proferiu a seguinte decisão a respeito do tema, determinando a aplicação do entendimento do STJ somente para decisões judiciais precárias concedidas após o trânsito em julgado do repetitivo proferido por aquela Egrégia Corte:

EMBARGOS DE DECLARAÇÃO EM PEDIDO NACIONAL DE UNIFORMIZAÇÃO DE JURISPRUDÊNCIA. OMISSÃO. INEXISTÊNCIA. PRETENSÃO DE OBTENÇÃO DE EFEITOS INFRINGENTES COM BASE EM JURISPRUDÊNCIA FIRMADA, EM DEFINITIVO, APENAS APÓS O JULGAMENTO DO CASO. IRRETROATIVIDADE DOS PRECEDENTES. EMBARGOS CONHECIDOS, PORÉM NÃO PROVIDOS.

1. Trata-se de embargos de declaração, através dos quais o ente público pretende obter a reforma do julgado, uma vez que este teria desrespeitado o entendimento do STJ, manifestado em sede de recurso especial, julgado no dia 12.02.2014, sob o rito dos recursos repetitivos: REsp. n. 1.401.560.

2. Em seu recurso, o ente público alega que houve desrespeito à regra constante do art. 1.022, parágrafo único, inciso I, do CPC, segundo a qual, para efeitos de embargos de declaração considera-se omissa a decisão que [...] deixe de se manifestar sobre tese firmada em julgamento de casos repetitivos ou em incidente de assunção de competência aplicável ao caso sob julgamento.

3. Nos termos do art. 1.022 do CPC, cabem embargos de declaração contra qualquer decisão judicial, desde que a parte tenha como objetivo: a) esclarecer obscuridade ou eliminar contradição; b) suprir omissão de ponto ou...

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