Tese da 'vida toda': vamos interpretar para decidir ou simplesmente declarar a Lei?

AutorDiego Henrique Schuster
Páginas73-78

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Diego Henrique Schuster 1

Introdução

Antes de qualquer outra coisa, cumpre esclarecer que o que se discute aqui é o direito dos segurados, filiados ao RGPS antes do advento da Lei n. 9.876/1999, de ampliar o período básico de cálculo com a inclusão de salários de contribuição anteriores a julho de 1994, quando mais vantajoso, é claro.

O estudo será dividido, em seu desenvolvimento, em cinco partes. Na primeira parte, são feitas breves considerações sobre como surgiu a tese da “vida toda”. Na segunda parte, ganha destaque a importância de se interpretar/reconstruir a história jurídico-institucional das regras de transição. Na terceira, propõe-se uma superação do que sempre “espatifa” na textura fechada da regra. Na quarta e na última, não há como cindir o direito ao melhor benefício da tese da jurídica, tampouco se deixar de oferecer uma resposta constitucionalmente adequada ao cidadão.

Esse artigo seria mais comprido e menos direto se existissem objeções sérias à tese. Porém, o único obstáculo para o direito é a utilização do método silo-gístico/subsuntivo, numa aplicação mecânica de regras (in)constitucionais e (i)legais. Em tempos de discussão sobre uma possível reforma da previdência social, esse tipo de reflexão é importante, já que a utilização desse tipo de logística faz do Poder Judiciário um mero instrumento do positivismo. Segundo Ronald Dworkin: “Uma vez, porém, que um juiz tenha aceitado o convencionalismo como guia, não terá novas ocasiões de interpretar o registro legislativo como um todo, ao tomar decisões

sobre casos específicos. O pragmatismo sobre as melhores regras para o futuro.”2

Pra entender: como surgiu a tese da “vida toda”?

A Constituição Federal, na sua redação original, estabeleceu, no seu art. 202, que as aposentadorias deveriam ser calculadas sobre a média de 36 últimos salários de contribuição, com base, portanto, nos três últimos anos de contribuição do segurado. A Lei n. 8.213/1991 adotou tal regra constitucional de cálculo da aposentadoria para os benefícios previdenciários de modo geral.

A Lei n. 9.876/1999, por vezes, estendeu o PBC para 80% de todo o período contributivo do segurado, o que tem aplicação para os filiados do RGPS a partir de 29.11.1999. Para quem se filiou ao regime antes, o art. 3º, caput, trouxe uma regra de transição, para considerar todo o período contributivo desde a competência de julho de 1994, além do que se dominou chamar de “mínimo divisor”, no § 2º:

Art. 3º Para o segurado filiado à Previdência Social até o dia anterior à data de publicação desta Lei, que vier a cumprir as condições exigidas para a concessão dos benefícios do Regime Geral de Previdência Social, no cálculo do salário-de-benefício será considerada a média aritmética simples dos maiores salários-de-contribuição, correspondentes a, no mínimo, oitenta por cento de todo o período contributivo decorrido desde a competência julho de 1994,

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observado o disposto nos incisos I e II do caput do art. 29 da Lei n. 8.213, de 1991, com a redação dada por esta Lei.

§ 1º (...).

§ 2º No caso das aposentadorias de que tratam as alíneas b, c e d do inciso I do art. 18, o divisor considerado no cálculo da média a que se refere o caput e o § 1º não poderá ser inferior a sessenta por cento do período decorrido da competência julho de 1994 até a data de início do benefício, limitado a cem por cento de todo o período contributivo.3 (grifo nosso)

A tese da “vida toda”, no sentido de se considerar toda a vida contributiva do segurado, nasceu como uma alternativa para se tentar afastar a aplicação do “mínimo divisor”, que, em alguns casos, pode ser pior do que o fator previdenciário – uma relativização do § 2º do art. 3º da Lei n. 9.876/1999. Fica fácil entender o porquê disso: para o segurado que possuir menos de 60% de contribuições entre julho/1994 e o mês anterior a data de início do benefício, o divisor considerado no cálculo será de 60% de todo o período, atribuindo-se o valor ficto de zero até completar essa fração. Exemplificando:

DER 10/2011

Número de competências existentes no período básico de cálculo: 207

Número de contribuições recolhidas: 92

Divisor: 124 (207 x 60%)

O cálculo foi a soma dos 92 SC corrigidos monetariamente e divididos por 124

Nesse caso, o INSS irá considerar R$ 0,00 para 32 competências, causando um significativo prejuízo na renda mensal do titular do benefício4.

Para onde aponta a pré-compreensão que se possui sobre as regras de transição em matéria previdenciária – condição para compreensão?

Não se pode discutir o direito ao segurado optar uma ou outra regra sem antes saber o que é uma regra de transição Se eu não tenho essa pré-compreensão, a tese da “vida toda” sequer se coloca para mim. Segundo Lenio Streck: “Para interpretar, necessitamos compreender; para compreender, temos de ter uma pré-compreensão, constituída de estrutura prévia de sentido – que se funda essencialmente em uma posição prévia (...), visão prévia (...) e concepção prévia”.5

A tradição no direito pátrio revela a necessidade de períodos de transição para que toda e qualquer mudança no ordenamento normativo seja implementada pouco a pouco. Assim, as regras de transição existem para atenuar os efeitos das novas regras aos segurados já filiados ao regime, e nunca – jamais – para prejudicar. Nesse sentido, há que se fazer uma reconstrução consistente do instituto, ajustando-o ao caso narrado.

Com efeito, a compreensão que se tem das regras de transição aponta para a sua aplicação facultativa diante de uma regra atual mais vantajosa. A regra de transição, como tal, somente deve ser aplicada se a regra nova não for mais benéfica ao segurado, ou seja, se a média dos 80% maiores salários de contribuição do autor (regra nova) resultar em um salário de benefício maior que a média dos 80% maiores salários de contribuição a partir de julho de 1994 (regra de transição), deve-se aplicar a nova regra.

Numa comparação direta entre segurados filiados antes e depois da edição da Lei n. 9.876/1999, e em condições iguais de aposentadoria, considerando a média de toda vida contributiva, chega-se à conclusão de que eles podem acabar recebendo um valor de aposentadoria muito diferente em razão de um poder contar com as contribuições de uma vida toda e o outro, que justamente foi tomado de assalto pela mudança – e, por isso, não pôde planejar sua aposentadoria –, só com as contribuições vertidas após 07/1994, às vezes, período com falhas na contribuição. Enfim, é prejudicado com a regra de transição aquele que também foi prejudicado com a mudança no quadro geral.

Como uma regra de transição, que tem por objetivo atenuar as consequências nocivas da nova lei, pode ser obrigatória para aquelas cuja mudança é mais vantajosa?

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Da necessidade de uma resposta hermeneuticamente adequada

Não precisamos do Poder Judiciário para apenas declarar a lei – como a tradução direta de um texto em língua estrangeira , mas, e isso sim, para interpretar a regra, no caso concreto. O Direito não cabe na lei. No plano na fundamentação, Ovídio Araújo Baptista da Silva já deitou tinta sobre a diferença entre fundamentar uma decisão judicial e apenas explicá-la, ao afirmar que “o modo de justificar a descoberta da ‘vontade da lei’ não corresponde a uma verdadeira fundamentação da sentença” (grifo do autor)6.

Com a devida vênia, mas o que o Superior Tribunal de Justiça fez até agora, em sede de decisão monocrática, foi tentar determinar o sentido do texto de maneira abstrata, razão pela qual a interpretação sempre espatifa no texto de lei. A dimensão da...

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