Processos decisórios automatizados: uma abordagem da filosofia da tecnologia

AutorCesar Felipe Cury
Ocupação do AutorDesembargador do Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro
Páginas477-492
PROCESSOS DECISÓRIOS AUTOMATIZADOS:
UMA ABORDAGEM DA FILOSOFIA
DA TECNOLOGIA
Cesar Felipe Cury
Desembargador do Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro.
Sumário: 1. Considerações Introdutórias. 2. Considerações históricas. 3. Ciência e Técnica. 4.
Processo, ciência e técnica. 5. Técnica processual e processo tecnodigital. 6. Tecnologia digital,
processo tecnodigital e jurisdição virtual. 7. Filosoa da Tecnologia: uma análise losóca do
processo tecnodigital. 8. A tecnologia nos tribunais brasileiros. 9. On-line dispute resolution.
10. Conclusão. 11. Referências.
1. CONSIDERAÇÕES INTRODUTÓRIAS
A tecnologia digital tem se tornado cada vez mais constante na vida cotidiana de
indivíduos e sociedades, sobretudo nos países ocidentais mais industrializados.1
De certo modo, a tecnologia digital se tornou a principal mediadora das relações
interpessoais e interorganizacionais, e sua presença nas mais diversas instâncias da socie-
dade contemporânea caracteriza o que se tem denominado uma existência tecnológica
e virtualmente entrelaçada.2
A tecnologia digital3 não se limita a um conjunto de instrumentos, ferramentas ou
dados virtuais para aplicação eletiva por indivíduos e instituições. Antes, se mostra como
um complexo intrincado de artefatos e sistemas integrados à própria ideia de mundo
da vida,4 sendo indissociável do modo de ser no mundo de pessoas e organizações nas
sociedades em transição entre a modernidade e a pós-modernidade.
A sociedade tecnologicamente entrelaçada pode ser constatada no cotidiano de
qualquer indivíduo ou organização, sobretudo nos países ocidentais, em que existe
ampla disponibilidade da tecnologia e um estado de permanente interconectividade.
Como condição de possibilidade e de orientação ao ser humano no mundo de re-
lações, ao mesmo tempo indispensável e imperceptível aos seus usuários e a todos que
1. MOROZOV, Evgeny. Big Tech: A ascensão dos dados e a morte da política. São Paulo: Ubu Editora, 2018.
2. IHDE, Don. Tecnologia e o mundo da vida: do jardim à terra. Editora UFFS SciELO. Edição do Kindle. p. 22.
3. Por tecnologia digital se compreende o conjunto de técnicas e sistemas algorítmicos e artefatos tecnodigitais que
proporcionam condições de interconectividade virtual entre indivíduos, grupos e máquinas.
4. HEIDEGGER, Martin. A questão da técnica in Ensaios e Conferências. Trad. Emmanuel Carneiro Leão, Gilvan
Fogel e Marcia Sá Schuback. Petrópolis: Vozes, 2018. p. 17.
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por ela são atingidos,5 a tecnologia é naturalizada ao senso comum, o que praticamente
elimina a possibilidade de elaborações críticas aos artefatos e sistemas tecnológicos.
A signif‌icativa ampliação da capacidade de armazenamento e associação entre
enormes volumes de dados (Big Data) e o recente desenvolvimento de recursos como
inteligência artif‌icial, predição de resultados e aprendizado de máquinas tornaram possí-
vel sua aplicação em práticas jurídicas tradicionais e em seus principais institutos, como
o processo e o judiciário. A assimilação pela tecnologia desses institutos jurídicos e a
incorporação de suas estruturas e funções a artefatos digitais existentes em ecossistemas
virtuais impuseram uma hibridação às práticas jurídicas, transformando os mecanismos
jurídicos em tecnodigitais6.
As transformações dos serviços jurisdicionais causaram importantes repercussões
no campo teórico-f‌ilosóf‌ico em que se sustenta a ciência e a dogmática jurídica, especial-
mente a processual e a judiciária, desaf‌iando uma revisão dos seus principais conceitos.
A despeito, todavia, dos inegáveis benefícios, a tecnologia aplicada ao processo e à
jurisdição, como de resto qualquer conjunto técnico sistematizado, traz em si determi-
nados aspectos que suscitam questionamentos relevantes. Na tecnologia digital, temas
como opacidade dos procedimentos algorítmicos, enviesamentos discriminatórios e
responsabilidade decisória exigem ref‌lexões tanto quanto os aspectos subjacentes à
concepção e ao design dos sistemas e artefatos quanto às escolhas técnicas e à arquitetura
algorítmica, área do conhecimento restrita basicamente aos prof‌issionais das ciências
da computação, o que recomenda a formulação de disciplinas técnicas que permitam o
acompanhamento e a colaboração de especialistas jurídicos e da rede de utilizadores e
interessados nos sistemas tecnodigitais.
Além disso, há questões de natureza f‌ilosóf‌ico-teórica.
Mario Bunge anota que toda investigação científ‌ica está assentada em pressupostos
tão gerais que são de ordem f‌ilosóf‌ica. São hipóteses que não se podem formular explici-
tamente, nem se costumam questionar. Como demonstra o f‌ilósofo argentino,
un investigador no comienza su día de trabajo preguntándose si sus objetos de estudio existen realmente,
si se comportan conforme las leyes, si es posible alcanzar algún conocimiento de ellos, si es necesario
razonar para conocer, o si es inmoral fabricar datos. Simplemente, acepta un conjunto de supuestos
sobre la naturaleza de las cosas, las maneras de conocerlas y las normas morales que guían sus esfuerzos.
Este conjunto de supuestos que subyace a toda investigación cientíca es la visión general o trasfondo
losóco que caracteriza em enfoque cientíco.7
As transformações operadas nas práticas jurídicas suscitam, portanto, a necessidade
f‌ilosóf‌ica de conformação de novos pressupostos conceituais.
Identif‌icar o que se considere artefato e sistema digital, para a f‌inalidade jurídica, as-
sim como a ontologia de uma facticidade virtual hermeneuticamente acessível; a interação
hermenêutico-linguística e a condição mesma do conhecimento no ecossistema digital;
5. BECK, Ulrich. A metamorfose do mundo: novos conceitos para uma nova realidade. Rio de Janeiro: Zahar. 2016.
6. NUNES, Dierle; LUCON, Paulo; WOLKART, Erik. (Org.) Inteligência artif‌icial e direito processual: os impactos da
virada tecnológica no direito processual. Salvador: JusPodium, 2020. p. 17.
7. BUNGE, Mario. Ciencia, Técnica y Desarollo. Buenos Aires: Editorial Sudamericana, 1997. p. 157.
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