O tabu do superendividamento da pessoa física: uma sugestão de abordagem

AutorThomas Benes Felsberg e Fabiana Bruno Solano Pereira
Páginas37-52
O TABU DO SUPERENDIVIDAMENTO DA PESSOA
FÍSICA: UMA SUGESTÃO DE ABORDAGEM
Thomas Benes Felsberg
Sócio fundador do Felsberg Advogados e referência mundial na área de falência e
recuperação de empresas. Reconhecido por publicações como Latin Lawyer, Cham-
bers and Partners, The Legal 500 e Leaders League como um dos advogados líderes de
insolvência no Brasil, participou dos comitês responsáveis pela elaboração da atual Lei
de Falências e Recuperação de empresas. LL.M. (Mestrado em Direito) pela Columbia
University. Graduado em Direito pela USP – Universidade de São Paulo.
Fabiana Bruno Solano Pereira
Sócia do escritório Felsberg Advogados. Formada pela PUC-SP e com LL.M. em Stanford,
USA. Atua ativamente na representação de devedores, credores e investidores em reestru-
turações privadas de dívidas e processos de recuperação judicial, extrajudicial e falências.
Agradecemos especialmente ao André Drumon e à Fernanda Correa,
que indiretamente contribuíram com este artigo, ao desenvolverem
parte da tese aqui colocada em um caso prático de insolvência civil
em que atuamos, e que infelizmente tem condenado o insolvente, um
senhor de boa-fé de quase 80 anos, ao fardo de um processo intermi-
nável, que o leva ser um perpétuo excluído da vida civil
Sumário: 1. Introdução – 2. Os problemas da insolvência civil – 3. A nova lei do superendivida-
mento – 4. As disposições da Lei 11.101/05 Sobre o Fresh Start – 5. Uma possível abordagem
mais humana e eciente à insolvência do indivíduo – 6. Conclusão – 7. Referências.
1. INTRODUÇÃO
A insolvência vem sendo um tema central de discussão nos últimos dois anos, em
razão da crise econômica mundial def‌lagrada com a pandemia de Covid-19. Portanto,
não é surpresa que pautas importantes relacionadas ao tema, muitas delas em discussão
no Congresso Nacional há anos, fossem colocadas em prioridade para análise e votação.
Assim foi feito com a tão discutida reforma da Lei 11.101/05 (“LRF”), voltada à
recuperação e à falência do empresário e da sociedade empresária, que entrou em vigor
em janeiro de 2021 com o intuito de incentivar a célere recuperação da empresa devedora,
ou a reinserção dos seus ativos produtivos na economia, no caso da falência1.
1. Conquanto a lei em regra seja destinada às pessoas jurídicas (e aos empresários individuais, que a utilizam em raras
situações), a reforma instituída pela Lei 14.112/20, que entrou em vigor em janeiro de 2021, cuidou de alguns temas
sensíveis envolvendo certas pessoas físicas, em razão do seu envolvimento direto com a atividade empresarial insol-
vente: por exemplo, agora há normas mais claras permitindo a recuperação judicial do produtor rural e disciplinando,
por outro lado, a reabilitação do falido, com a introdução do fresh start em nosso ordenamento jurídico.
EBOOK LRF VOL 4.indb 37EBOOK LRF VOL 4.indb 37 09/12/2021 20:04:1709/12/2021 20:04:17
THOMAS BENES FELSBERG E FABIANA BRUNO SOLANO PEREIRA
38
O legislador também voltou seus olhos às pessoas naturais endividadas, que hoje
representam o enorme contingente de 69,7% das famílias brasileiras2, incluindo neste total
impressionantes 30 milhões de superendividados3. Até recentemente o tema era apenas
regulado pelo antigo Código de Processo Civil de 1973, que apesar de revogado ainda
rege a malfadada insolvência civil, equiparada à “falência” da pessoa física. O instituto,
no entanto, caiu em desuso em razão da sua f‌lagrante inef‌iciência.
A verdade é que o tema permanece um tabu (quase) intransponível na sociedade
brasileira e é ainda visto como “calote” por diversos setores da economia, que temem
as suas consequências. Por conta disso, vivemos até recentemente um vazio legislativo
quanto ao tratamento do devedor pessoa física que, de boa-fé, fracassou na administra-
ção dos seus ativos e passivos. Ao contrário das empresas, que hoje têm a oportunidade
de se engajar num processo coletivo de negociação compulsória com seus credores, o
indivíduo devedor não contava com meios legais de superar essas dif‌iculdades. Ele se
tornava, assim, um pária na sociedade, incapaz até mesmo de ter uma conta bancária
com saldo mínimo à sua subsistência livre dos ataques dos credores. Não à toa, a insol-
vência ainda representa para esses indivíduos uma morte civil certeira, mais penosa do
que o fardo do criminoso penal, que tem direito à prescrição dos seus crimes. Aqui, o
devedor na prática não está sujeito a prescrição alguma, sequer a intercorrente. Passa a
vida tentando uma reabilitação, que nunca chega.
O cenário agora começa a mudar, com a recente promulgação da Lei 14.181/21, que
alterou o Código de Defesa do Consumidor e o Estatuto do Idoso para implementar polí-
ticas relacionadas à prevenção e ao tratamento do endividamento das pessoas naturais4.
A nova lei, batizada de Lei do Superendividamento, introduz princípios importantes no
ordenamento jurídico, como o direito de o consumidor manter um mínimo existencial
preservado e de não ser socialmente excluído, e permitindo-lhe assim alguma chance de
reabilitação.
Parece pouco, mas não é. A Lei do Superendividamento representa uma mudança
de paradigma importante e o reconhecimento de que existe de fato um problema a ser
sanado.
É interessante notar que o direito do consumidor endividado à reabilitação não se
presta apenas a um tratamento condizente com sua dignidade humana5 (o que já seria
razão suf‌iciente para mobilizar a sociedade na solução do problema), mas serve também
de estímulo necessário à economia: af‌inal, com quase 70% de famílias endividadas no
país, o que será do consumo interno de bens e serviços produzidos pelas empresas e em-
presários individuais? Toda a produção nacional será voltada à exportação, enquanto a
2. “O percentual de famílias que relataram ter dívidas (cheque pré-datado, cartão de crédito, cheque especial, carnê
de loja, crédito consignado, empréstimo pessoal, prestação de carro e de casa) alcançou 69,7% em junho de 2021,
alta de 1,7 ponto percentual em relação a maio de 2021, e a maior elevação mensal desde março de 2017. Em
relação a junho de 2020, a alta foi de 2,5 pontos, o maior incremento anual desde agosto de 2020” – disponível
em: https://www.portaldocomercio.org.br/publicacoes/pesquisa-de-endividamento-e-inadimplencia-do-consu-
midor-peic-junho-de-2021/363192.
3. Disponível em: https://idec.org.br/idec-na-imprensa/projeto-que-pode-ajudar-30-milhoes-de-superendividados-
-segue-empacado-na-camara.
4. Artigo 4º, incisos IX e X, da Lei 8.078/90.
EBOOK LRF VOL 4.indb 38EBOOK LRF VOL 4.indb 38 09/12/2021 20:04:1709/12/2021 20:04:17

Para continuar a ler

PEÇA SUA AVALIAÇÃO

VLEX uses login cookies to provide you with a better browsing experience. If you click on 'Accept' or continue browsing this site we consider that you accept our cookie policy. ACCEPT