Titularidade do serviço de saneamento básico

AutorRicardo Marcondes Martins
Páginas253-293
253
TITULARIDADE DO SERVIÇO
DE SANEAMENTO BÁSICO
RICARDO MARCONDES MARTINS
Sumário: Breve introdução. 1. Estado federal. 2. Serviço de
saneamento básico. 3. Teoria da troca de sujeito. 4.
Inconstitucionalidade global da lei de saneamento básico.
Conclusões. Referências Bibliográficas.
BREVE INTRODUÇÃO
O exame da titularidade do serviço de saneamento básico exige uma
prévia advertência. Este estudo tem pretensão científica: objetiva alcançar
a interpretação mais consentânea com o conjunto normativo vigente.
Nem sempre os temas jurídicos são examinados sob esse enfoque: na
maioria das vezes o exame tem pretensão advocatória, intenta a defesa de
determinado interesse. Essa, provavelmente, é a causa da divergência
entre o que será exposto neste estudo e o que foi até o momento apre-
sentado pela doutrina brasileira. A diferença de resultados decorre,
mister enfaticamente sublinhar, da diferença de enfoque.
Vigoram na Ciência do Direito alguns postulados fundamentais. Um
dos mais importantes é o da supremacia da Constituição, segundo o qual
as normas constitucionais são o fundamento formal e material de todas as
demais normas jurídicas. As normas infraconstitucionais não apenas
254
RICARDO MARCONDES MARTINS
devem ser produzidas de acordo com o procedimento constitucional-
mente fixado; seu conteúdo não pode contrariar a Constituição. Trata-
se de uma afirmação óbvia, conhecida de todos os graduados em Direi-
to. Há, contudo, uma proporção direta entre o conhecimento desse
postulado e seu menoscabo: ele é amplamente conhecido e, infelizmen-
te, amplamente desdenhado. Daí a importância de se afirmar o óbvio
como ponto de partida: toda interpretação jurídica deve ser uma inter-
pretação conforme a Constituição.
A chamada Lei de Saneamento Básico, Lei Federal n. 11.445, de
05.01.2007, é notável exemplo de menosprezo ao texto constitucional vi-
gente. A contrariedade à Constituição não é apenas percebida numa de suas
regras específicas, nem apenas num conjunto delas, o problema é muito
pior: o próprio espírito da lei é viciado pela contrariedade ao texto magno.
O exame científico da titularidade do serviço de saneamento impõe expli-
citar, ainda que de forma sumária, os fundamentos dessa assertiva.
1. ESTADO FEDERAL
Logo no artigo 1º da Constituição de 1988 é enunciada a forma
do Estado brasileiro: trata-se de um Estado federal, formado pela união
indissolúvel dos Estados, Municípios e Distrito Federal. O assunto é re-
tomado no artigo 18, em que são apresentadas as quatro entidades que
compõem o Estado brasileiro: a União, os Estados, os Municípios e o
Distrito Federal, todas autônomas, enfatiza a parte final do preceito, nos
termos da Constituição. Em máxima síntese: um dos princípios estrutu-
rantes do ordenamento brasileiro é o federalismo.
A teoria do Estado Federal revela a inexistência de um modelo
universal impositivo aos textos constitucionais: o constituinte possui ampla
liberdade para estabelecer os contornos da forma federal. O signo federalismo
possui um núcleo essencial, indicativo, por exemplo, da existência de um
conjunto de duas ou mais entidades políticas autônomas, cuja união
constitui um ente soberano. Respeitado o núcleo essencial do signo, é o
texto constitucional que indica os contornos do princípio federativo.1 Deve-se,
1 Cai a lume a advertência de Halina Zasztowt Sukiennicka, citado por Oswaldo Aranha
Bandeira de Mello: “Nenhum Estado se assemelha a outro de tal forma que se possa
dizer que os seus respectivos regimes sejam idênticos. Eles, quando muito, podem ser
255
TITULARIDADE DO SERVIÇO DE SANEAMENTO BÁSICO
pois, perquirir qual foi o modelo federativo adotado pelo constituinte originário
de 1988. Somente o exame do texto originário pode revelar o sentido e
o alcance do federalismo no ordenamento brasileiro.
A leitura dos mencionados artigos 1º e 18 revela algo de extraor-
dinária importância: o federalismo brasileiro é marcado pela autonomia
municipal, mas uma autonomia municipal não parecida com a encontra-
da nos Estados Europeus, no sentido de uma autonomia administrativa, de
maior ou menor amplitude. Não! No federalismo brasileiro os Municí-
pios são entidades políticas autônomas, que estão em pé de igualdade com
os Estados-membros. O princípio da autonomia federativa municipal é, pode-
se dizer, verdadeiro idiotismo da linguagem constitucional brasileira.2
análogos. Para classificar um organismo estático nos quadros da noção Estado federal,
subsiste a mesma dificuldade. Os Estados que iniciaram o regime federativo, e que serviram,
portanto, de base para a elaboração das diversas teorias sobre a natureza jurídica do Estado
federal são os únicos que nunca têm contestada a sua estrutura federal. O mesmo se não
dá com os outros países, pois os seus regimes, embora modelados sobre os dos primeiros,
deles sempre se afastam e, muitas vezes, de maneira importante” (Fédéralisme en Europe
Orientale. 1926, p. 247, apud BANDEIRA DE MELLO, Oswaldo Aranha. Natureza
jurídica do Estado federal. São Paulo: Prefeitura do Município de São Paulo, 1948, pp.
16/17). O Estado brasileiro, de fato, apresenta peculiaridades não encontráveis nos demais:
como a seguir retomado, os Municípios são entidades federativas.
2 É da tradição constitucional brasileira a garantia da autonomia municipal. Já a Constituição
de 1891 consagrou-a expressamente no art. 68: “Os Estados organizar-se-ão de forma
que fique assegurada a autonomia dos Municípios, em tudo quanto respeite ao seu peculiar
interesse”. A valorização da autonomia municipal foi-se intensificando com o tempo,
alcançando seu apogeu no texto de 1988: mais do que autonomia administrativa, atribui-
se ao Município, de forma inédita na história do país, e pelo que se sabe na história
universal, a autonomia federativa. Para o exame da linha evolutiva da autonomia municipal
no ordenamento brasileiro antes da Constituição de 1988, vide CASTRO, José Nilo de.
Morte ou ressurreição dos Municípios?: estudo da autonomia municipal no Brasil e na França.
Rio de Janeiro: Forense, 1985. Até a Constituição de 1969, perceba-se, era possível a
comparação efetuada por esse autor entre o Município brasileiro e o Município francês,
pois ambos possuíam a mesma natureza jurídica. Após a Constituição de 1988 a comparação
tornou-se difícil: o Município francês não possui autonomia federativa.
Na doutrina brasileira, durante muito tempo José Afonso da Silva sustentou que os
Municípios, apesar do texto vigente, não são entidades federativas: “A Constituição
consagrou a tese daqueles que sustentam que o Município brasileiro é entidade de
terceiro grau, integrante e necessária ao nosso sistema federativo. Data vênia, essa é uma
tese equivocada, que parte de premissas que não podem levar à conclusão pretendida. Não
é porque uma entidade territorial tenha autonomia político-constitucional que
necessariamente integre o conceito de ‘entidade federativa’ (...) Em que muda a Federação

Para continuar a ler

PEÇA SUA AVALIAÇÃO

VLEX uses login cookies to provide you with a better browsing experience. If you click on 'Accept' or continue browsing this site we consider that you accept our cookie policy. ACCEPT