Acesso à justiça e tutela coletiva

AutorAdriana Campos de Souza Freire Pimenta
Ocupação do AutorJuíza do Trabalho do Tribunal Regional do Trabalho da 3ª Região, Titular da 4ª Vara do Trabalho de Coronel Fabriciano/MG; Juíza Auxiliar da Corregedoria-Geral do Tribunal Superior do Trabalho
Páginas117-126

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1. Introdução

Quando se fala em acesso à justiça, a primeira ideia é a de possibilidade de se valer do Poder Judiciário para ajuizar uma ação ou defender-se.

De fato, o direito constitucional de ação é um direito fundamental de primeira geração1, assegurado pela Constituição Federal de 1988 em vários de seus dispositivos, notadamente no art. 5º, inciso XXXV2; tendo o legislador constituinte também se preocupado em garanti-lo, na prática, por exemplo com a manutenção e destaque de tão importante instituição como a Defensoria Pública.3

Infelizmente, e nós sabemos, isto não é suficiente para que seja garantido, na prática, o acesso integral à justiça a todos os cidadãos, em razão das desigualdades ainda existentes na sociedade brasileira.

Contudo, neste artigo pretendemos ir além do direito individual de ação, destacando o processo coletivo4 como uma forma de democratizar o acesso à justiça e, ainda, de assegurar maior efetividade aos direitos fundamentais, a partir da realidade da sociedade contemporânea de massas: lides repetitivas, novos direitos, Poder Judiciário assoberbado, por um lado, pelo número de demandas e, de outro, pela seriedade das questões levadas a ele, muitas delas sem qualquer regulamentação normativa (princípio ou regra).

Para tanto, partiremos das noções de direitos fundamentais e de cidadania; destacando como esta deve ser construída não apenas a partir da regulamentação pelo Estado, mas como uma construção deste juntamente com a sociedade, merecendo destaque o importante papel do Ministério Público e dos corpos intermediários5, como as associações e os sindicatos.

Buscaremos, sempre, suscitar o debate, trazendo ideias para a solução mais rápida e eficaz dos conflitos e para uma maior efetividade dos direitos fundamentais.

2. Direitos fundamentais e cidadania

A noção de cidadania costuma coincidir com a evolução dos direitos fundamentais e as dimensões destes, classicamente admitidas em doutrina.

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Thomas H. Marshall, na obra Cidadania, classe social e status6, parte do pressuposto de que os direitos inerentes à cidadania são concedidos pelo Estado aos indivíduos que habitam seu território, dentro dos limites de sua soberania.7

Marshall entende a cidadania como "um modo de viver que brotasse de dentro de cada indivíduo e não como algo imposto a ele de fora".8 E que direitos seriam estes concedidos pelo Estado, conforme as necessidades e desejos de seus cidadãos?

Inicialmente, os direitos fundamentais são aqueles do indivíduo isoladamente considerado, em face do Estado e exigíveis, portanto, deste, tais como liberdade, igualdade: enfim, os direitos civis e políticos.

Com a noção de Estado Social9, os direitos fundamentais sociais passam a ser inseridos nas Constituições, como pondera Carlos Henrique Bezerra Leite, que desenvolve o tema: surge a chamada teoria do status positivo, ou seja, o Estado, além de proteger os direitos (liberdades) individuais, passa a atuar positivamente em prol dos direitos sociais, seja intervindo nas relações entre os particulares (dirigismo contratual), seja atuando diretamente por meio de prestações estatais positivas. [...] Vale dizer, o Estado Social passa a promover, diretamente, prestações de serviços, por meio de políticas públicas, para a realização de direitos, como o direito à saúde, à educação, ao trabalho, à assistência social, ao lazer, à cultura etc. Os direitos sociais, portanto, passam a ser exigíveis, cabendo aos Poderes do Estado, inclusive o Judiciário, assegurar sua plena fruição.10

Sobre as matérias que passam a integrar os textos constitucionais no pós-Primeira Guerra, Gilberto Bercovici11 afirma: constituições elaboradas após o final da Primeira Guerra Mundial têm algumas características comuns, particularmente, a declaração, ao lado dos tradicionais direitos individuais, dos chamados direitos sociais, ou direitos de prestação: direitos ligados ao princípio da igualdade material que dependem de prestações diretas ou indiretas do Estado para serem usufruídos pelos cidadãos. Estas novas Constituições consistem em uma tentativa de estabelecer uma democracia social, abrangendo dispositivos sobre a ordem econômica e social, a família, educação e cultura, bem como instituindo a função social da propriedade. As concepções sociais ou socializantes, assim como a determinação de princípios constitucionais para a intervenção estatal nos domínios social e econômico, são consideradas fundamentos do novo "constitucionalismo social" que estabelece em boa parte dos Estados europeus e alguns americanos.

E acrescenta, no mesmo artigo, que a partir de Weimar e da Constituição do México de 1917 a principal característica das constituições do século XX "passa a ser o seu caráter diretivo ou programático, que incorpora conteúdos de política econômica e social".

3. Cidadania: um conceito em construção

Em paralelo ao desenvolvimento do conceito de direitos fundamentais, as relações sociais e econômicas foram se modificando.

O mundo hoje é bem diferente daquele conhecido, talvez mesmo imaginado, por Thomas H. Marshall.12

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Como pondera Paulo Bonavides, "a consciência de um mundo partido entre nações desenvolvidas e subdesenvolvidas ou em fase de precário desenvolvimento deu lugar em seguida a que se buscasse uma outra dimensão dos direitos fundamentais, até então desconhecida."13

Referida fase assenta-se sobre a fraternidade para uns e a solidariedade para outros mas, em ambos os casos, tem uma forte carga de humanismo e universalidade, abrangendo não só os indivíduos ou grupos, mas o gênero humano.

São os direitos de terceira geração, dos quais são exemplos o desenvolvimento, a paz, o meio-ambiente, a comunicação e a propriedade sobre o patrimônio comum da humanidade.

Os novos direitos surgidos e as novas necessidades das pessoas que hoje habitam esse mundo sem fronteiras e que querem se ver igual e respeitosamente tratadas, em qualquer território em que se encontrem, são temas a serem considerados.

Desde os direitos civis, sexuais (dos homoafetivos), dos aborígines e das mulheres, passando até pelos direitos dos animais, de linguagem e dos deficientes, experimentamos, nas últimas décadas, uma forte tendência nos Estados ocidentais no sentido da formação de novas aspirações por inclusão e pertencimento; ponderam Isin e Turner.14

Gianpaolo Poggio Smanio15 afirma exatamente isso: na atualidade, a situação mundial mudou consideravelmente e novas variáveis tornam necessária uma nova perspectiva para a cidadania, que possa responder aos graves desafios contemporâneos. A exclusão social, a imigração, os novos movimentos sociais, a pluralidade religiosa e étnica e a globalização tornam imperiosa uma redefinição de cidadania.

Sobre a nova dimensão do conceito de cidadania, afirma o professor Smanio, no mesmo artigo, que, além de participativa, a cidadania deve ser ativa, buscando a construção de uma sociedade mais livre e igualitária, através da solidariedade.

Temos, então, não mais uma relação vertical com o Estado e, sim, uma relação horizontal, onde os cidadãos atuam como colaboradores do Estado, ao fazerem suas reivindicações e ao se organizarem em movimentos. Surge de estudos como esses um conceito contemporâneo de cidadania, que desafia sua variante moderna.

Como lecionam Isin e Turner16, a cidadania moderna nasceu do Estado-nação, no qual certos direitos e obrigações foram garantidos a indivíduos sob sua autoridade. Tipicamente, aí se incluem os direitos civis (liberdade de expressão e movimento e obediência à lei), políticos (votar, candidatar-se) e sociais (bem-estar, segurança no emprego e cuidados médicos). A exata combinação e a profundidade de tais direitos varia de um Estado para outro, mas um Estado democrático moderno deve manter um equilíbrio entre direitos e obrigações.

E, continuam eles, na mesma passagem, mencionando que em lugar de somente focalizar-se a cidadania como direitos legais, agora é certo que a cidadania também deve ser definida como um processo social pelo qual os indivíduos e grupos sociais se ocupam reivindicando, expandindo ou perdendo direitos.

Nesse sentido, Ana Maria D’Ávila Lopes17 afirma ser necessária uma redefinição de cidadania, segundo a qual o indivíduo passa a ser considerado (e a sentir-se) "protagonista político da sua própria história e da sua sociedade", o que garantiria a real participação de todos os cidadãos, na construção de uma sociedade livre, justa e solidária, objetivo do Estado Democrático brasileiro (art. 3º, I, Constituição Federal de 1988).

Nessa perspectiva, a Constituição Federal de 1988 valoriza a atuação dos corpos intermediários como os sindicatos e associações18, na defesa dos interesses e direitos daqueles que representam e, se em seu art. 5º, inciso XXXV, estabelece que "a lei não excluirá da apreciação do Poder Judiciário lesão ou ameaça a direito", atribuindo ao acesso à justiça um status de direito fundamental, como já ponderamos, também estabelece que "ao sindicato cabe a defesa dos direitos e interesses coletivos ou individuais

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da categoria, inclusive em questões judiciais ou administrativas", em seu art. 8º, III.

Contudo, da mesma maneira que os demais direitos fundamentais, o acesso à justiça previsto constitucionalmente é efetivo?

Ele é realmente assegurado a todos os cidadãos? Qual a melhor maneira de fazer com que o acesso à justiça seja o mais pleno, rápido e eficaz possível?

Receitas prontas não existem, como não poderia deixar de ser, em se tratando de ciência social aplicada. Contudo, entendemos que as ações coletivas podem auxiliar, e muito, na solução deste problema.

4. O direito fundamental de acesso à justiça e a proteção coletiva

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