O novo sentido da jurisdição na estratégia do poder judiciário nacional e seu desdobramento na experiência do Singespa/TRT 3-MG

AutorAntônio Gomes de Vasconcelos
Ocupação do AutorJuiz Titular da 5ª Vara do Trabalho de Belo Horizonte. Prof. Adjunto da Faculdade de Direito da UFMG. Mestre e doutor em Direito Constitucional (UFMG).
Páginas135-161

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"Os sistemas de alta complexidade que tendem a desintegrar, só podem lutar contra a desintegração através da sua capacidade de criar solução aos problemas". (Morin)

1. Introdução

As instituições são histórica e ideologicamente condicionadas. O presente ensaio, ao perscrutar sobre a "Justiça do século XXI" tem como ponto de partida o atual posicionamento da Justiça (autorreferencial) e da sociedade brasileira frente às seguintes questões, respectivamente: o modelo de racionali-dade e os códigos de conduta do Poder Judiciário nacional, a gestão judiciária, a administração da justiça e a jurisdição são condizentes com as premissas político-constitucionais do Estado democrático de direito concebido na Constituição brasileira (1988)? A prestação jurisdicional, tal como tradicionalmente prestada, atende às exigências e às demandas da sociedade brasileira contemporânea? Em ambos os casos denota-se que a resposta é negativa. O exame do gap1 estabelecido na Estratégia do Poder Judiciário nacional assim o revela. Do mesmo modo, estudos mais aprofundados no campo da Sociologia Jurídica e a análise de dados da opinião pública militam no mesmo sentido. Nesse sentido, identifica-se, no âmbito da Justiça, o desdobramento do que se vem designando como crise2 do estado moderno e de suas instituições. As profundas e multifacetárias transformações verificadas na sociedade contemporânea são determinantes de um processo paulatino de hipercomplexização dos contextos de atuação das instituições e sua capacidade de adaptação a estas novas realidades.

A Justiça deste século encontra-se diante do fenômeno da reestruturação capitalista marcada pela internacionalização e desregulamentação da econo-

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mia, internacionalização dos processos de decisão (enfraquecimento da soberania dos estados nacionais), "crescente perda da legitimidade da legitimi-dade da democracia representativa", desregulação e/ou precarização dos direitos sociais e pela sujeição da política à lógica dos mercados. Ela se situa entre o paradoxo de fazer cumprir a lei e assegurar a efetividade dos direitos dos cidadãos ampliados significativamente sob a égide do estado demo-crático de direito (CF/88), num contexto político- -socioeconômico em que a esfera econômica está "subordinada mais à racionalidade do mercado do que à racionalidade do direito".3

Por isso, Faria adverte que o futuro da Justiça no Brasil frente às consequências sociais dos mercados, da universalização da concorrência e da concentração do poder do poder econômico, do desequilíbrio dos poderes, frente ao conflito entre os princípios de mercado e os princípios fundamentais inscritos na constituição em especial o da dignidade humana, valores sociais do trabalho e da livre iniciativa que emerge no bojo das políticas econômicas e outros desafios, dependerá de o como os tribunais vão se comportar diante de tais problemas.4

Contudo, a crise da jurisdição, multifatorial, agrega elementos que parecem não se vincular, exclusivamente, às determinantes de um mundo globalizado. Fatores de ordem epistemológica e teórico-ideológicos oriundos da matriz positivista do estado liberal em contradição com as premissas do Estado constitucional democrático de direito e seus reflexos nas práticas jurisdicionais e de ordem estrutural e seus reflexos na burocracia judiciária e nos modelos tradicionais de gestão judiciária e de administração de justiça, acrescidos de deficit instrumentais e de recursos humanos se somam aos desafios a serem enfrentados.5

O exaurimento das condições epistemológicas da atividade jurisdicional6 - aspecto qualitativo, compromete a realização dos princípios e valores do projeto de sociedade do estado democrático de direito inscrito na Constituição Federal. A "explosão da litigiosidade"7 compromete as condições estruturais e funcionais da atividade jurisdicional e a garantia da efetividade dos direitos com observância da exigência da duração razoável do processo - aspecto qualitativo.

Ao lado da crise de identidade funcional, emerge, portanto, uma crise epistemológica de dimensões mais profundas. Trata-se da crise dos fundamentos dogmáticos da modernidade que responde por uma jurisdição orientada para o passado na perspectiva do direito visto como um modelo de regulação e reprodução social, enquanto o direito do Estado democrático contemporâneo aponta para o futuro, no sentido da realização de um projeto de sociedade constitucionalizado, na perspectiva do "novo constitucionalismo".

Nestes termos, a Justiça do século XXI parece estar diante da exigência de uma refundação com base em novos paradigmas8 de modo a torná-la apta a assegurar no plano da realidade concreta a efetividade dos direitos (fundamentais e sociais) com base em um princípio de justiça substantiva. Trata-se, portanto, de uma Justiça que não se restrinja à mera "pacificação" dos conflitos sociais mas de uma Justiça, juntamente com o conjunto das demais esferas do poder público, engajada na realização do projeto constitucional da sociedade brasileira.

Ante o grau de complexidade das medidas destinadas ao enfrentamento de tais destacam-se menos quatro aspectos fundamentais que orientam a presente reflexão.

O primeiro se refere à questão paradigmática. Tem-se por decisiva a crítica do que Leonel Rocha designa por matrizes teórico-políticas da teoria jurídica contemporânea9 frente ao novo arcabouço político-jurídico e ao princípio de democracia instituído pela Constituição de 1988 e seus reflexos na renovação da identidade funcional do Poder Judiciário. Esta formulação esta diretamente vinculada com a reformulação do sentido da jurisdição e das práticas jurisdicionais e põe em relevo a questão do conteúdo dos programas de formação da magistratura. Nesta dimensão, admite-se que o redesenho da nova Justiça do século XXI não pode desprezar a questão paradigmática. Isto é, a "cultura" jurídica subjacente ao modelo de racionalidade que preside

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as práticas-jurídico institucionais e seu cotejo com os fundamentos constitucionais do projeto de socie-dade inscrito na Constituição Federal. Nela, põe-se em relevo: a) a busca de uma matriz teórico-política do direito na qual se possa sustentar uma reestruturação da administração da justiça em consonância com o paradigma do estado democrático de direitos instituído na Constituição de 1988; 2) elaboração crítico-construtiva de uma articulação interativa entre a referida matriz e as premissas constantes da Estratégia do Poder Judiciário Nacional;

Em segundo lugar, considera-se que a abertura do sistema judiciário à participação da sociedade na administração da justiça definida na Estratégia do Poder Judiciário nacional é medida de extraordinária relevância estratégica para o alcance da missão institucional. Ao lado da conciliação judicial o fomento e a implementação dos meios não judiciais de prevenção e resolução dos conflitos é medida igualmente indispensável para se contornar a ameaça do colapso da Justiça e para o cumprimento do direito constitucional dos cidadãos à duração razoável do processo. Se, por um lado, a conciliação, vista com fundamento nos princípios de justiça substantiva do Estado democrático de direito somente se pode legitimar mediante o compromisso com a efetividade e integridade dos direitos. A conciliação judicial há de ser desmassificada para dar conta deste compromisso. Nestes termos, procura-se reacender:

· o debate acadêmico-institucional acerca da participação da sociedade na administração da justiça, agora sob o enfoque dos meios não judiciais de resolução dos conflitos e no universo mais reduzido da Justiça do Trabalho. No campo específico dos direitos laborais, a vocação conciliatória da Justiça do Trabalho, que elevou ao paroxismo sua capacidade de resolução não adversarial dos conflitos, já se consolidara desde antes da atual crise da Justiça, razão pela qual:

· o exclusivismo judicial e o fomento à conciliação judicial não poderá apresentar resultados tão significativos se o sentido da jurisdição for reconstruído a partir de um princípio de justiça substantivo e não meramente formal. À estratégia da participação da sociedade na administração da justiça se apresentam desafios culturais ideológico-paradigmáticos relevantes. Porém, não são desprezíveis os riscos da aposta na exclusividade e no monopólio judiciário na resolução dos conflitos laborais:

  1. a exacerbação da resolução dos conflitos por critérios formais e não substantivos de justiça e sua incoerência com as premissas do Estado democrático de direito contribui para o agravamento da deslegitimação social do Poder Judiciário; b) a delonga na resolução de demandas de maior complexi-dade e/ou repercussão social pela absorção de demandas suscetíveis de serem solucionadas pela via extrajudicial e em razão do aumento exponencial da demanda advinda da ampliação das competências da Justiça Laboral e do agravamento da inadimplência dos direitos trabalhistas decorrente da competitividade do mercado internacionalizado e da crescente conscientização social acerca dos direitos individuais do trabalho põe em xeque a efetividade do princípio da duração razoável do processo; c) a perda da especificidade histórica da Justiça do Trabalho, em especial a celeridade e a sua condição de "mediador social" do conflito capital & trabalho. Nesse passo, apresenta-se uma profunda crise identitária que, mais cedo ou mais tarde a Justiça laboral se verá obrigada a enfrentar: uma vez sufocada em meio aos conflitos de massa cuja solução autocompositiva passa a ter menor significação...

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