Do conflito à cooperação judiciária

AutorJosé Eduardo de Resende Chaves Júnior
Ocupação do AutorJuiz auxiliar da Presidência do Conselho Nacional de Justiça - CNJ, Titular da 21ª do Trabalho de Belo Horizonte/MG e doutor em Direitos Fundamentais. Presidente do Conselho Deliberativo da Escola Judicial da América Latina - EJAL
Páginas95-102

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1. Introdução

Jurisdição e gestão são duas ideias umbilicalmente imbricadas. O Judiciário sem gestão, sem ferramentas de mensuração de desempenho, sem análises e diagnóstico da litigiosidade, é como uma nau à deriva no meio do oceano dos conflitos sociais, sem bússola, em busca do primeiro porto. Não há, evidentemente, justiça à vista, nem terra da segurança jurídica nessas circunstâncias.

O CNJ em novembro de 2011, após um ano de desenvolvimento de projeto, aprovou a Recomendação n. 381, para instituir a Rede Nacional de Cooperação Judiciária, que foi inclusive transformada na meta geral n. 4 para 2012, consagrando um novo paradigma, que pode propiciar uma mudança estrutural e paradigmática no Judiciário, a partir da transformação do modelo competitivo, num modelo de gestão cooperativa.

O princípio da cooperação, uma novidade inspirada na cooperação internacional praticada na União Europeia, tem profundas implicações no intercâmbio de atos jurisdicionais, na harmonização de rotinas forenses, na colaboração para a produção das provas, na comunicação interna e externa do Poder Judiciário, mas seu reflexo mais profundo será sentido no modelo de gestão do Poder Judiciário.

A mencionada Recomendação n. 38 institui dois mecanismos singelos, (i) o primeiro de viés individual, criando a figura do ‘juiz de cooperação’ e (ii) e outro de uma perspectiva mais coletiva, por meio dos denominados ‘núcleos de cooperação judiciária’. O juiz de cooperação exercerá o papel inédito de uma espécie de mediador entre juízes, para agilização dos atos que envolverem mais de um magistrado. O núcleo de cooperação é um alvissareiro espaço institucional de diálogo e diagnóstico coletivo dos juízes, que projeta um perfil de gestão muito mais contemporâneo, participativo e democrático.

Sem abrir mão das ferramentas de mensuração de desempenho, a gestão cooperativa foca não apenas o processo, mas também o conflito social que o antecede. Não enxerga apenas o Poder Judiciário, como repartição, estanque, mas opera em termos de ‘sistema de justiça’, envolvendo também os demais membros indispensáveis à administração da justiça.

2. O novo paradigma da cooperação judiciária

O CNJ, por meio da referida Recomendação n. 38/2011, instituiu a inovadora Rede Nacional de Cooperação Judiciária.

Essa Rede pressupõe uma alvissareira perspectiva para o Poder Judiciário, que ainda não se adaptou de maneira adequada às demandas da sociedade de massa e atua, praticamente, da mesma forma que oficiava no Século XIX, quando tínhamos uma

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sociedade pré-industrial e uma população predominantemente rural, quase vinte vezes menor e com níveis de conflitos incomparavelmente inferiores.

O modelo tradicional de jurisdição, para lidar com a pulverização de demandas repetitivas, cone-xas ou que pressuponham a intersecção de competência de mais de um juiz, tende muitas vezes a potencializar o conflito. É comum constatar-se entre os juízes um fogo cruzado de liminares ou até conflitos de competência; o litígio acaba migrando, de forma paradoxal, das partes em demanda para aqueles que têm por missão constitucional apaziguá-lo.

O paradigma da cooperação pretende substituir o conflito pela colaboração interna entre os órgãos do Poder Judiciário. Para tanto, a referida Recomendação n. 38/2011 propõe, como já mencionado, dois mecanismos: (i) a figura do juiz de cooperação e (ii) o núcleo de cooperação judiciária.

2. 1 Juiz de Cooperação

O juiz de cooperação tem por tarefa fazer a ligação entre juízes, com objetivo de dar maior fluidez e agilidade aos atos interjurisdicionais. A figura é inspirada na cooperação judiciária no âmbito da União Europeia, que tem os chamados ‘ponto de contato’e o ‘magistrado de enlace’, cujas funções objetivam imprimir maior celeridade aos atos judiciais entre os países membros.

O juiz de cooperação pode ser inclusive o embrião do ‘magistrado de enlace’ para o MERCOSUL ou também para a UNASUL. É importante registrar - fato ainda pouco conhecido do mundo jurídico brasileiro - que no território nacional já contamos inclusive com uma magistrada de enlace, atuando a partir da embaixada da França em Brasília, pela cooperação judiciária no Brasil, Bolívia e Venezuela. Qualquer autoridade brasileira, especialmente a judiciária, que tenha em seus órgãos pendências no Judiciário francês, pode recorrer aos bons ofícios da juíza francesa.2

Na Europa, o ‘magistrado de enlace’ é, portanto, um representante adido do Poder Judiciário que atua e vive num país estrangeiro. Esse representante pode ser ou não magistrado. Sua função é atuar como facilitador dos atos judiciais internacionais entre o país em que vive o magistrado de enlace e o seu país de origem.

O que a Recomendação n. 38/2011 propõe é um pouco diferente. Propõe que os tribunais designem magistrados para atuarem como facilitadores dos atos judiciais que devam ser cumpridos fora da circunscrição territorial ou da competência material ou funcional do juiz competente para dirimir o conflito, ou, ainda, como catalisadores de atos concertados entre juízos em demandas em que se vislumbre potencial conflito de competência material ou territorial.

É importante frisar que o modelo europeu parece muito indicado para adoção no plano inter-no do Judiciário brasileiro, fundamentalmente por três razões: (i) a extensão continental do território brasileiro; (ii) a concepção federalista da República do Brasil e (iii) a divisão do Poder Judiciário em 5 ramos autônomos, com insuficientes mecanismos de comunicação. Temos no Brasil hoje 91 tribunais-ilhas, com um deficit enorme de integração e comunicação.

O juiz de cooperação deve atuar como facilitador dos atos judiciais que devam ser cumpridos fora da competência territorial, material ou funcional do julgador requerente da cooperação.

Além disso, o juiz de cooperação pode figurar também como uma espécie de mediador de atos concertados entre dois ou mais juízos, o que permite uma maior fluidez, flexibilidade e harmonia na tramitação de demandas sujeitas a mais de um ramo Judiciário.

Cite-se, como exemplo da mencionada ação concertada, estratégias de procedimento deliberadas consensualmente entre o juízo da falência e o trabalhista, para agilização da liquidação de créditos privilegiados e quirografários, ou mesmo para possibilitar a recuperação de empresas.

Os conflitos de competência entre o juízo da execução, principalmente na Justiça Federal ou na Justiça do Trabalho, e o juízo do registro de imóveis, é também um campo promissor para a possibilidade de atuação concertada dos juízos conflitantes em face da quantidade de conflitos interjurisdicionais que se verificam na prática.

Recorde-se, também, que o paradigma da cooperação teria forte aplicação no encaminhamento das cartas precatórias e dos atos e diligências requeridos pela Justiça Federal à Justiça dos Estados, na forma prescrita pelo art. 42 da Lei n. 5.010/1966.

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Enfim, a Recomendação permite a cooperação para qualquer tipo de ato judicial (numerus apertus) mas exemplifica (art. 4º, parágrafo único) seu cabimento para os atos de (i) citação, intimação e notificação de atos, de obtenção e apresentação de provas, de coleta de depoimentos, de medidas cautelares e de antecipação de tutela; (ii) de medidas e providências para a recuperação e preservação de empresas, facilitação da habilitação de créditos na falência e recuperação judicial, (iii) de transferência de presos; (iv) de reunião de processos repetitivos e

(v) de execução de decisões em geral, especialmente aquelas que versem sobre interesse transindividual.

2. 2 Núcleo de Cooperação Judiciária

O núcleo de cooperação é, sobretudo, um espaço institucional de diálogo entre os juízes para que possam diagnosticar os problemas e características da litigiosidade em cada localidade e, partir daí, traçar, coletivamente, uma política judiciária mais adequada à realidade. Será um poderoso instrumento para harmonizar, consensualmente, as rotinas e procedimentos.

O referido espaço institucional poderia ser concretizado com reuniões, anuais ou semestrais, entre os juízes de um mesmo foro ou tribunal, para discutirem e deliberarem de forma coletiva e participativa, eventual harmonização de procedimentos, reunião de processos repetitivos ou mesmo para reivindicarem, junto às Administrações dos Tribunais, aparelhamento ou melhoria na estrutura judiciária.

A gestão judiciária não pode mais ser analisada em segmentação à atividade-fim do juiz. A nova gestão judiciária envolve tanto as atividades-meio, como também os procedimentos e rotinas da secretaria do juízo, além dos próprios atos ordinatórios do processo.

Tradicionalmente é reservado ao juiz apenas a função de decidir os conflitos materiais e os microconflitos processuais que se sucedem durante a demanda. Além disso, em geral, o juiz decide esses conflitos de forma extremamente isolada, a partir de um contraditório segmentado, sem interação com as partes, com outros atores processuais ou com os demais órgãos do Poder Judiciário.

Na atuação tradicional, a independência judicial acaba se confundindo com a fragmentação dos conflitos e o isolamento do juiz. A gestão judiciária, normalmente, é delegada aos setores administrativos do Poder Judiciário. E mesmo na primeira instância, as funções decisórias, ordinatórias e administrativas são também rigidamente...

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