Análise jurisprudencial da teoria do adimplemento substancial: relações civis e consumeristas

AutorLuiz Fernando Amaral
Páginas123-157
CAPÍTULO 5
ANÁLISE JURISPRUDENCIAL DA TEORIA DO ADIMPLEMENTO
SUBSTANCIAL: RELAÇÕES CIVIS E CONSUMERISTAS
Nos capítulos anteriores avaliamos as alterações decorrentes da mudança de perfil do
Estado que deixou de ser puramente liberal e se apresenta atualmente como Estado social.
Este conceito, como já exposto, não se confunde com qualquer juízo que vise a definir o
modelo atual do Estado brasileiro como um Estado socialista. Ao contrário, esclarecemos
que o Estado brasileiro tem como um de seus fundamentos a livre iniciativa, bem como
que garante o direito à propriedade privada. Assim, não há que se pensar a atribuição
de modelo econômico distinto do capitalista à realidade pátria. Tal contexto, contudo,
não afasta o dever de compreender esses direitos sob uma perspectiva social. Para tanto,
devemos entender essa projeção social como a expressão da operação do direito privado
não apenas sob o ângulo das justas pretensões dos indivíduos isoladamente considerados,
mas também destes mesmos indivíduos inseridos no convívio social.
Essa forma de encarar a realidade social, política, econômica e jurídica, nos impele
a reconhecer o papel das já abordadas cláusulas gerais, por meio das quais os princípios
norteadores do ordenamento jurídico ganham ampla aplicação. Nesse sentido, analisamos
a função social do contrato, assim como mencionamos a função social da propriedade
privada – incluindo-se os bens de produção – e a valorização do trabalho humano que
se encontra ao lado da livre iniciativa como fundamento da República.
José Afonso da Silva1 afirma que esse modelo de Estado criado pela Constituição
Federal de 1988 parece revelar um objetivo de difícil concretização, na medida em que,
na mesma realidade capitalista, pretende garantir típicos interesses individuais, sujei-
tando-os aos reclames de natureza social. Nessa toada, a Constituição Federal brasileira
revelaria um programa paradoxal que se espraia não apenas no âmbito de matérias do
direito público, mas também em relações jurídicas tipicamente privadas. Acreditamos
haver relativa dificuldade nessa conciliação de objetivos aparentemente antagônicos,
mas pensamos que a realização do programa constitucional é possível, sobretudo por
meio dos mecanismos também presentes no Código Civil de 2002, especialmente por
intermédio das chamadas cláusulas gerais e dos conceitos jurídicos indeterminados, os
quais, conforme salientado, não conferem ao aplicador ilimitada liberdade, mas apenas
o poder necessário à otimização da decisão com base no ordenamento jurídico.
1. Para José Afonso da Silva (Curso de direito constitucional positivo. 32. ed. São Paulo: Malheiros, 2009, p. 789): “Assegurar
a existência digna, conforme os ditames da justiça social, não será tarefa fácil num sistema de base capitalista e, pois,
essencialmente individualista. É que a justiça social só se realiza mediante equitativa distribuição de riqueza. Um regime
constitucional de acumulação ou de concentração do capital e da renda nacional, que resulta da apropriação privada
dos meios de produção, não propicia efetiva justiça social, porque nele sempre se manifesta grande diversidade de classe
social, com amplas camadas de população carente ao lado de minoria afortunada”.
O CONTRATO E A TEORIA DO ADIMPLEMENTO SUBSTANCIAL • LUIZ FERNANDO DE C. P. DO AMARAL
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O papel do Poder Judiciário, na situação atual do direito brasileiro, confere ao apli-
cador enorme responsabilidade, essencialmente por ampliar suas possibilidades. Com
efeito, as cláusulas gerais e os conceitos jurídicos indeterminados que acima elogiamos,
demandam cuidado quando de sua aplicação. A razão é bastante simples, já que o juiz
encontrará maior amplitude para aplicar o direito a partir do preenchimento das cláusulas
que dele se mostram carentes – no dizer de Karl Larenz2 –, mas não poderá criar solução
que contrarie o ordenamento jurídico. Assim, o sentido de otimizar a decisão dos casos
concretos requer a cautela de não preencher os espaços que o legislador lhe entrega de
sorte a contrariar a lógica do ordenamento jurídico como um todo.
A aplicação do direito, admitido esse novo instante em que o aplicador recebe maior
liberdade para proceder de maneira ideal, depende da invocação de argumentos bastante
sólidos, a fim de justificarem as decisões tomadas em juízo. Surge, nesse contexto, o im-
portante papel exercido pela teoria da argumentação, conforme nos ensina Robert Alexy3.
Eventual déficit argumentativo nas decisões judiciais representará – proporcionalmente –
ampliação da insegurança jurídica, fato que terá efeitos não apenas no âmbito do direito
propriamente, mas sobretudo na esfera econômica.
O protagonismo do aplicador e da aplicação como instante de realização do direito
e de sua técnica4 impõe o estudo de precedentes judiciais que permita aferir como o Ju-
diciário nacional tem aplicado o objeto do presente estudo. Essa avaliação ganha maior
importância quando compreendemos, a partir da exposição anteriormente realizada, que
a teoria do adimplemento substancial é aplicada no direito brasileiro sem que o Código
Civil estabeleça dispositivo legal que contemple conceito análogo àquele encontrado
em outras codificações – tais como: alemã, italiana e portuguesa – qual seja, o inadim-
plemento de escassa importância.
Na realidade jurídica brasileira, a aplicação da referida teoria se dá a partir da
conciliação de dispositivos legais, princípios gerais e conceitos como o proveniente
da teoria do abuso do direito. Este, conforme comentado, nos parece mais adequado
a permitir ao magistrado a aferição da gravidade do inadimplemento, de acordo com
compreensão decorrente da teoria do adimplemento substancial. Além disso, é pre-
ciso avaliar se a teoria em questão é distintamente aplicada em relação ao campo do
direito privado sobre o qual se refira o caso em análise. Logo, revela-se curial apreciar
os princípios que distinguem as relações jurídicas de natureza civil, essencialmente
reguladas pelo Código Civil, daquelas que ostentam natureza consumerista e que, em-
2. LARENZ, Karl. Metodologia da ciência do direito..., cit., p. 406.
3. ALEXY, Robert. Teoria da argumentação jurídica. 2. ed. São Paulo: Landy, 2005, p. 244-263.
4. Tércio Sampaio Ferraz Junior (Introdução ao estudo do direito: técnica, decisão, dominação. 4. ed. São Paulo: Atlas, 2003,
p. 85-86) esclarece a face tecnológica do direito: “(...) um pensamento tecnológico é, sobretudo, um pensamento fechado
à problematização de seus pressupostos – suas premissas e conceitos básicos têm de ser tomados de modo não proble-
mático – a fim de cumprir sua função: criar condições para a ação. No caso da ciência dogmática, criar condições para a
decidibilidade de conflitos juridicamente definidos.(...) O saber dogmático contemporâneos, como tecnologia em prin-
cípio semelhante às tecnologias industriais, é um saber em que a influência da visão econômica (capitalista) das coisas
é bastante visível. A ideia de cálculo em termos de relação custo/benefício está presente no saber jurídico-dogmático da
atualidade. Os conflitos têm de ser resolvidos juridicamente com o menor índice possível de perturbação social: eis uma
espécie de premissa oculta na maioria dos raciocínios dos doutrinadores”.
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CAPÍTULO 5 • ANÁLISE JURISPRUDENCIAL DA TEORIA DO ADIMPLEMENTO SUBSTANCIAL
bora presentes no âmbito do direito privado, recebem tratamento bastante diferenciado
das anteriormente comentadas5.
5.1. DISTINÇÕES ENTRE OS PRINCÍPIOS DO DIREITO PRIVADO NO ÂMBITO
CIVIL E NA ESFERA CONSUMERISTA
Avaliaremos neste tópico as distinções de caráter principiológico existentes no direito
privado nas relações tipicamente civis e naquelas de natureza consumerista. Não preten-
demos contemplar todas as relações jurídicas civis e todas aquelas verificadas no âmbito
do direito do consumidor. Nosso foco será a perspectiva obrigacional, pois é exatamente
nesta seara que a teoria do adimplemento substancial encontra aplicação. Ademais, é
dever salientar que os princípios do direito privado, com importância para este estudo,
aplicáveis às relações civis de índole contratual já foram apresentados.
Nesse sentido, cabe reiterar que a disciplina contratual está fundada6 na autonomia
privada – com as limitações decorrentes da função social do contrato, das normas de
ordem pública e dos bons costumes –, no consensualismo – a partir do qual se garante
forma livre aos contratos como regra e apenas excepcionalmente a forma solene –, na
obrigatoriedade dos contratos – também sujeita às limitações impostas à autonomia
privada –, na relatividade dos contratos – referente aos efeitos existentes apenas em
relação ao contratantes – e na boa-fé.
A avaliação dos princípios centrais à disciplina das relações contratuais consume-
ristas reclama, previamente, a apresentação dos efeitos dos pressupostos constitucionais
que definiram a defesa do consumidor como um dos princípios da ordem econômica
(art. 170, V, CF/88). Com efeito, sob a égide do Estado social inaugurado no Brasil pela
Constituição Federal de 1988 a ordem econômica recebeu disciplina específica, nos mol-
des do constitucionalismo surgido a partir da segunda década do século XX. A atividade
econômica é incorporada e avaliada como tendo substancial caráter constitucional, de
modo a permitir que o constituinte lhe defina finalidades.
José Afonso da Silva7 sustenta que a ordem econômica na Constituição Federal de
1988 visa a garantir a dignidade da vida humana – fundamento da República brasileira
(art. 1º, III, CF/88) – conforme os ditames da justiça social, fundando-se na valorização
do trabalho humano e da livre iniciativa. Assevera que a livre iniciativa reflete a presença
do que há de mais essencial no pensamento do liberalismo econômico. Da mesma forma,
sustenta a conformação dessa liberdade individual com direitos de índole social.
Nesse sentido, os princípios da ordem econômica estabelecida pela CF/88 acabam
por impor à livre iniciativa, sobretudo quando concebida na figura da empresa – enquan-
to atividade produtiva –, deveres de respeito a direitos difusos, coletivos e individuais
homogêneos8. A atividade econômica há de ser realizada em consonância com a defesa
5. A escolha desses dois campos do direito privado, ambos com reflexos das normas de direito público, se deve ao fato de se
revelarem como sendo aqueles de maior incidência da teoria do adimplemento substancial.
6. DINIZ, Maria Helena. Curso de direito civil brasileiro. V. III..., cit., p. 23-37.
7. SILVA, José Afonso da. Comentário contextual à constituição. 2. ed. São Paulo: Malheiros, 2006, p. 709-710.
8. NUNES, Rizzatto. Curso de direito do consumidor. 6. ed. São Paulo: Saraiva, 2011, p. 188.

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