O problema da subjetividade na aplicação da teoria do adimplemento substancial
Autor | Luiz Fernando Amaral |
Páginas | 159-179 |
CAPÍTULO 6
O PROBLEMA DA SUBJETIVIDADE NA APLICAÇÃO
DA TEORIA DO ADIMPLEMENTO SUBSTANCIAL
6.1. CONSIDERAÇÕES SOBRE O POSITIVISMO JURÍDICO E SUAS
TRANSFORMAÇÕES
O problema da subjetividade na aplicação da teoria do adimplemento substancial
não dista da questão que concerne a toda e qualquer crítica que se possa fazer em rela-
ção a avaliações excessivamente subjetivas por parte do aplicador do direito. O tema
reclama abordagem sobre o papel exercido pela interpretação no momento em que o
magistrado aplica as normas jurídicas. Desde logo, afirmamos que este capítulo não
esgotará a abordagem sobre a interpretação do direito. Nosso intuito é apresentar a clara
correlação existente entre o modelo jusfilosófico e a maior ou menor amplitude conferida
à criatividade do aplicador.
Na perspectiva filosófica, avaliando-se as alterações havidas na passagem do Estado
liberal ao Estado social e democrático de direito1, urge sustentar que o liberalismo eco-
nômico foi amplamente alicerçado, no plano hermenêutico, pela concepção positivista
do fenômeno jurídico. Norberto Bobbio, avaliando o juspositivismo, apresenta suas
características essenciais e já oferece parte das críticas que lhe foram dirigidas:
A concepção juspositivista da ciência jurídica foi acusada de formalismo. Já vimos (cf.§ 36) os
vários signicados que este termo pode assumir na linguagem jurídica. Neste caso, estamos
diante daquele que denimos como formalismo cientíco. O juspositivismo tem uma absoluta
prevalência às formas, isto é, aos conceitos jurídicos abstratos e às deduções puramente lógicas
que se possam fazer com base neles, com prejuízo da realidade social que se encontra por trás de
tais formas, dos conitos de interesse que o direito regula, e que deveriam (segundo os adversários
do positivismo jurídico) guiar o jurista na sua atividade interpretativa.2
Ainda que ao juspositivismo sejam atribuídas críticas em virtude do excessivo for-
malismo científico, pode-se afirmar que foi justamente essa peculiaridade que o elevou à
condição de um dos principais pilares do liberalismo econômico. Conforme comenta-
do em capítulo anterior, tal fase foi marcada pela edição de constituições-garantia, cujo
maior intuito era a busca por segurança e certeza jurídicas. A objetividade das normas
jurídicas conferia à sociedade da época a ideia de que o conteúdo normativo não apenas
1. Elival da Silva Ramos (Ativismo judicial: parâmetros dogmáticos. São Paulo: Saraiva, 2010, p. 37) sustenta o papel essencial
do positivismo jurídico a partir da modernidade, instante relativamente coincidente com a criação dos pressupostos para
o surgimento do Estado liberal: “Em seu aspecto metodológico, pode-se afirmar que o positivismo jurídico identifica-se
com a Dogmática Jurídica da modernidade, que sucedeu ao modelo do Jusnaturalismo. Portanto, nesse sentido amplo,
não apenas o positivismo jurídico não está superado, como participa da base comum a todas as correntes doutrinárias
que, a partir da metodologia positivista, se digladiam quanto a aspectos específicos de Teoria do Direito, como é o caso,
por exemplo, da Teoria da Interpretação”.
2. BOBBIO, Norberto. Positivismo jurídico..., cit., p., 221.
O CONTRATO E A TEORIA DO ADIMPLEMENTO SUBSTANCIAL • LUIZ FERNANDO DE C. P. DO AMARAL
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propiciava certeza, mas também promovia igualdade – igualdade formal – entre todos os
cidadãos. A relevância se encontrava, assim, no fato de o ordenamento jurídico poder ser
encarado sob uma perspectiva unitária – sistemática3 – que não considerasse, ao menos
quando da aplicação do direito, qualquer espécie de elemento que se furtasse à lógica
ínsita ao juspositivismo.
A predileção pela norma como elemento neutralizador de juízos subjetivos acarretou
o protagonismo do Legislativo, analisado sob a perspectiva da tripartição dos poderes
que, em sua forma original, estabelecia de sorte bem mais restrita do que a atualmente
conhecida, as funções do Executivo, do Legislativo e do Judiciário. Paulo Bonavides4
sustenta que a tripartição dos poderes do Estado, baseado nas lições de Montesquieu,
acabou por viabilizar a conservação da liberdade de acordo com o paradigma concebido
pelos pensadores do Estado liberal. Para estes últimos, conforme abordamos em capítulo
inicial, a liberdade era o valor central, sendo a imposição de limites à ação estatal um dos
principais mecanismos para garanti-la.
De outro modo, a prevalência do Legislativo significava àqueles que consolidaram
o Estado liberal efetiva garantia no instante de aplicação do direito em face de eventuais
juízos subjetivos por parte dos integrantes dos demais poderes. Karl Larenz5, abordan-
do as origens do positivismo jurídico, avalia aquele de caráter racionalista, pensado
por Windscheid, esclarecendo que a concepção forjada pelo direito germânico esteve
bastante apoiada nas ideias e nos principais expoentes da Escola Histórica. Assim, o
positivismo era avaliado como algo que, além de histórico, tendo seu valor legitimado
pela comunidade jurídica ao longo do tempo, contava com caráter sistemático e seguia
um panorama racional.
Hans Kelsen6, um dos principais autores do positivismo jurídico e responsável
pela Teoria Pura do Direito, corrente jusfilosófica que consagra o normativismo lógi-
co, destaca a importância anti-ideológica de sua teoria ao vedar a valoração do direito
positivo. A concepção kelseniana, bastante fundada na preocupação com a seguran-
ça jurídica, baseia-se na avaliação estrutural da ciência do direito, a fim de afastar
qualquer espécie de juízo que destoe da objetividade do fenômeno normativo. Luiz
Sérgio Fernandes de Souza7 avalia a relação entre o positivismo e o Estado liberal a
partir desse prisma. Para esse autor, o conhecimento jurídico de índole juspositivista
acarreta uma forma de saber que parte da norma posta, afastando juízos baseados em
questões axiológicas. Esta é a principal razão para se conferir à dogmática jurídica
enorme valor sob a égide do Estado liberal. O Judiciário, ao solucionar conflitos, não
pode se distanciar desses cânones.
Segundo Kelsen, permitir permeabilidade axiológica à ciência do direito seria des-
virtuar o próprio sentido da ciência, qual seja, a busca pela definição de seu objeto. O
3. BOBBIO, Norberto. Positivismo jurídico..., cit., p., 197-198.
4. BONAVIDES, Paulo. Teoria do estado..., cit., p. 265-266.
5. LARENZ, Karl. Metodologia da ciência do direito..., cit., p. 35.
6. KELSEN, Hans. Teoria pura do direito..., cit., p. 118.
7. SOUZA, Luiz Sérgio Fernandes de. O papel da ideologia no preenchimento das lacunas no direito. 2. ed. São Paulo: RT, 2005,
p. 68-69.
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