O estado liberal e as garantias individuais: o primado da liberdade individual e a liberdade contratual

AutorLuiz Fernando Amaral
Páginas23-41
CAPÍTULO 2
O ESTADO LIBERAL E AS GARANTIAS INDIVIDUAIS: O PRIMADO
DA LIBERDADE INDIVIDUAL E A LIBERDADE CONTRATUAL
O direito é reflexo de elementos sociais, econômicos e políticos vigentes em deter-
minada sociedade. A ordem jurídica não encontra legitimidade na consciência de um
povo se estiver desatrelada dos fenômenos sociais. Compreender o fenômeno jurídico
puramente como norma – assim como fez Hans Kelsen em sua teoria pura do direito –
pode servir a ideais de segurança e certeza jurídicas, mas não pode afastar o estudioso
dos fatos e valores sociais.
A obra de Kelsen não deve ser confundida com um juízo puramente normativo. Seu
conjunto jamais afastou a noção de que as normas provêm de fatos e se relacionam com
valores. Quis Kelsen, porém, a fim de oferecer técnica ou cientificidade ao direito, isolar
o fenômeno normativo para apreciar as normas sob o prisma da competência e não do
conteúdo1. O objetivo maior, portanto, foi fornecer uma alternativa a eventuais juízos
subjetivos2 que desvirtuassem a norma no instante de sua aplicação.
Essa menção à obra de Kelsen se justifica em virtude da relação existente entre o
Estado liberal e o positivismo jurídico. A norma posta é capaz de promover alguma forma
de liberdade e igualdade, ainda que meramente formal. Liberdade e igualdade são dois
elementos que servem de base à construção do Estado liberal, já que este emerge de um
processo desenvolvido em resposta aos Estados absolutistas. O foco central do advento
do Estado liberal reside na liberdade.
A liberdade, ao lado da propriedade privada, é elemento essencial no Estado libe-
ral, uma vez que esse modelo de Estado se revela a reação da sociedade moderna aos
constantes atos de intervenção e restrição impostos pelos Estados absolutos. Na esteira
1. Karl Larenz (Metodologia da ciência do direito. 5. ed. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 2009, p. 96) esclarece a respeito
da obra de Hans Kelsen: “À <<teoria pura do direito>> o que interessa é a especificidade lógica e a autonomia metódica
da ciência do Direito. O que ela quer é <<libertar a ciência do Direito de todos os elementos que lhe são estranhos>> (RR,
pág. 1). Daí que, por um lado, se oponha à confusão entre observação jurídica e observação sociológica. O jurista, entende
KELSEN na sua primeira obra (H, pág. 42), pode, sem dúvida, fazer reflexões de natureza psicológica e sociológica, mas
não deve nunca <<servir-se dos resultados da sua consideração explicativa na sua construção conceptual normativa>>.
Por outro lado, KELSEN opõe-se com o mesmo vigor à ligação da ciência do Direito com a ética, bem como com toda a
metafísica jurídica”.
2. Segundo Kelsen (O que é justiça. 3. ed.. São Paulo: Martins Fontes, 2001, p. 223): “Existe, porém, apenas um Direito
positivo. Ou – se desejamos dar conta da existência de várias ordens jurídicas nacionais – existe para cada território
apenas um Direito positivo. Seu conteúdo pode ser averiguado sem ambiguidade por um método objetivo. A existência
dos valores de Direito é condicionada por fatos verificáveis objetivamente. Às normas do Direito positivo corresponde
certa realidade social, mas não às normas de justiça. Nesse sentido, o valor de Direito é objetivo, ao passo que o valor de
justiça é subjetivo. E isso se aplica mesmo que às vezes um grande número de pessoas tenha o mesmo ideal de justiça. Os
juízos jurídicos de valor são juízos que podem ser postos à prova objetivamente por fatos. Portanto, são admissíveis em
uma ciência do Direito. (...) Os juízos de justiça não podem ser postos à prova objetivamente. Portanto, uma ciência do
Direito não tem espaço para eles. Os juízos de justiça são juízos de valor morais ou políticos, em contraposição aos juízos
jurídicos de valor. Eles pretendem expressar um valor objetivo”.
O CONTRATO E A TEORIA DO ADIMPLEMENTO SUBSTANCIAL • LUIZ FERNANDO DE C. P. DO AMARAL
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do que afirma Paulo Bonavides3, o Estado absoluto sempre foi o grande obstáculo à li-
berdade individual, sobretudo por não garantir igualdade sequer formal aos integrantes
da sociedade. E se a liberdade individual está em risco sob a existência de um Estado
absoluto, impõe-se que o novo modelo de Estado traga em si a função de garantir direitos
de liberdade, noção que se encontra nas raízes do constitucionalismo4. Residem nesses
pontos as bases para o surgimento do Estado liberal. Neste apresenta-se a liberdade como
condição essencial que, como veremos, gerou, em grande medida, todos os elementos
indispensáveis à eclosão das chamadas revoluções liberais5.
2.1. O DIREITO CONTRATUAL E O LIBERALISMO: AUTONOMIA DA VONTADE
E PACTA SUNT SERVANDA
O direito contratual foi profundamente influenciado pelo liberalismo econômico.
Sendo o contrato instrumento de enorme relevância ao desenvolvimento das relações ju-
rídicas no âmbito do direito privado, a perspectiva liberal vivifica esse relacionamento, na
medida em que busca a afirmação de direitos de liberdade6 como forma de distanciar-se do
período em que o Estado – então absolutista – exercia direta influência nas relações privadas.
A noção do contrato como liame entre as partes, compreendidas como sujeitos de
direito livres para pactuarem o que lhes aprouver, corporifica o brocardo “o contrato
é lei entre as partes”7. A realização dos negócios jurídicos é materializada e garantida
3. Segundo Paulo Bonavides (Do estado liberal ao estado social. 7. ed. São Paulo: Malheiros, 2004, p. 39-40): “O problema
da liberdade, para sua exata compreensão, deve ser posto em confronto dialético com a realidade estatal, a fim de que
possamos conhecer-lhe o conteúdo histórico e os diferentes matizes ideológicos de que se há revestido, até alcançarmos,
no moderno Estado social, as linhas mestras de sua caracterização na consciência ocidental contemporânea. (...) Na
doutrina do liberalismo, o Estado foi sempre o fantasma que atemorizou o indivíduo. O poder, de que não pode prescindir
o ordenamento estatal, aparece, de início, na moderna teoria constitucional, como o maior inimigo da liberdade”.
4. Para Fabio Nusdeo (Curso de economia. 4. ed. São Paulo: RT, 2005, p. 127): “Operacionalizar a liberdade como fundamento
para a organização do Estado implicou superar e eliminar uma série de crenças e peias que tolhiam o homem e as suas
iniciativas. Implicou, sobretudo, um voto de confiança no discernimento dele, homem, visto como senhor do seu destino
e construtor de sua felicidade na terra, sem que o soberano, o Estado, a Igreja ou organizações diversas a que estivesse
compulsoriamente atado viessem a lhe determinar o caminho a seguir. Daí o culto não apenas à liberdade, mas ao seu
corolário lógico, o racionalismo, ou seja, a capacidade de realizar operações ditadas não pela religião, pela magia, ou pela
tradição, mas por critérios decorrentes de uma visão científica do mundo ou pelo menos embasada numa observação
metódica e objetiva dos fatos, quer da vida natural quer da vida social”.
5. Alexis de Tocqueville (O antigo regime e a revolução. São Paulo: WMF, 2009, p. XLVI) analisa o Antigo Regime na França
e a Revolução Francesa de 1789. De acordo com o autor, a História atribui maiores glórias à referida revolução do que
aquela à qual ela realmente faria jus. Indaga: “O evento é efetivamente tão extraordinário como pareceu outrora para os
contemporâneos? Tão inaudito, tão profundamente perturbador e renovador como eles supunham? Qual foi o verdadeiro
sentido, qual foi o verdadeiro caráter, quais são os efeitos permanentes dessa revolução estranha e terrível? Ela destruiu
precisamente o quê? Criou o quê?”. É evidente, contudo, que a maior parte dos estudiosos elege a Revolução Francesa
de 1789 como o grande marco em favor do liberalismo.
6. Francisco Amaral (Direito civil: introdução. 5. ed. Rio de Janeiro: Renovar, 2003. p. 121) trata das influências do Estado
liberal no direito civil e assevera: “No campo jurídico, a liberdade individual, a propriedade, o contrato e a responsabilidade
civil são institutos jurídicos fundamentais, que a ciência jurídica constrói com princípios, conceitos, categorias e modelos
que formam o direito como sistema racional. A importância do direito moderno para o direito civil está portanto, no fato
de ter, pelas circunstâncias políticas, econômicas e culturais, levado à construção da ciência jurídica, com seus conceitos,
suas técnicas de abstração, suas operações lógicas, seu formalismo, com a ‘imagem do homem como indivíduo singular,
como sujeito abstrato, matéria com que trabalha o pensamento sistemático e que tem, no positivismo jurídico, a grande
herança deixada para as mudanças do direito civil contemporâneo”.
7. Orlando Gomes (Contratos. 8. ed. Rio de Janeiro: Forense, 1981, p. 6) afirma: “Ressalte-se ainda a influência de Pothier
na determinação da função do acordo de vontades como fonte do vínculo jurídico e na aceitação do princípio de que o
contrato tem força de lei entre as partes, formulado como norma no Código de Napoleão”.

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