A teoria do adimplemento substancial: o princípio da conservação e a segurança dos negócios jurídicos

AutorLuiz Fernando Amaral
Páginas81-122
CAPÍTULO 4
A TEORIA DO ADIMPLEMENTO SUBSTANCIAL:
O PRINCÍPIO DA CONSERVAÇÃO E A SEGURANÇA
DOS NEGÓCIOS JURÍDICOS
No presente capítulo pretendemos avaliar a teoria do adimplemento substancial
que, ao lado da função social do contrato e da segurança jurídica compõem o eixo deste
trabalho. Contudo, antes de avaliarmos as noções de adimplemento e inadimplemento
contratuais segundo a disciplina que lhes foi reservada pelo Código Civil de 2002 para
então correlacioná-la com a teoria do adimplemento substancial, impõe-se apresentar
breves noções acerca da relevância que a conservação dos negócios jurídicos e a segurança
jurídica encontram no ordenamento jurídico atual.
A conservação do negócio jurídico já é tratada por parcela da doutrina como um
dos princípios que devem nortear a interpretação dos contratos. Nesse sentido, parte-se
da ideia de que os negócios jurídicos são realizados para atingir seu principal objetivo,
qual seja, o efetivo adimplemento. Assim, as normas jurídicas e as decisões judiciais de-
vem buscar a manutenção dos vínculos contratuais, revelando-se conduta excepcional
sua extinção.
A incorporação do princípio da conservação pelo direito civil brasileiro pode
ser compreendida a partir da influência que o Código Civil atual recebeu do diploma
italiano. Neste, o legislador italiano incluiu o art. 1.367 com a seguinte redação: “Nel
dubbio, il contratto o le singole clausole devono interpretarsi nel senso in cui possono avere
qualche effetto, anziché in quello secondo cui non ne avrebbero alcuno1. Tal dispositivo
se encontra sob a rubrica “Conservazione del contrato” – conservação do contrato – de
forma a demonstrar a relevância da manutenção do vínculo contratual e a previsão dessa
conservação como verdadeiro vetor de interpretação. Francesco Galgano avalia o referido
dispositivo do diploma italiano do seguinte modo:
Vale, ancora, il già più volte menzionato principio di conservazione del contrato: la clausola si
interpreta nel senso in cui è valida o è efcace, anziché in quello per il quale sarebbe invalida o
inefcace (art. 1367). Valgono, inoltre, i cosiddetti use interpretativi, che non sono usi in senso
tecnico, ma pratiche contrattuali: la clausola ambigua si interpreta secondo ciò che generalmente
si pratica nel luogo in cui il contrato è stato concluso (art. 1368).2
1. Na dúvida, o contrato ou uma cláusula devem ser interpretadas no sentido de produzirem algum efeito, e não naquele
segundo o qual não haverá efeito algum (tradução livre)
2. GALGANO, Francesco. Il negozio giuridico..., cit., p. 473. Vale, novamente, o já mencionado princípio de conservação
do contrato: a cláusula se interpreta no sentido em que é válida ou eficaz, e não naquele por meio do qual será inválida
ou ineficaz. Aplica-se, também, os chamados usos da interpretação, que não são usos em sentido técnico, mas da prática
contratual: a cláusula ambígua é interpretada segundo aquilo que geralmente se pratica no lugar em que foi celebrado o
contrato (tradução livre)
O CONTRATO E A TEORIA DO ADIMPLEMENTO SUBSTANCIAL • LUIZ FERNANDO DE C. P. DO AMARAL
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O artigo legal em questão, ao tratar da conservação do contrato, acaba por privile-
giar a interpretação da avença em si ou de uma cláusula específica que proceda de forma
a conferir validade e eficácia ao negócio jurídico contratual. Trata-se de um dos modos
pelos quais, no plano da interpretação contratual, o legislador italiano buscou promover
a conservação do contrato. É claro que a regra contida no – já transcrito – art. 1367 do
Código Civil italiano não representa novidade na disciplina contratual3. Todavia, nos
parece que a grande relevância de sua presença reside em atribuir a rubrica acima referi-
da e disseminar a ideia de que os contratos devem ser conservados. A forma como essa
conservação será efetivada encontra múltiplas estratégias.
O Código Civil português contempla dispositivo análogo em seu artigo 237, mas
acrescenta finalidades que merecem ser compreendidas, sobretudo a partir da análise
funcional da conservação dos contratos. Tal dispositivo da legislação portuguesa con-
ta com a seguinte redação: “Em caso de dúvida sobre o sentido da declaração, prevalece,
nos negócios gratuitos, o menos gravoso para o disponente e, nos onerosos, o que conduzir
ao maior equilíbrio das prestações”. Observe-se a peculiaridade da norma em questão,
consubstanciada na diferenciação que faz entre os contratos gratuitos e os onerosos e,
no caso destes, a determinação de que se busque o equilíbrio das prestações, em clara
consonância com a ideia de justiça contratual.
Flávio Tartuce4 comenta o princípio da conservação a que ora nos referimos,
mencionando a teoria do adimplemento substancial que é matéria deste capítulo. Com
efeito, a conservação dos contratos é, conforme veremos, uma das bases para a aplicação
da citada teoria. De acordo com o referido autor, a teoria do adimplemento substancial
exerce papel relevante à certeza e à segurança jurídicas. Reservaremos a avaliação da
veracidade prática da afirmação a partir da análise de julgados de tribunais brasileiros.
Claudio Luiz Bueno de Godoy5 também aborda o princípio da conservação do contrato,
explicando que por ele não se deve buscar apenas a interpretação que garanta eficácia,
como também, havendo duas interpretações eficazes, escolher aquela que confira maior
eficácia ao ajuste contratual.
Sob essa orientação, legislador e juiz tentarão conservar o contrato. O primeiro
buscará a criação de normas que sirvam à manutenção do vínculo. O segundo aplicará
as normas criadas pelo primeiro e se valerá de cláusulas gerais como a função social do
contrato para ao menos tentar conduzir a relação jurídica contratual à sua finalidade que,
como bem afirma Clóvis do Couto e Silva6, revela-se no adimplemento.
É claro, entretanto, que a forma de buscar a conservação não pode se dar sem a
devida ponderação dos interesses dos contratantes. Se o adimplemento é o intuito do
contrato como um processo que se protrai no tempo, há situações nas quais ele perde
3. Mesmo o Código Civil francês, em seu artigo 1.157, já tratava de forma semelhante acerca de ambiguidades na interpre-
tação contratual: “Lorsqu’une clause est susceptible de deux sens, on doit plutôt l’entendre dans celui avec lequel elle peut avoir
quelque effet, que dans le sens avec lequel elle n’en pourrait produire aucun”. As cláusulas suscetíveis de duplo sentido ou
mais, serão interpretadas de forma à produção de efeitos, ao invés daquela que nenhum efeito produz (tradução livre)
Da mesma forma, o art. 1.284 do Código Civil espanhol: “Si alguna cláusula de los contratos admitiere diversos sentidos,
deberá entenderse en el más adecuado para que produzca efecto”.
4. TARTUCE, Flávio. Função social dos contratos: do código de defesa do consumidor ao novo código civil..., cit., p. 102-103.
5. GODOY, Claudio Luiz Bueno de. Função social do contrato: os novos princípios contratuais..., cit., p. 172.
6. SILVA, Clóvis do Couto e. A obrigação como processo..., cit., p. 168.
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CAPÍTULO 4 • A TEORIA DO ADIMPLEMENTO SUBSTANCIAL
efetivamente seu valor para uma das partes, impondo-se como sucedâneo as perdas e
danos. Com isso não queremos negar a importância da conservação dos contratos, mas
sim revelar limites à sua observância até mesmo em atenção à função social do contrato
e à boa-fé objetiva.
A aplicação adequada do princípio da conservação do contrato não pode se dar
à margem daquilo que efetivamente quiseram os contratantes. Não se pode, por meio
da aplicação de tal princípio, frustrar justas expectativas das partes que se vincularam
pelo contrato. Deturpar de tal modo o conteúdo da obrigação contratual, desviando-a
da vontade das partes, implicaria inegável prejuízo à segurança jurídica7 do negócio que
se mostra objeto do contrato. Lembremos que a segurança jurídica é um dos direitos
fundamentais consagrados no art. 5º, caput, da Constituição Federal, ao lado da vida,
liberdade, propriedade e igualdade.
Assim, não se deve conservar a qualquer custo, mas apenas na medida em que o
cumprimento – o adimplemento –, ainda que intempestivo, mostre-se interessante aos
contratantes. Aprioristicamente, o adimplemento sempre estará em consonância com o
resultado pretendido pelas partes, mas isso não pode ser afirmado de maneira genérica
para aplicação do direito, sem a devida análise do caso concreto. Há particularidades
que afastam essa premissa.
4.1. ADIMPLEMENTO, INADIMPLEMENTO E EXTINÇÃO CONTRATUAL:
ANÁLISE À LUZ DAS REGRAS DO CÓDIGO CIVIL DE 2002
4.1.1. O cumpr imento das obrigações
O direto das obrigações alberga a disciplina contratual. O contrato, conforme
verificamos acima, é uma das fontes obrigacionais8. Clóvis do Couto e Silva9 trata a
obrigação como um verdadeiro processo. Promove a análise do fenômeno obrigacio-
nal sob a perspectiva de efetivo programa que vai desde as tratativas preliminares até o
instante do cumprimento, revelando a existência de dois elementos essenciais: débito e
responsabilidade. A partir dessa definição, a qual atribui ao resultado do processo obriga-
cional, sempre afirmando a relevância finalística do vínculo jurídico, avalia as diversas
hipóteses nas quais haverá variações do peso desses elementos e dos sujeitos sobre os
quais respectivamente recaem a depender da modalidade obrigacional a respeito da qual
se trate o caso concreto.
A obrigação permite ao menos a clara definição de dois momentos. O primeiro deles
refere-se ao instante em que ela surge e se desenvolve. O segundo pode ser notado na fase
7. A respeito da extensão e do conceito da segurança jurídica, leia-se: ÁVILA, Humberto. Segurança jurídica: entre perma-
nência, mudança e realização no direito tributário. 2. ed. São Paulo: Malheiros, 2012, p. 255-285.
8. Fernando Noronha (Direito das obrigações. 4. ed. São Paulo: Saraiva, 2013, p. 441-442) comenta: “Através dos negócios
jurídicos, as partes visam produzir efeitos jurídicos específicos (a constituição, modificação ou extinção de relações
jurídicas), que a ordem jurídica reconhece e tutela precisamente na medida em que tenham sido queridos pelas partes.
Eles são extremamente importantes, no Direito das Obrigações e para além dele: são negócios jurídicos todos os contratos
(abrangendo modalidades tão variadas como a compra e venda e a locação, o transporte, o seguro, a fiança, o contrato de
trabalho, o casamento, etc.) e ainda, embora de importância muito menor, os chamados negócios unilaterais (testamento,
promessa pública de recompensa, emissão e transferência de títulos de crédito, revogação de procuração, etc.)”.
9. SILVA, Clóvis do Couto e. A obrigação como processo..., cit., p. 63-113.

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