A bagagem. O acesso à justiça pela via dos direitos e além: a con- cepção tridimensional de Nancy Fraser

AutorAna Carolina R. P. Leme
Páginas135-175
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De Vidas e Vínculos
Capítulo 3
A Bagagem. O Acesso à Justiça pela
Via dos Direitos e Além: A Concepção
Tridimensional de Nancy Fraser
Para sair do campo teórico, apenas, propõe-se um exercício de empatia, pela via da ima-
ginação.
Imagine-se acordando de manhã em uma segunda-feira sem ter nenhum trabalho
pré-agendado. Você liga o seu celular e logo vem um sinal sonoro indicando que há um
passageiro no centro da cidade a ser buscado. Você enfrenta engarrafamento, passa no posto
e abastece seu automóvel mesmo com a alta da gasolina a R$ 7,00(282); ao chegar ao local,
o passageiro lhe deixa esperando e, ao entrar atrasado no carro, pede que você acelere até o
destino. Você respeita os limites de velocidade e, em razão disso, por chegar alguns minutos
mais tarde em seu compromisso, o passageiro lhe atribui uma nota baixa no aplicativo. Essa
corrida lhe rende R$ 4,25 e sua nota abaixa de 4.7 para 3.0.
Vamos seguir imaginando outras situações. O sinal sonoro toca novamente e, ao seguir
a manhã com mais dois passageiros, você recebe uma mensagem da plataforma, comunicando
que aquele primeiro passageiro pode ter esquecido a sua agenda no veículo. Você checa
debaixo do banco e lá está a brochura de capa marrom. Para voltar ao destino, além de não
ser remunerado por isso, precisa recusar outros passageiros. Mesmo assim, você se dirige ao
local e, no caminho, o pneu do seu carro fura. Ao se desviar da rota programada em dire-
ção ao borracheiro, a plataforma envia uma sequência de mensagens, com sinais sonoros,
comunicando que você está saindo da rota. No tempo em que troca o pneu do seu próprio
automóvel, que utiliza para trabalhar, precisa recusar outras corridas. Paga o borracheiro e
segue para devolver a agenda. Mais uma vez, enfrenta o engarrafamento e, ao devolver o
objeto que o passageiro esqueceu, recebe mais uma vez nota baixa por ter demorado.
O desfecho: antes mesmo que a manhã termine, você foi bloqueado do aplicativo, que
cortou o seu acesso ao login, sem qualquer espaço para justicativa. Você vinha trabalhando
(282) No 2o semestre de 2021, a gasolina estava R$ 7,00 por litro, com inação acumulada de 10,06% no ano de
2021 (IPCA).
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catorze horas por dia, sete dias na semana, para um aplicativo que o considera parceiro e não
o reconhece como empregado.
Sem saber o que fazer, recebe indicação de um amigo para procurar o sindicato dos
motoristas plataformizados. Sente-se injustiçado e quer justicar que não teve culpa acerca
dos incidentes ocorridos que culminaram no seu bloqueio.
Esse relato ctício, mas com claro objetivo de criar empatia, foi baseado em fatos
verdadeiros relatados pelos motoristas plataformizados nas entrevistas realizadas para esta
pesquisa. Buscou-se relatar um conjunto de situações que os motoristas relatam em seu
dia a dia. Os motoristas plataformizados são pessoas que colocam a sua força de traba-
lho à disposição das plataformas. Entre as injustiças que relatam, além de bloqueios sem
justicativa, estão jornadas extenuantes, ausência de espaços de diálogo com as empresas,
rendimentos baixos e incertos, ausência de local e horário para descanso e alimentação,
afetação dos afazeres domésticos e da vida pessoal, assédios, assaltos, assassinatos, entraves à
organização coletiva. Vivem em uma roda-viva sendo acionados por comandos sonoros que
armam ser enlouquecedores e um “sem-m” de mecanismos de controle.
Todas as injustiças acima relatadas são aspectos de um modo de exploração econô-
mica dos trabalhadores, via plataformas que se dizem digitais, que está transformando tanto
o mundo do trabalho como a própria sociedade. Nesta pesquisa, foi feita a opção por com-
preender as injustiças relatadas pelos motoristas a partir das discussões teóricas de Fraser e
sua teoria tridimensional da justiça.
Filósofa política e feminista norte-americana, Fraser traz reexões sobre a (in)justiça
no contexto de um mundo globalizado e sua preocupação central envolve como promover
justiça em um mundo no qual as situações reais de injustiça transpassam cada vez mais os
limites geográcos e políticos. Para ela, a injustiça diz respeito a fatores econômicos, cultu-
rais e políticos que afetam pessoas e coletividades e são engendrados em diferentes espaços
sociais que muitas vezes fogem do alcance ou da capacidade das instâncias normais de jus-
tiça de que dispõem os afetados, notadamente nos limites dos Estados nacionais. Por isso,
considera-se que esse desenho teórico é apropriado à problemática da relação de trabalho
e das autodenominadas “injustiças” que emanam das falas dos motoristas contratados por
plataformas digitais transnacionais.
A discussão da justiça é um tema central do debate teórico e institucional sobre as
democracias ocidentais, suscitada a partir das demandas por necessidades reais de grupos e
atores sociais. Dessa forma, a justiça não é um tema limitado ao Direito. Tal armação pode
ser explicada pelo fato de que:
Nas democracias contemporâneas, o tema da justiça tem mantido uma relação
muito estreita com a política, de forma que não é possível compreender os
seus diferentes elementos se partirmos de uma concepção losóca centrada
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na instrumentalização das normas para o cumprimento formal dos objetivos
expostos na lei. A relação entre justiça, direito e democracia não permite uma
abordagem disciplinar única e que reivindique unidade epistemológica sobre
essa difícil relação. A necessidade de transdisciplinaridade é recorrente quando
se quer estabelecer os nexos conceituais entre justiça, direito e democracia.(283)
Fraser centra sua preocupação, para além do Direito, nas práticas de emancipação e
transformação social. Insere-se em um projeto teórico que pretende abarcar, a um só tempo,
a losoa moral, a teoria social e a análise política em uma teoria crítica da sociedade capi-
talista(284), da qual é referência, como professora da New School de New York.
Inspirada na Escola de Frankfurt, tributária dos estudos marxistas, sua obra se baseia
em dois eixos: o primeiro deles é a teoria feminista — as lentes do feminismo — e o segun-
do a teoria marxista, uma crítica feroz ao capitalismo, o que a coloca como teórica socialista,
campo em que sempre se distanciou do marxismo mais ortodoxo.
Embora faça um diálogo constante com os autores da tradição liberal, fundando
sua teoria da justiça no princípio de paridade de participação, Fraser se propõe a fazer jus
à crítica marxiana do capital, sempre ampliada a partir das lentes da crítica feminista e dos
agudos desaos trazidos pelo capitalismo globalizado.(285) Essa herança está presente no
modo como situa a justiça redistributiva, voltada à necessidade de transformar a estrutura do
capitalismo(286), ponto crucial que a diferencia do liberalismo igualitário(287) e que se dedica
a sustentar, mesmo que reconheça sua insuciência e necessidade de complementação por
outras dimensões da justiça.
A autora desenvolve uma teoria política da justiça, para além da dimensão jurídica,
como conceito bastante ampliado e que vem sendo alargado ao longo da sua trajetória. Para ela,
justiça diz respeito ao sentido kantiano de moralidade, baseada em normas universalmente
(283) AVRITZER, Leonardo et al. (Orgs.). Introdução. In: AVRITZER, Leonardo et al. (Orgs.). Dimensões políticas da
justiça. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2013. p. 17.
(284) FRASER, Nancy; HONNETH, Axel. Introduction. In: FRASER, Nancy; HONNETH, Axel. Redistribution or recogni-
tion? A political-philosophical Exchange. Tradução de Joel Golb, James Ingram e Christiane Wilke. London: Verso,
2003. p. 3.
(285) A respeito da visão da autora sobre a crítica marxiana do capital: FRASER, Nancy. Por trás do laboratório
secreto de Marx. Por uma concepção expandida do capitalismo. Revista Direito e Praxis, Rio de Janeiro, v. 06, n. 10,
p. 704-728, 2015. FRASER, Nancy; JAEGGI, Rahel. Capitalismo em debate. Uma conversa na teoria crítica. São Paulo:
Boitempo, 2020. passim.
(286) FRASER, Nancy. Social Justice in the Age of Identity Politics: Redistribution, Recognition and Participation.
In: FRASER, Nancy; HONNETH, Axel. Redistribution or recognition? A political-philosophical Exchange. Tradução de
Joel Golb, James Ingram e Christiane Wilke. London: Verso, 2003, p. 35.
(287) O liberalismo igualitário é aquele no qual as preocupações se centram apenas em desigualdades distributi-
vas, sem questionar os mecanismos estruturais e os arranjos institucionais que as geram. FRASER, Nancy; JAEGGI,
Rahel. Capitalismo em debate. Uma conversa na teoria crítica. São Paulo: Boitempo, 2020. p. 141-143.
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