Prefácio

AutorAna Carolina R. P. Leme
Páginas29-36
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De Vidas e Vínculos
Prefácio
Demandas por Dignidade: Experiências
de Injustiça e Lutas por Direitos dos
Trabalhadores de Plataformas Digitais
“L’exigence de justice au travail a été un
moteur de la transformation des institutions.”
Alain Supiot. Le travail de la justice dans l’histoire, 2022.
C’est injuste! O desabafo do trabalhador no documentárioA bout de course, les chaueurs
français contre Uber”(1) está em francês, mas é perfeitamente compreendido em todo o
mundo que vivencia a mundialização das práticas empresariais abusivas e de desconexão
injusticada da plataforma digital promovidas pela empresa que distribui o trabalho e di-
rige a prestação pessoal de serviços pelos motoristas aos seus clientes cadastrados no App
de uma das maiores empresas de transporte individual de passageiros e de entregas de
produtos e serviços, externalizando o trabalho e os custos dos equipamentos. Experiências
de injustiça vivenciadas nas vias, calles, avenidas e ruas do mapa da vida de gente de carne e
osso, engendradas por tantas outras na rede virtual do capitalismo digital que, como avatares
desprovidos de alma e de pudor, constroem relações de trabalho moralmente indecentes.
Experiências de injustiça acionam reivindicações morais e demandas por justiça.(2)
(1) Título do documentário escrito e produzido por Benjamin Carle et Ella Cerfontaine, para a France Télevisions,
sobre as lutas jurídicas e sindicais dos motoristas de VTC em Paris, a partir dos depoimentos de Brahim Ben Ali,
da representação dos motoristas de Villeneuve-d’Ascq e do advogado trabalhista Jérôme Giusti, e sobre as de-
núncias trazidas nos documentos conhecidos como “Uber Files”, denunciadas por um ex-lobista da empresa. O
documentário está disponível em france.tvpreview, maiores informações em:
nu-de-presse/41825014>, e foi lançado no último dia 18 de outubro, por ocasião da greve geral convocada por
centrais sindicais francesas por aumento salarial e contra as reformas anunciadas pelo governo Macron.
(2) DUBET, François. Injustiças: a experiência das desigualdades no trabalho. Florianópolis : Editora da UFSC, 2014.
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Sans papiers, des livreurs Uber Eats réclament leur régularisation”.(3) Publicada no do
Le Monde poucos dias após a defesa da tese de Ana Carolina Paes Leme, a notícia demonstra
como as lutas coletivas contra a precarização do trabalho, intensicada no capitalismo de
plataformas pelas empresas que exploram de modo predatório a força de trabalho de pessoas
em situação de vulnerabilidade, estão na ordem do dia. Em diversos países nos quais big
techs espoliam leis, burlam regras e buscam impor um modelo de organização produtiva por
meio de plataformas e aplicativos, sem proteção social e direitos trabalhistas, há reclamos
contra as injustiças perpetradas pela gestão algorítmica, pelo unilateralismo das plataformas
e que, em muitos momentos, eclodem em movimentos coletivos de resistência.
No mês de setembro de 2022, trabalhadores imigrantes desconectados unilateralmente
pela Uber Eats francesa e sem perspectivas de sobrevivência, protestaram coletivamente contra a
decisão da empresa de desconectá-los da plataforma sob o argumento de que suas inscrições
seriam irregulares, por uso de documentos inválidos. O cancelamento das 2.500 “contas” foi
realizado pela Uber Eats com a justicativa de ocorrência de “fraude documental” na criação
dos pers, bem como outras práticas tidas pela empresa como irregulares. A marcha dos
entregadores agrupou mais de três centenas de trabalhadores pelas ruas de Paris, expres-
sando coletivamente esta experiência de injustiça e suas demandas por justiça, reclamando
regularização de seus vistos para permanência e trabalho e reconexão para manutenção da
atividade de entrega e obtenção de renda. Argumentam que suas atividades eram conhecidas
e registradas pela plataforma, que utilizou largamente de sua força de trabalho durante a
pandemia e os desconectou quando a calamidade sanitária cessou e o risco diminuiu. Recla-
mam, ainda, o reconhecimento de seu tempo de serviço prestado na França, necessário para
os ns de obtenção do visto para trabalho e permanência no país.
O trabalho durante a pandemia, em risco acentuado de contágio, foi um argumento
mobilizado pelos trabalhadores em suas denúncias contra a desconexão coletiva realizada
pela plataforma ao nal do verão francês. Na França, permite-se a regularização adminis-
trativa dos vistos de estrangeiros, residentes há mais de três anos, com trabalho remunerado
por mais de 24 meses. Contudo, os procedimentos de regularização não estão acessíveis
aos entregadores e a instabilidade decorrente da ausência de visto diculta as demandas e
as manifestações públicas dos trabalhadores. As manifestações dos entregadores sans pa-
piers explicitam a dimensão de precariedade contida nesta atividade intensa e degradada,
longe dos discursos de liberdade,(4) bem como agregam o elemento da dupla condição de
(3) PASCUAL, Julia. Sans papiers, des livreurs Uber Eats réclament leur régularisation Plus de 2 500 travailleurs sans titre
de séjour ont vu leurs comptes désactivés par la plate-forme et n’ont désormais plus de revenus. Disponível em: Sans
papiers, des livreurs Uber Eats réclament leur régularisation Plus de 2 500 travailleurs sans titre de séjour ont vu
leurs comptes, Le Monde, 25-26 set. 2022.
(4) “Doctorant en sociologie au Conservatoire national des arts et métiers (CNAM) et auteur d’une thèse sur les
travailleurs de plates-formes de livraison de repas, Arthur Jan rappelle qu’au lancement des plates-formes, ‘il y
avait beaucoup d’étudiants ou de jeunes peu diplômés, attirés par une promesse de exibilité, d’indépendance et
la pratique du vélo’. ‘Mais les rémunérations ont chuté et, au fur et à mesure de la dégradation des conditions de
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estrangeiros e estrangeiros indocumentados. Em recente pesquisa (2021), menos de 10%
dos entregadores tinham nacionalidade francesa, sendo que maior parte dos entrevistados
(85%) emigraram da África (31% da região do Maghreb e 54% da Africa subsariana). Os
restos da colonização se evidenciam quando se observa que, em 2021, os entregadores de
nacionalidade algeriana correspondem a 21% dos entregadores(5) na França. Além da ca-
minhada à sede da empresa, os trabalhadores organizaram bicicleatas,(6) atos de protestos,
demonstrando a força do que nasce quando se vivencia uma situação de injustiça, com
reivindicações (7) que permitam viver e trabalhar com dignidade.
Os relatos dos entregadores publicados pelo Le Monde demonstram o “sentimento
de frustração” diante da desconexão coletiva promovida pelo Uber Eats depois de um longo
período de trabalho arriscado durante a pandemia da Covid-19.(8) Frustração pelos direitos
travail, on a vu de plus en plus de travailleurs issus de l’immigration, relate-t-il. Depuis deux ans, on observe une
population massivement composée d’étrangers arrivés il y a moins de cinq ans et, pour beaucoup, sans-papiers’“.
In: PASCUAL, Julia. Sans papiers, des livreurs Uber Eats réclament leur régularisation Plus de 2 500 travailleurs
sans titre de séjour ont vu leurs comptes désactivés par la plate-forme et n’ont désormais plus de revenus. Dis-
ponível em: Sans papiers, des livreurs Uber Eats réclament leur régularisation Plus de 2 500 travailleurs sans titre
de séjour ont vu leurs comptes. Le Monde, 25-26 set. 2022. Disponível em:
cle/2022/09/24/des-livreurs-uber-eats-sans-papiers-reclament-leur-regularisation_6142974_3224.html>. Acesso
em: 25 set. 2022.
(5) Dablanc L. (Dir.), Aguiléra A., Krier C., Adoue F. et Louvet N., (2021). Étude sur les livreurs des plateformes de
livraison instantanée du quart nord-est de Paris. Rapport nal, 98 p. 16)
(6) Organizada com apoio do Collectif des livreurs autonomes des plates-formes, do syndicat CNT-SO e da Fédération
SUD Commerces et Services, no dia 1o de outubro de 2022.
(7) Segundo o Le Monde, “L’intersyndicale a également écrit aux ministères de l’intérieur et de l’économie le 19 sep-
tembre an de réclamer des régularisations. Aujourd’hui, une personne sans-papiers peut être régularisée par le travail
si elle remplit certaines conditions, comme une présence en France depuis trois ans, un contrat de travail et 24 ches
de paie. Un cadre détaillé dans une circulaire ministérielle de 2012 dite ‘circulaire Valls’ mais qui ne prévoit rien pour
ceux qui relèvent du statut d’autoentrepreneur, excluant de facto la plupart des livreurs”. Em cada lugar, as injustiças
se apresentam de forma diversa e com múltiplos aspectos, todos decorrendo das políticas disruptivas em rela-
ção aos direitos e à fuga à formalização dos contratos de trabalho promovidas pelas plataformas. Caso tivessem
seus vínculos empregatícios reconhecidos, as entregadores que imigraram para França em busca de melhores
condições de vida e sobreviência poderiam ter seus vistos de trabalho deferidos, superando-se eventuais irregu-
laridades. “Nous vous demandons d’actualiser la circulaire en incluant les ‘factures’ et les ‘preuves de paiement’ émises
par les diérentes plates-formes dans la liste des pièces qui justient le travail en France, demande l’intersyndicale. Une
revendication que soutient Uber Eats: ‘Il faudrait que le travail indépendant (...) soit pris en compte dans la procédure
de régularisation’, écrit la plate-forme au Monde. Sollicité, le ministère de l’intérieur n’a pas souhaité réagir. Auditionné
mardi 20 septembre devant la commission des lois de l’Assemblée nationale, Gérald Darmanin a soutenu la régulari-
sation ‘des gens qui travaillent depuis des années sur le territoire’ mais a, dans le même temps, indiqué son souhait de
faire en sorte ‘qu’on ne puisse pas créer une entreprise lorsqu’on n’est pas régulier sur le territoire’”. Disponível em:
tps://www.lemonde.fr/societe/article/2022/09/24/des-livreurs-uber-eats-sans-papiers-reclament-leur-regularisa-
tion_6142974_3224.html>.
(8) ‘Uber Eats, ça les arrangeait bien qu’on travaille pendant la pandémie ou l’hiver. Ils ont fait semblant de ne
pas savoir’, s’indigne Aboubakar, qui a plongé dans la ‘galère’ depuis la désactivation de son compte. ‘On pensait
qu’on allait être récompensés pour avoir travaillé pendant le connement mais au lieu de ça, ils nous mettent à la
porte comme des merdes’, peste Kevin, un livreur sénégalais de 30 ans. (“O Uber Eats era um bom ajuste para eles,
quer trabalhemos durante a pandemia ou no inverno. Eles ngiram não saber”, disse Aboubakar, que mergulhou
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sonegados, frustração pela despedida arbitrária abusiva e injusta, travestida de “descone-
xão”. No caso dos entregadores franceses, penso que a decisão de demandar relaciona-se
à percepção de ruptura em uma conança estabelecida, uma traição, a desilusão diante da
impossibilidade de permanência no trabalho e, quiçá no país.(9)
As experiências dos trabalhadores considerados “essenciais” durante os períodos de
connamento e distanciamento na calamidade sanitária e suas demandas por dignidade
impulsionam ainda mais movimentos de resistência, de reconhecimento de direitos sonegados e
pleitos por alterações normativas. No Brasil, com alta taxa de mortalidade e contaminação e
inexistência de políticas governamentais ou regras que garantissem o fornecimento gratuito
de itens de prevenção à contaminação pelo Sarvs-Cov2, os trabalhadores invisibilizados
pelas plataformas realizaram manifestações coletivas, como o #brequedosApps e se organi-
zaram.(10) Com muito atraso e pouca proteção, a Lei n.14.297/2022 estabeleceu medidas
de prevenção e reparação devidas pelas empresas de aplicativos aos entregadores durante a
calamidade sanitária, bem como a explicitação formal pelas plataformas das hipóteses de
suspensão, bloqueio ou descredenciamento dos entregadores em seus termos de uso. (11)
Impõe à empresa fornecedora do serviço que garanta ao entregador acesso à agua potável
e às instalações sanitárias. Determina que a empresa proprietária do aplicativo contrate
seguro capaz de cobrir danos decorrentes de acidentes sofridos pelos entregadores durante
a atividade de retirada e entrega, bem como assegura pagamento de indenização e “assistên-
cia nanceira”, calculada de acordo com a média trimestral dos valores recebidos, em caso
de afastamento por Covid-19. Com vigência limitada ao período de emergência sanitária
e aprovada depois de 18 meses de calamidade de saúde e mais de 500 mil pessoas mortas
no Brasil, a Lei assegura que, em caso de afastamento de entregador em razão de infecção
comprovada pela Covid-19, a empresa plataforma efetue seu pagamento por 15 dias, pror-
rogáveis por mais 30 dias (Lei n. 14.297/2022, art. 4o). O magro regime de direitos explicita
o grau de precariedade dos entregadores, sem reconhecimento do assalariamento a que
em “problemas” desde a desativação de sua conta. “Pensamos que seríamos recompensados por trabalhar du-
rante o connamento, mas, em vez disso, eles nos expulsam como”, disse Kevin, um entregador senegalês de
30 anos.”). Disponível em: .lemonde.fr/societe/article/2022/09/24/des-livreurs-uber-eats-sans-pa-
piers-reclament-leur-regularisation_6142974_3224.html>.
(9) São os sentimentos de traição, de frustração e de percepção de que se sofreu um ato injusto que, segundo
François Dubet (Injustiças: a experiência das desigualdades no trabalho. Florianópolis: editora UFSC, 2014), cons-
tituem elementos importantes para a decisão dos trabalhadores em demandar contra seus empregadores ou
tomadores de serviço, para além do descumprimento das normas legais ou contratuais ajustadas entre as partes.
(10) GONDIM, Thiago Patrício. A Luta por direitos dos trabalhadores “uberizados”: apontamentos iniciais sobre
organização e atuação coletivas. Mediações — Revista de Ciências Sociais, 25(2), 2020, 469–487. Disponível em:
.
(11) BRASIL. Lei n. 14.297, de 05 de janeiro de 2022. Dispõe sobre medidas de proteção asseguradas ao entregador
que presta serviço por intermédio de empresa de aplicativo de entrega durante a vigência da emergência em
saúde pública decorrente do coronavírus responsável pela Covid-19. Disponível em: https://www.planalto.gov.
br/ccivil_03/_ato2019-2022/2022/lei/l14297.htm Acesso em: 30 set. 2022.
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estão submetidos, desprovidos das proteções que as lutas sindicais, políticas e legislativas
dos trabalhadores arrancaram no século passado, com a construção do constitucionalismo
social, da seguridade social e do Direito do Trabalho.
Na agenda de debates sobre os entregadores e motoristas acionados por aplicativos,
os temas da precarização do trabalho, da deterioração das condições de vida, dos elevados
riscos à integridade físico-psíquica e de acidentes de trabalho, estão intimamente ligados
com a sonegação dos direitos sociais que decorrem da (des)responsabilização das platafor-
mas digitais em face aos trabalhadores, considerados como “parceiros”, “clientes”, “autôno-
mos”, “prestadores de serviços”, em um movimento de fuga da legalidade juslaboral, com
a reiterada recusa em reconhecer a presunção de assalariamento por parte das empresas.
Por sua centralidade, o assunto desperta o interesse de pesquisadores vinculados às boas
universidades, sejam elas nacionais ou estrangeiras. Na área do Direito do Trabalho, assim
como as pesquisas realizadas na UFRJ, na UFBA e na UFPR(12), também são precursores
os estudos oriundos da Universidade Federal de Minas Gerais,(13) centro de excelência e
que conta com uma competente equipe de docentes e pós-graduandos. O livro publicado
pela LTr Editora em 2019, de autoria de Ana Carolina Reis Paes Leme, “Da máquina à
nuvem: caminhos para o acesso à justiça pela via de direitos dos motoristas da Uber” é um
dos frutos do trabalho desenvolvido no âmbito do Programa de Pós-Graduação em Direito
da UFMG, assim como o é a obra que tenho a alegria de prefaciar, originária de tese de
(12) Sem pretender esgotar a lista das referências sobre o tema, cito: OLIVEIRA, Murilo Carvalho Sampaio. O Direito
do Trabalho (des)conectado nas plataformas digitais. Teoria Jurídica Contemporânea, v. 4, n. 1 (2019). Disponível
em: ; CARDOSO, Ana Claudia Moreira; ARTUR, Karen;
OLIVEIRA, Murilo Carvalho Sampaio. O trabalho nas plataformas digitais: narrativas contrapostas de autonomia,
subordinação, liberdade e dependência. Revista Valore, [S.l.], v. 5, p. 206-230, set. 2020; OLIVEIRA, Murilo Carvalho
Sampaio; CARELLI, Rodrigo de Lacerda; GRILLO, Sayonara. Conceito e crítica das plataformas digitais de trabalho.
Revista Direito e Práxis, Rio de Janeiro, v. 11, n. 4, p. 2.609-2.634, 2020; OLIVEIRA, Murilo de Carvalho Sampaio. As
Plataformas Digitais e o Direito do Trabalho: como entender a tecnologia e proteger as relações de trabalho no
século XXI. Belo Horizonte: Editora Dialética, 2021; GONDIM, Thiago. A Luta por Direitos dos Trabalhadores “Ube-
rizados”: Apontamentos iniciais sobre organização e atuação coletivas. Mediações — Revista de Ciências Sociais,
25, 469, 2020; MACHADO, Sidnei; ZANONI, Alexandre Pilan (Orgs.). O trabalho controlado por plataformas digitais:
dimensões, pers e direitos. Curitiba: UFPR, Clínica Direito do Trabalho, 2022. E-book.
(13) Dentre os quais destaco: LEME, Ana Carolina Reis Paes; RODRIGUES, Brusno Alves; CHAVES JÚNIOR, José Eduardo
de Resende (Coords.). Tecnologias disruptivas e a exploração do trabalho humano. São Paulo: LTr, 2017. p. 162-164;
ORSINI, Adriana Goulart de Sena; LEME, Ana Carolina Reis Paes. Litigância manipulativa da jurisprudência e plata-
formas digitais de transporte: levantando o véu do procedimento conciliatório estratégico. Revista eletrônica [do]
Tribunal Regional do Trabalho da 9a Região, v. 10, n. 95, p. 24-44, jan. 2021. Disponível em:
br/handle/20.500.12178/182394>. Acesso em: 18 abr. 2022; ORSINI, Adriana Goulart de Sena; LEME, Ana Carolina
Reis Paes. Salário mínimo, máscara e alquingel: acesso ao mínimo ou mínimo de acesso? Revista Direito, UnB, v.
4, n. 2, p. 171-197, maio/ago. 2020. Disponível em:
ticle/view/32405/27452#:~:text=O%20Sindicato%20venceu%20a%20a%C3%A7%C3%A3o,humanos%2Ct%C3%
AAm%20direitos%2C%20trabalham!>. Acesso em: 23 abr. 2022. REIS, Daniela Muradas; CORASSA, Eugênio Del-
maestro. Aplicativos de Transporte e Plataforma de Controle: o mito da tecnologia disruptiva e a subordinação por
algoritmo. In: LEME, Ana Carolina Reis Paes; RODRIGUES, Bruno Alves; CHAVES JÚNIOR, José Eduardo de Resende
(Coords.). Tecnologias disruptivas e a exploração do trabalho humano. São Paulo: LTr, 2017.
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doutorado orientada pela professora Adriana Goulart de Sena Orsini (UFMG) e aprovada
por banca integrada pelos professores Guilherme Guimarães Feliciano (USP), Ana Claudia
Moreira Cardoso (UFJF), Maria Cecília Máximo Teodoro (PUC-Minas), Tereza Cristina
Baracho ibau (UFMG), Adriana Goulart de Sena Orsini (UFMG) e Raysa Sarmento de
Souza (UFPA) e que mereceu a nota máxima, por sua qualidade.
De vidas e vínculos: as lutas dos motoristas plataformizados por reconhecimento, redis-
tribuição e representação no Brasil” é fruto de um diálogo entre saberes acadêmicos distintos
e de uma pesquisa empírica consistente.(14) À rica e consistente análise, somam-se a crítica
indispensável para a construção de saberes sobre relações jurídicas que envolvem fenôme-
nos hipercomplexos e a bela escritura de Ana Carolina Reis Paes Leme, que nos permite
uma uidez de leitura e um rico aprendizado. A autora assume o desao de aproximar os
campos judicial e judiciário do acadêmico, com o objetivo de furar bloqueios ao acesso à
justiça e contribuir para que o Poder Judiciário não sucumba às estratégias que conspiram
contra o Estado Constitucional Democrático de Direito”. Em suas palavras, “a Justiça precisa
não apenas tirar a venda — fazendo uma referência a Têmis, a deusa da justiça que tem os
olhos vendados —, mas olhar de perto, percebendo as demandas anteriores e também aquelas
concomitantes ao reconhecimento jurídico.” Não se trata, adverte Ana Carolina Leme, de
agir com parcialidade ou de se distanciar à necessária imparcialidade intrínseca à função
jurisdicional, mas de erigir uma “Têmis da modernidade”, que não seja “vendada, enganada
ou manipulada”.
Graduada em Direito na Universidade Federal de Uberlândia, desde cedo Ana Carolina
beneciou-se da perspectiva interdisciplinar que as universidades públicas permitem ao
se engajar no programa de iniciação cientíca no curso de geograa, sob os auspícios da
UFU e CNPq. A construção social do espaço, o pensamento inovador e rigoroso de Milton
Santos — intelectual brasileiro cuja obra é de leitura obrigatória a meu sentir — sobre o
ambiente, o consumo, cidadania e globalização, inuenciaram a autora a prosseguir para as
áreas ambiental e quando percebeu como a “pobreza e as injustiças sociais afetam o meio
ambiente natural, ‘debandou’ do Direito Ambiental para o Direito do Trabalho”.
No Direito do Trabalho, sua trajetória é de sucesso, pois foi aprovada em concurso
público e empossada como servidora do Tribunal Regional do Trabalho na 3a Região e nos
processos seletivos para os programas de Mestrado e Doutorado da Universidade Federal
de Minas Gerais. Orientada pela competente professora e desembargadora Adriana Sena,
escolheu seus temas de pesquisa a partir da percepção sobre a injustiça a que estavam sub-
metidos os motoristas de Belo Horizonte que forneciam os serviços de Uber Black. Seu
(14) Sindicato dos Condutores de Veículos que utilizam aplicativos de Minas Gerais, o Sindicato dos Motoristas de
Transporte Privado Individual de Passageiros por Aplicativo do Estado do Pernambuco, o Sindicato de Motoristas
de Transportes por Aplicativo do Estado do Pará, o Sindicato dos Trabalhadores com Aplicativos de Transporte
Terrestre Intermunicipal do Estado de São Paulo, o Ride-share Drivers United, a Associação dos Motoristas Par-
ceiros das Regiões Urbanas do Brasil, a Associação de Motoristas Autônomos e de Plataforma Digital de Brasília.
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depoimento sobre os motivos da escolha dão conta de sua insatisfação com as injustiças
cotidianas quando soube que um trabalhador que haviam buscado organizar um coletivo
para dialogar com a empresa plataforma havia sido “bloqueado porque fez motim”. O mito da
economia do compartilhamento começava a desmontar e a partir de congressos e discussões
conjuntas entre diversos juristas do trabalho, a consistência das reexões sobre as evidências
empíricas conduziram à construção de um objeto de pesquisa dentro de um campo que se
abria. Com os colegas José Eduardo de Resende Chaves Júnior e Bruno Alves Rodrigues, e
apoio da editora LTr, organizaram o livro Tecnologias Disruptivas e a Exploração do Trabalho
Humano. Seus artigos sobre “Uber e o Uso do Marketing da Economia Colaborativa” e “A
Relação entre o Implemento das Inovações Tecnológicas Disruptivas e a Potencialização de
Práticas Antissindicais” foram escritos durante o mestrado.
Durante a pandemia, assim como demonstraram nossas pesquisas na UFRJ sobre
trabalhadores essenciais e judicialização, a “ação da pandemia” foi a reivindicação judicial
por fornecimento de equipamentos de proteção individual, em um momento no qual o
direito de emergência do trabalho no Brasil, ao contrário do que ocorreu em outros países,
voltou-se para proteger a continuidade das atividades econômicas ou suspensão de contra-
tos e redução salarial, em vez de instituir deveres claros para empregadores e tomadores de
serviços de proteção à saúde e à vida de seus trabalhadores, com o fornecimento das medi-
das adequadas para proteção e prevenção. Se por toda a história será importante contar e
relembrar os pequenos fatos que contribuiram para que mais de 670 mil famílias brasileiras
perdessem seus entes queridos durante a emergência sanitária da Covid-19, para a acade-
mia brasileira é importante registrar os estudos que visibilizaram o papel que as instituições
do trabalho — dentre as quais as entidades sindicais, o Ministério Público do Trabalho e a
Justiça do Trabalho, cada qual com suas possibilidades e limites — desempenharam neste
período de dor e luto. Enquanto no Rio catalogávamos as ações dos trabalhadores do setor
de saúde e as respostas institucionais dadas pelos sindicatos e justiça do trabalho às neces-
sidades prementes dos técnicos, enfermeiros e auxilares de enfermagem que lutavam pela
vida,(15) na UFMG a autora e sua orientadora reetiam sobre o mínimo de acesso para o
acesso ao mínimo pelo Sindicato dos Trabalhadores em Aplicativos no Ceará.(16) Foi então
que os primeiros passos para a construção da pesquisa que resultou neste livro começaram,
com a observação sobre o movimento sindical dos motoristas de transporte individual de
(15) Rero-me ao projeto de pesquisa que desenvolvi, envolvendo bolsistas de iniciação cientíca do programa
PIBIC-UFRJ e CNPq, mestrandos e doutorandos vinculados ao PPGD-UFRJ e pós-doutorando vinculado à CAPES,
sobre Direito do Trabalho e Pandemia (2020-2022), e que resultou em alguns artigos, dentre os quais o de minha
coautoria com Thiago Patrício Gondim e Joyce Moreira da Rocha Forte intitulado“Saúde em Pandemia: demandas
sindicais de trabalhadores essenciais e respostas institucionais”, no livro “Cidade standard: precarização e recon-
gurações urbanas”, publicado em 2020 pelo PROURB da UFRJ, disponível no link: .
(16) Salário minimo, máscara e alquingel: acesso ao mínimo ou mínimo de acesso? In: Revista Direito. UnB, v. 4, n. 2,
p. 171-197, maio/ago. 2020.
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passageiros por plataformas e a observação presencial da reunião de fundação da FENAS-
MAPP, federação sindical assim denominada em virtude da autonomia organizativa que os
trabalhadores têm, que a Constituição lhes assegura, embora a dogmática tradicional tenda
a encarar de outro modo, pela discrepância com as formas jurídicas talhadas no ultrapassado
título V da CLT. Paro por aqui, para não dar mais spoilers sobre o livro que tenho a alegria
de prefaciar, não sem antes observar que a trajetória de uma doutoranda diz muito sobre sua
tese. Em sua tese, Ana retoma o pensamento crítico de Milton Santos, não à toa. Diga-me o que
lês, diga-me o que vês, que te direi minha percepção sobre o que és. Lembro-me, então, do
encanto que também tive ao ler que a globalização era fábula, perversidade, possibilidade,
quando caiu em minhas mãos a brochura de “Por uma outra globalização”. Inovador, Mil-
ton Santos revelava a globalização como ápice do processo de internacionalização capitalis-
ta, mas antecipava a necessidade de compreender o fenômeno por um olhar conjunto sobre
o estado das técnicas e o estado da política. A tecnologia das informações, a cibernética, a
informática, a eletrônica (e, hoje, acrescentaríamos a IA e os algorítmos) que conformam o
atual estágio das técnicas possibilitam a simultaneidade de ações, a aceleração do tempo e
dos processos históricos, ao tempo em que o olhar para a política nos permite compreender
que existem sujeitos que constroem, agem ou se omitem, para a construção desta história. O
pensamento de Milton Santos esteve sempre presente nesta trajetória, ampliando o espaço
dos saberes, abrindo caminhos e fornecendo lentes para ver um fenômeno que, assim como
a globalização é, ao mesmo tempo, fábula, perversidade e possibilidade.(17)
Que superadas as fábulas que nos contam sobre as plataformas, possamos nos sensi-
bilizar sobre as perversidades que engendram as empresas que as desenvolvem e controlam
com processos de trabalho precarizados e desprotegidos, para construir possibilidades de
inclusão, movimentos coletivos e empatia. Da fábula da economia do compartilhamento,
da perversidade do capitalismo de plataforma devemos engendrar possibilidades para que as
plataformas sejam locais de encontro, trabalho digno e utopia de um mundo melhor.
De Paris para Minas Gerais, outubro de 2022.
Sayonara Grillo
Professora da Faculdade Nacional de Direito.
Desembargadora do Trabalho no TRT-1.
(17) Tomo de empréstimo para a analogia, as expressões e pensamento de Milton Santos. Globalização como
fábula de um discurso que retrata um fenêmeno tal como nos fazem vê-lo: as ideias de aldeia global, de morte do
Estado, de mercado dito global indicam a ideologização maciça embutida no discurso da globalização. Como per-
versidade, porque não podemos desprezar a dimensão do mundo global tal como é, com desemprego, pobreza,
exclusão social crescente, aumento das desigualdades e polarização, mas também como possibilidade. Anal, é
preciso jamais olvidar que se as bases materiais que propiciaram a globalização forem postas a serviço de outros
fundamentos sociais e políticos, estarão criadas as condições para diminuir a nocividade inerente à atual globa-
lização econômica. In: Por uma outra globalização: do pensamento único à consciência universal. Rio de Janeiro:
Record, 2000.
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