O mapa: o contexto das lutas por acesso à justiça dos motoristas plataformizados

AutorAna Carolina R. P. Leme
Páginas61-134
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De Vidas e Vínculos
Capítulo 2
O Mapa: O Contexto das Lutas
por Acesso à Justiça dos Motoristas
Plataformizados
Tudo começa com um mapa. Não apenas o geográco, mas e inclusive o mental, aquele
que idealiza a bagagem, os caminhos, as estradas e os destinos. Antes de iniciar uma
viagem, denida a rota, é preciso compreender os percalços da travessia: os econômicos, os
sociais, os culturais e, até mesmo, os políticos.
No entanto, a viagem dos motoristas plataformizados por justiça não se trata apenas
de uma simples jornada, mas de uma árdua saga. Em uma terra ameaçada pelos domínios
das plataformas transnacionais, há a manipulação do espaço geográco, por meio de barreiras
impostas nos caminhos que ligam um ponto a outro, sob o olhar eternamente vigilante dos
algoritmos, protegidos por escudos intransponíveis. A prática de atos sindicais é a forma
que os motoristas encontraram para transporem juntos os empecilhos desse caminho. Em
união, os percalços montanhosos e os vales do silêncio das plataformas parecem mais passíveis
de serem percorridos. Nesse contexto, o Direito é o “graal” capturado pelas plataformas,
escondido e abafado, obstruindo o acesso dos motoristas àquele destino que lhes pertence
por direito: a Justiça.
Neste capítulo, será feita a contextualização das lutas por acesso à justiça dos motoristas
plataformizados, indicando a exploração do espaço pelas plataformas de transporte — com
a manipulação do território, construção do campo de atuação da Uber e da 99 no Brasil, a
relação entre os algoritmos e a prática de atos sindicais — e o papel do Direito do Traba-
lho, com a contribuição da Academia. Também será traçado o panorama das lutas desses
trabalhadores via o acesso individual e o acesso coletivo à Justiça, em busca do enquadra-
mento jurídico, iniciando-se pelo surgimento da uberização dentro do contexto capitalista
neoliberal.
2.1. A uberização no contexto do capitalismo neoliberal e pandêmico
O panorama das lutas por acesso à justiça dos motoristas plataformizados se insere
no contexto do capitalismo global, neoliberal e nanceirizado, no cenário tecnológico da
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Indústria 4.0.(39) Capitalismo não é mero sistema econômico, mas algo maior, “uma ordem
social institucionalizada”(40), que depende, para sua reprodução, de um conjunto de condições
não econômicas de fundo, indispensáveis para uma economia capitalista, tais como:
as atividades não remuneradas da reprodução social, que asseguram a oferta
de trabalho assalariado para a produção econômica; um aparato organizado
de poder público (leis, polícia e agências reguladoras) que fornece a ordem, a
previsibilidade e a infraestrutura necessárias para a acumulação sustentada; e,
nalmente, uma organização relativamente sustentável da interação metabó-
lica com o resto da natureza, que assegure suprimentos essenciais de energia e
matérias-primas para a produção de mercadorias, além de um planeta habitável
que possa sustentar a vida.(41)
O capitalismo, nas palavras de Fraser, é “um problema e um objeto digno de atenção
política e intelectual”, na medida em que corresponde a essa “crise sistêmica severa” que se
enfrenta nos dias de hoje e não se limita a um conjunto de problemas pontuais, mas “uma
profunda disfunção estrutural alojada no coração de nossa forma de vida”.(42) Fraser explica
que o problema não é apenas “econômico”, não está relacionado somente à desigualdade, ao
desemprego ou à má distribuição, por mais sérias que sejam tais questões. A autora explicita
que “também não é só o 1% contra os 99%, ainda que essa retórica tenha inspirado muita
gente a começar a fazer perguntas sobre o capitalismo”. Fraser aponta que “acima e para
além da questão de como a riqueza é distribuída, há o problema do que conta como riqueza
em primeiro lugar e de como essa riqueza é produzida”. Aprofundando na abordagem da
crise do capitalismo, a autora aborda a questão que considera central para discutir “quem
recebe quanto por qual tipo de trabalho”, que é saber “o que conta como trabalho”, “como ele
é organizado”, “do que essa organização demanda hoje das pessoas” e “do que está fazendo
com elas”(43).
Muito além de discutir por que alguns têm mais e outros menos, embora isso não seja
nada irrelevante, Fraser convida ao debate acerca do “por que tão poucas pessoas têm hoje
(39) “A Indústria 4.0 também chamada de Quarta Revolução Industrial, engloba um amplo sistema de tecnologias
avançadas como inteligência articial, robótica, internet das coisas e computação em nuvem que estão mudando
as formas de produção e os modelos de negócios no Brasil e no mundo.” (INDÚSTRIA 4.0: entenda seus conceitos
e fundamentos. Disponível em: . Acesso
em: 27 jun. 2022).
(40) FRASER, Nancy; JAEGGI, Rahel. Capitalismo em debate. Uma conversa na teoria crítica. São Paulo: Boitempo,
2020. p. 13.
(41) FRASER, Nancy. O velho está morrendo e o novo não pode nascer. Tradução de The old is dying and the new
cannot be born/ Verso, 2019. São Paulo: Autonomia Literária, 2020. p. 65.
(42) FRASER, Nancy; JAEGGI, Rahel. Capitalismo em debate. Uma conversa na teoria crítica. São Paulo: Boitempo,
2020. p. 14-15.
(43) Ibidem, p. 15.
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a vida estável e uma sensação de bem-estar” e “por que tantas pessoas têm de lutar por traba-
lhos precários, fazendo malabarismos com diversos empregos com menos direitos, proteções
e benefícios, enquanto se endividam”.(44) Fraser alerta que o termo capitalismo continua
sendo usado como sinônimo de “modernidade” em alguns círculos e, na sua concepção,
muito pelo contrário, o capitalismo deve ser visto, hoje, como “forma de vida abrangente,
ancorada, como diria Marx, num modo de produção”, que abrange “um conjunto especí-
co de pressupostos, dinâmicas, tendências de crise, bem como contradições e conitos
fundamentais”.(45)
O capitalismo pode ser descrito, segundo a autora, em quatro fases históricas,
segundo diferentes regimes de acumulação: mercantil, liberal, administrado pelo Estado
e nanceirizado neoliberal, que se caracterizam não só por diferentes modos de relacionar
Estado e mercados, mas também especícas formas de relacionar produção e reprodução,
natureza e sociedade.(46)
O capitalismo nanceirizado(47) é entendido como uma nova fase do capitalismo que
surge como reação aos problemas do capitalismo administrado pelo Estado, o qual entra em
crise nos anos 1970. Essa crise foi não apenas econômica, mas também política. Uniram-
-se, no aspecto político, tanto a crítica à esquerda que buscava transcender os limites da
social-democracia, incorporando as lutas raciais, de gênero e a crítica à burocracia, quanto
a crítica propriamente neoliberal, destinada a liberar as forças de mercado do controle e
de fronteiras estatais e que se apropriou das críticas ao Estado, deslegitimando o Estado
de bem-estar.(48) O resultado foi a hegemonia do capital nanceiro e, “como a vida social
como tal é cada vez mais dependente da economia, a busca desenfreada do lucro desesta-
biliza as próprias formas de reprodução social, sustentabilidade ecológica e poder público
do qual depende”.(49) Por conseguinte, é inerente a uma “formação social propensa a crises”,
compreendido o capitalismo nanceiro como uma organização social profundamente pre-
datória e instável, que libera a acumulação de capital das próprias restrições (políticas, eco-
lógicas, sociais, morais) necessárias para sustentá-la ao longo do tempo. Assim, “liberto de tais
(44) FRASER, Nancy; JAEGGI, Rahel. Capitalismo em debate. Uma conversa na teoria crítica. São Paulo: Boitempo,
2020. p. 15.
(45) Idem.
(46) Ibidem, p. 82 e ss.
(47) Conforme Ricardo Antunes, o capital nanceiro engloba desde o capital ctício até aquele que controla a
produção e concebe o trabalho estritamente como “custo”. (ANTUNES, Ricardo. Capitalismo pandêmico. São Paulo:
Boitempo, 2022. p. 20).
(48) FRASER, Nancy; JAEGGI, Rahel. Capitalismo em debate. Uma conversa na teoria crítica. São Paulo: Boitempo,
2020. p. 96-100.
(49) FRASER, Nancy. Do neoliberalismo progressista a Trump — e além. Política & Sociedade, Florianópolis, v. 17, n. 40,
p. 43-64, set./dez. 2018. Disponível em:
7984.2018v17n40p43/38983/215885>. Acesso em: 02 maio 2022, p. 63.
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restrições, a economia capitalista consome suas próprias condições básicas de possibilidade”,
caracterizada metaforicamente por Fraser “como um tigre que come seu próprio rabo”.(50)
A nanceirização signica o desmantelamento das barreiras e das proteções à livre
circulação do capital, a desregulamentação bancária, a ampliação de dívidas predatórias e
a desindustrialização, com o enfraquecimento dos sindicatos e difusão dos trabalhos pre-
cários e mal remunerados(51). Esse capitalismo nanceirizado contemporâneo é produto
do neoliberalismo(52), que gera, além da crise política global, uma crise mais ampla e mul-
tifacetada que atua também nas vertentes econômica, ecológica e social, contexto no qual
proliferaram trabalhos precários e mal remunerados(53). Esse é o terreno que se considera
ter sido propício para que a uberização se instalasse.
Para Fraser, o capitalismo nanceirizado não dispensou ou suprimiu a regulação política
da economia. Ao revés, ele estabeleceu uma nova arquitetura político-nanceira interna-
cional, recongurando aquela antes vigente no regime dos acordos de Bretton Woods(54). O
capitalismo desenvolveu-se rumo a um sistema econômico mundial sem, porém, um Estado
mundial, articulando-se com o sistema mundial de Estados existentes e suas múltiplas
assimetrias de poder. Daí que a autora arma, com David Harvey, que “a lógica política do
capitalismo é distinta de sua lógica econômica”. O capital opera no espaço transnacional
e tende a ignorar os limites, mas tem de se defrontar com as fronteiras políticas nacio-
nais. Assim, “o espaço transnacional no qual o capitalismo opera tem de ser politicamente
construído”(55). A economia de mercado sempre dependeu da estrutura jurídico-política que
(50) FRASER, Nancy. O velho está morrendo e o novo não pode nascer. Tradução de The old is dying and the new
cannot be born/ Verso, 2019. São Paulo: Autonomia Literária, 2020. p. 66.
(51) FRASER, Nancy. Do neoliberalismo progressista a Trump — e além. Política & Sociedade, Florianópolis, v. 17, n. 40,
p. 43-64, set./dez. 2018. Disponível em:
7984.2018v17n40p43/38983/215885>. Acesso em: 02 maio 2022, p. 46.
(52) Nancy Fraser faz um exame do neoliberalismo partindo do pressuposto da falência do modelo politicamen-
te hegemônico de uma aliança entre uma versão progressiva das políticas de reconhecimento e uma versão
regressiva da política econômica, chamada por ela de “neoliberalismo progressista” e, frente à emergência de
uma versão hiper-reacionária do neoliberalismo, simbolizada por Donald Trump, a autora defende a ideia de uma
versão progressista do populismo como ator contra-hegemônico no atual contexto social em FRASER, Nancy.
Do neoliberalismo progressista a Trump — e além. Política & Sociedade, Florianópolis, v. 17, n. 40, p. 43-64, set./
dez. 2018. Disponível em:
40p43/38983/215885>. Acesso em: 02 maio 2022.
(53) FRASER, Nancy. Do neoliberalismo progressista a Trump — e além. Política & Sociedade, Florianópolis, v. 17, n. 40,
p. 43-64, set./dez. 2018. Disponível em:
7984.2018v17n40p43/38983/215885>. Acesso em: 02 maio 2022. p. 44.
(54) Para saber mais sobre o regime dos acordos de Bretton Woods, propostas denidas entre os participantes
da Conferência Monetária e Financeira Internacional das Nações Unidas e Associadas, realizada entre 1 e 22 de
julho de 1944, compreendido, por Fraser, como sistema de controle de capital, estabelecido sob a hegemonia dos
Estados Unidos, vide: FRASER, Nancy; JAEGGI, Rahel. Capitalismo em debate. Uma conversa na teoria crítica. São
Paulo: Boitempo, 2020. p. 92 e ss.
(55) FRASER, Nancy; JAEGGI, Rahel. Capitalismo em debate. Uma conversa na teoria crítica. São Paulo: Boitempo,
2020. p. 95.
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lhe propiciaram os Estados territoriais, a m de garantir os direitos de propriedade, o cum-
primento dos contratos, decidir conitos, impor a ordem e a segurança e reprimir rebeliões.
Isso signica, segundo a autora, que a globalização neoliberal, na medida em que esvazia
as capacidades político-jurídicas do Estado, coloca em xeque uma das condições de possi-
bilidade do próprio capitalismo, congurando uma “crise política da sociedade capitalista
[...] ancorada numa contradição especicamente política da sociedade capitalista: o fato de
que sua economia, a um só tempo, depende e tende a desestabilizar os poderes públicos”(56).
Por outro lado, a reação ao capitalismo globalizador neoliberal deve enfrentar questões
urgentes como mudança climática e regulação do capital nanceiro, que não têm como ser
tratadas em nível nacional, exigindo formas de governança global.(57) Esse aspecto evidencia
aquilo que a autora identica como necessidade de reenquadrar a Justiça em um mundo
globalizado, diante da ultrapassagem do quadro westfaliano-keynesiano(58) pela globali-
zação neoliberal, que será retomado no capítulo 3, no qual será explicitado o seu conceito.
Resolver a crise, na visão de Fraser, requer uma transformação estrutural do capitalismo
nanceirizado, com uma nova maneira de relacionar a economia com a política, a produção
com a reprodução, a sociedade humana com a natureza não humana, o que demanda como
solução, “um projeto que seja, no mínimo, antineoliberal, se não anticapitalista(59).
Dentre os autores nacionais, Ricardo Antunes destaca a enorme expansão do neoli-
beralismo a partir do nal dos anos 1970, com consequente crise do Welfare State e como
resultado de um processo de regressão da social-democracia, que passou a atuar de maneira
muito próxima da agenda neoliberal. Segundo ele, o “neoliberalismo passou a ditar o ideário
e o programa a serem implementados pelos países capitalistas, inicialmente no centro e logo
depois nos países subordinados”. Sua caracterização envolve um pacote de medidas que
incluem “reestruturação produtiva, privatização acelerada, enxugamento do estado, políticas
scais e monetárias, sintonizadas com os organismos mundiais de hegemonia do capital
como Fundo Monetário Internacional”.(60)
(56) FRASER, Nancy; JAEGGI, Rahel. Capitalismo em debate. Uma conversa na teoria crítica. São Paulo: Boitempo,
2020. p. 56.
(57) Ibidem, p. 233.
(58) Segundo Fraser, a expressão enquadramento keynesiano-westfaliano tem o objetivo de sinalizar a
dimensão nacional-territorial das bases das disputas judiciais no apogeu do Estado de bem-estar democrático,
aproximadamente de 1945 até a década de 1970. O termo “westefaliano” refere-se ao Tratado de 1648, que
estabeleceu algumas características do moderno sistema de estados internacionais. In: FRASER, Nancy. Scales of
Justice — Reimagining Political Space in a Globalizing World. 1. reimp. New York: Columbia University Press, 2009.
Nota n. 1. p. 160.
(59) FRASER, Nancy. O velho está morrendo e o novo não pode nascer. Tradução de The old is dying and the new
cannot be born/ Verso, 2019. São Paulo: Autonomia Literária, 2020. p. 66.
(60) ANTUNES, Ricardo. Capítulo II: Trabalho e precarização numa ordem neoliberal. In: ANTUNES, Ricardo. A cida-
dania negada. Políticas de exclusão na educação e no trabalho. Buenos Aires: Consejo Latinoamericano de Ciencias
Sociales, 2000. p. 35-48. Disponível em:
pdf>. Acesso em: 11 jun. 2022.
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Mesmo nos países centrais, os efeitos do capital em sua fase nanceirizada neoliberal
são sentidos em termos de deterioração progressiva das condições de trabalho e vida das
populações trabalhadoras, aumento das desigualdades, aprofundamento das vulnerabilidades
e perda da capacidade de ação reguladora dos mercados pelos poderes públicos. Já em países
periféricos(61) como o Brasil, onde as conquistas do chamado Estado de Bem-Estar Social
não chegaram nem perto dos níveis de concretização obtidos naqueles centrais, em que pese
o plano normativo estabelecido pelo constituinte de 1988, os efeitos da onda precarizadora
impactam “a seco” relações sociais já signicativamente desprovidas de um colchão de segu-
rança.
Desponta, em virtude disso, a importância de se voltar os olhos para o referencial
normativo desempenhado pelo Estado de Bem-Estar Social, que Lorena Vasconcelos Porto
e Mauricio Godinho Delgado apontam como “paradigma de controle civilizatório do capi-
talismo”, ao sintetizar em sua “fórmula de gestão pública e social”(62), a armação de valores
fundamentais à democracia, como a valorização do trabalho e do emprego, a justiça social
e o bem-estar. Para os autores, a história recente do capitalismo demonstra que o grau de
sucesso da inserção das economias no mundo globalizado tende a ser diretamente propor-
cional a seu distanciamento do ideário ultraliberalista e que, nos países periféricos, com
economias pouco competitivas, baixa qualicação prossional e baixos salários, há maior
“empreendedorismo” entre jovens. Indicam que os jovens, em países desenvolvidos, com
economias mais estáveis, onde há um Estado de Bem-Estar Social, optam massivamente
pelo contrato de emprego, por trabalharem em uma empresa na qual possam desenvolver
uma carreira prossional.(63)
A reexão acima se faz necessária para compreender a íntima relação entre a ausência
de uma anterior efetivação do Estado de Bem-Estar Social no Brasil e a atual dissemina-
ção de trabalhos precários por meio da “uberização” no território brasileiro. Na época da
realização da pesquisa de mestrado, “Da máquina à nuvem: caminhos para acesso à justiça
pela via dos direitos dos motoristas da Uber”, que antecedeu a este trabalho, o conceito de
“uberização” ainda não possuía consolidação cientíca ou doutrinária. Até aquele momento,
tal expressão era tida como derivada de um fenômeno mundial de repercussão econômica e
(61) Os países periféricos são os do chamado “Terceiro Mundo”, em que Miracy Barbosa de Souza Gustin há muito
já compreendia ser “visível que há nos países periféricos uma desesperança em relação a mudanças efetivas que
possam recompor o bem-estar social e atribuir maior dignidade à população como um todo, em especial àquela
em condição de pobreza e indigência”. E em razão disso, armou que “a eticidade do acordo político ca abalada
e, com ela, também a manutenção das relações democráticas e solidárias para o funcionamento da economia e
a sustentação da governabilidade” e “assim, cam minadas as possibilidades de expansão dos direitos humanos
e fundamentais”. In: GUSTIN, Miracy Barbosa de Souza. Resgate dos direitos humanos em situações adversas de
países periféricos. Revista da Faculdade de Direito UFMG, Belo Horizonte, n. 47, 2005, p. 181-212.
(62) DELGADO, Mauricio Godinho; PORTO, Lorena Vasconcelos. O Estado de Bem-Estar Social (Welfare State) no
capitalismo contemporâneo. In: DELGADO, Mauricio Godinho; PORTO, Lorena Vasconcelos (Orgs.). Welfare State:
os grandes desaos do estado de bem-estar social. São Paulo: LTr, 2019. p. 35.
(63) Ibidem, p. 36.
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social, surgida a partir da eclosão, no ano de 2010, do sistema produtivo da empresa “Uber”,
baseado em uma suposta ideia de economia compartilhada (sharing economy), que inuenciou
práticas de prestação de serviços e de contratação de trabalhadores. No panorama atual, a
uberização se caracteriza, segundo Antunes, como “um processo no qual as relações de tra-
balho são crescentemente individualizadas e invisibilizadas, assumindo, assim, a aparência
de prestação de serviços” enquanto as reais relações de assalariamento e de exploração do
trabalho cam eclipsadas”(64).
Em meio a essa crise profunda e estrutural do sistema capitalista, algumas empresas
conseguem se aproveitar de uma massa imensa de trabalhadores e trabalhadoras que precisam
de qualquer trabalho, uma miríade de homens e mulheres, em virtude da alta força de
trabalho sobrante(65). Tais plataformas se utilizam de tecnologia magistralmente dispendida
para controlar e gerir esse trabalho multitudinário, detendo controle da tecnologia, das
redes de servidores e do maquinário digital. Foram esses os fatores que levaram à eclosão
do capitalismo de plataforma.(66) Para Antunes, a uberização é uma genial articulação do
capital, a massa de homens e mulheres desempregados, precarizados, proletarizados e sem
trabalho são convertidos em empreendedores, virando todos burgueses, em um passe de
mágica e, com essa jogada de transformar trabalhador em empreendedor com autonomia,
as plataformas burlam a legislação do trabalho.(67)
A expansão dos supostos trabalhos autônomos e dos “empreendedorismos” manifesta-se
como formas ocultas de assalariamento do trabalho, introduzindo um “véu” ideológico(68)
(64) ANTUNES, Ricardo. Trabalho intermitente e uberização do trabalho no limiar da Indústria 4.0. In: ANTUNES,
Ricardo (Org.). Uberização, trabalho digital e Indústria 4.0. São Paulo: Boitempo, 2020. p. 11.
(65) Marcelo Manzano e André Krein, ao analisarem o contexto do mercado de trabalho brasileiro no período
que as plataformas iniciaram suas operações no Brasil, preceituam que “apesar do mercado de trabalho brasileiro
nunca ter passado por um processo de estruturação de fato e historicamente ser marcado pela forte presença da
informalidade, de 2003 a 2014 foi possível observar um crescimento do emprego e um processo de formalização
do trabalho no país, ainda que esse movimento tenha tido contradições. A partir de 2015, contudo, com a crise
econômica impulsionada pela política de austeridade e as reformas de orientação liberal que se seguiram (a lei
do Teto de Gastos de dezembro de 2016, a Reforma trabalhista de novembro de 2017 e a Reforma da Previdência
de novembro de 2019), o desemprego dobrou e permaneceu em patamar superior aos 11%, a subutilização da
força de trabalho alcançou 1/4 da população ativa e houve uma proliferação do número de trabalhadores em
ocupações precárias, bem como um aumento da exploração do trabalho”. (MANZANO, Marcelo; KREIN, André. A
pandemia e o trabalho de motoristas e de entregadores por aplicativo no Brasil. CESIT, 1o jul. 2021. Disponível em:
.
Acesso em: 27 jun. 2022).
(66) As informações constantes neste parágrafo vieram de anotações de sala de aula da matéria Sociologia do Tra-
balho III ministrada por Ricardo Antunes na Unicamp, no 2o semestre do ano de 2021 (09.08.2021 a 31.12.2021),
cujo título era: “A Uberização do Trabalho. O conceito de capitalismo de plataforma será desenvolvido adiante.
(67) Expressões que Ricardo Antunes usou na Live “Capitalismo de crise e crise das esquerdas”. Evento salão do
livro político. Canal da Boitempo, aconteceu no dia 23.06.2022 e que está disponível em:
com/watch?v=6Ib8gIuEKPA>.
(68) Oportunas as palavras de Gustavo Seferian: “[...] se quisermos desacobertar esse véu ideológico, imprescindível
se faz buscar a expressão dessa ideologia em sua materialidade, nas instituições, nas práticas sociais humanas”.
MACHADO, Gustavo Seferian Scheer. A ideologia do contrato de trabalho: contribuição à leitura marxista da relação
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para obliterar uma realidade incapaz de oferecer vida digna para os trabalhadores. Isso
ocorre porque, “ao tentar sobreviver, o ‘empreendedor’ se imagina como proprietário de si
mesmo, um quase-burguês, mas frequentemente se converte em um proletário de si próprio,
que autoexplora seu trabalho”(69).
Ranúlio Moreira explicita que o “mercado globalizado neoliberal impõe sua ideo-
logia” e, “antes de sugar toda a força produtiva do trabalhador, já consegue fazer dele um
derrotado, pois lhe mostra a todo instante que ele não é capaz de acompanhar a velocíssima
evolução tecnológica”, fazendo-o se sentir “frágil, impotente, incompetente e culpado”. E
conclui que “as novas técnicas de gestão nessa fase informacional, com a propagação dos
meios informatizados de produção, fazem o operário acreditar que ele não se atualizou”, e
que, portanto, a culpa é toda dele e que está “fadado à exclusão do mercado de trabalho pela
sua própria inércia”(70).
Além de dar materialidade a processos muito fortemente associados ao neoliberalis-
mo, a uberização pode ser entendida como uma espécie de generalização e espraiamento de
características estruturantes da vida de trabalhadores da periferia, que transitam entre ocupa-
ções formais e informais, as quais compõem sua trajetória pela instabilidade e pela ausência
de uma identidade prossional denida, raramente contando com uma rede de proteção e
segurança socialmente instituída via mundo do trabalho.(71) Segundo Ludmila Abílio, ao se
destacar como expoente desse processo de uberização, a empresa Uber deu visibilidade a um
novo passo na subsunção real do trabalho(72), que, no caso brasileiro, seria, de acordo com a
autora, uma subsunção real da “viração”(73), isto é, das formas anteriores de sobrevivência dos
mais pobres no mercado de trabalho.
jurídica laboral. Dissertação (Mestrado em Direito do Trabalho). São Paulo: Faculdade de Direito, Universidade de
São Paulo, 2012.
(69) ANTUNES, Ricardo. Trabalho intermitente e uberização do trabalho no limiar da Indústria 4.0. In: ANTUNES,
Ricardo (Org.). Uberização, trabalho digital e Indústria 4.0. São Paulo: Boitempo, 2020. p. 16. O conceito de autoex-
ploração é desenvolvido em HAN, Byung-Chul. Psicopolítica. Barcelona: Herder, 2015. p. 38-48.
(70) MOREIRA, Ranúlio Mendes. O neoliberalismo e a banalização da injustiça social. Revista do Tribunal Regional
do Trabalho 3a Região, Belo Horizonte, v. 45, n. 75, p. 173-184, jan./jun. 2007. Disponível em:
bd-trt3/handle/11103/27364>. Acesso em: 27 jun. 2022, p. 181.
(71) ABILIO, Ludmila Costhek. Uberização: gerenciamento e controle do trabalhador just-in-time. In: ANTUNES,
Ricardo (Org). Uberização, trabalho digital e indústria 4.0. São Paulo: Boitempo, 2020. p.111-124. p. 113.
(72) Os processos de aquisição primária são processos de subsunção formal, assim como a compra de força de
trabalho é um processo de subsunção formal. A subsunção real é aquela na qual o capital transforma em valor
aquilo que ele próprio produziu. Pensar na subsunção real do trabalho signica pensar na subsunção real total de
um trabalho que o capital produziu por inteiro, desde a formação intelectual, cultural, reprodução, ou seja, como
deniu Ludmila Costhek Abílio, o processo de uberização absorve também os saberes das formas anteriores de
sobrevivência. ABÍLIO, Ludmila Costhek. Uberização do trabalho: subsunção real da viração. Passa Palavra, 19 fev.
2017. Disponível em: . Acesso em: 16 out. 2020.
(73) ABÍLIO, Ludmila Costhek. Uberização do trabalho: subsunção real da viração. Passa Palavra, 19 fev. 2017. Dis-
ponível em: . Acesso em: 16 out. 2020.
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Tal raciocínio se liga à reexão de Fraser que parte daquilo que Marx desvendou, o
“laboratório secreto” do capital ou a origem do valor, na esfera da produção, para além da
aparência da esfera da circulação. Contudo, para que haja produção, Fraser chama à per-
cepção o fato de que são necessárias “condições de fundo”, das quais o capital depende, mas
que o próprio capital não produz, ligadas respectivamente à reprodução social, à ecologia da
terra e ao poder político.(74) Dessa forma, ca reforçada a ideia de que o capitalismo se apoia
em recursos que ele próprio não produz, tanto humanos, como os modos de sociabilidade,
vínculos de solidariedade, aprendizado, formas de vida, estruturas político-jurídicas, quanto
naturais, a terra, as dádivas do planeta. O que a uberização recrudesceu foram os processos
diretos de apropriação dos recursos de sobrevivência e da cooperação social dedicados ao
trabalho pela “viração” da “classe-que-vive-do trabalho”.(75)
A esse trágico cenário de devastação das relações sociais sob o domínio do capital,
veio se somar a pandemia global. A crise estrutural do capital somada à explosão do vírus
SARS-CoV-2 resultou no que Antunes denomina de “capitalismo pandêmico”, cuja dinâmica
é muito mais brutal e intensa para as pessoas que dependem do trabalho para viver. Nesta
posição, a classe trabalhadora se viu sob “intenso fogo cruzado entre a situação famélica e
a contaminação virótica, ambas empurrando para a mortalidade e a letalidade”(76). Antunes
(74) FRASER, Nancy. Por trás do laboratório secreto de Marx: por uma concepção expandida do capitalismo
[Behind Marx’s Hidden Abode, for an Expanded Conception of Capitalism]. Trad. Mayra Cotta; Miguel Patriota. Direito
& Práxis, v. 6, n. 10, p. 704-728, 2015. A estratégia de Fraser, nesse texto, foi a olhar primeiro para Marx e depois para
além dele, na esperança de jogar uma nova luz sobre o que exatamente é o capitalismo e como melhor deni-lo.
Segundo Fraser, “Nos faltam concepções sobre o capitalismo e a crise capitalista que sejam adequadas ao nosso
tempo.[...] O caminho passa pelo de Karl Marx, cuja concepção do capitalismo eu me proponho a reexaminar com
este objetivo em mente. O pensamento de Marx tem muito a oferecer como uma fonte de conceitos gerais.[...]
Enquanto Marx olhou para além da esfera de troca, analisando o ‘laboratório secreto’ da produção, para descobrir
os segredos do capitalismo, eu procurarei as condições de possibilidade da produção para além desta esfera, em
domínios ainda mais secretos. Para Marx, a primeira característica denidora do capitalismo é a propriedade pri-
vada dos meios de produção, o que pressupõe uma divisão de classes entre os proprietários e os produtores. Esta
divisão surge como resultado do m de um mundo social anterior, no qual a maioria das pessoas, independente-
mente de sua posição, tinha acesso aos meios de subsistência e aos meios de produção; acesso, em outras pala-
vras, a comida, moradia e vestimenta, e a ferramentas, terra e trabalho, sem a necessidade de mediação dos mer-
cados de trabalho. O capitalismo decididamente acabou com esta conguração. Ele cercou o comum, revogou o
direito costumeiro de uso da maioria e transformou os recursos compartilhados em propriedade privada de uma
reduzida minoria. Isso nos leva diretamente à segunda característica central de Marx, o mercado de trabalho livre,
porque os outros — isto é, a vasta maioria — agora precisa se desdobrar de uma forma bastante peculiar, a m
de que possa trabalhar e conseguir o necessário para continuar vivendo e criar seus lhos”. (Op. cit., p. 707-708).
(75) ANTUNES, Ricardo. Capítulo II: Trabalho e precarização numa ordem neoliberal. In: ANTUNES, Ricardo. A cida-
dania negada. Políticas de exclusão na educação e no trabalho. Buenos Aires: Consejo Latinoamericano de Ciencias
Sociales, 2000. p. 35-48. Disponível em:
pdf>. Acesso em: 11 jun. 2022.
(76) Ricardo Antunes explicita que “a visceral contradição que atingiu a totalidade da classe trabalhadora, que
se encontrava sob o fogo cruzado: era preciso que houvesse isolamento social e quarentena para evitar o con-
tágio pelo coronavírus. Sem isso, a classe trabalhadora seria cada vez mais contaminada, adoecendo e perecen-
do em maior quantidade. Mas como car em isolamento social o(a)s desempregado(a)s, o(a)s informais, o(a)s
trabalhadore(a)s intermitentes, o(a)s uberizado(a)s, o(a)s subutilizado(a)s, o(a)s terceirizado(a)s, isto é, aqueles
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expõe que o evidente caráter discriminatório com a “classe-que-vive-do-trabalho” se acen-
tuou fortemente no Brasil pela autocracia instalada pelo Presidente Jair Bolsonaro e pela
“pragmática neoliberal primitiva e antissocial do Ministro da Economia Paulo Guedes”.(77)
O cenário político que o Brasil vivencia hoje se resume a um desmonte avassalador
da legislação social protetora do trabalho, com a destruição da política de seguridade social,
aliado a medidas que visam enfraquecer os organismos de classe e restringir a atuação da
Justiça do Trabalho. Tudo isso a mando do que Antunes denomina de (des)governo. (78)
Nesse contexto político brasileiro desse (des)governo, que se declara neoliberal e
apoiador do sistema capitalista nanceirizado, em meio ao cenário pandêmico, é que se dão as
lutas por acesso à justiça dos motoristas plataformizados. “Vidas foram (e estão sendo des-
troçadas), direitos são extirpados, misérias são intensicadas e desigualdades exacerbadas”(79).
Tal agravamento trazido pela pandemia encontrou como contexto, já analisado em pesquisa
anterior, o surgimento de novas formas de exploração do trabalho humano em rede, com
a chamada “uberização da economia”, quando se vislumbrou a necessidade de mapear os
novos conitos entre capital e trabalho, sob a justicativa de que o primeiro possui hiper-
mobilidade maximizada (é virtual), enquanto o segundo é sedentário (é uma pessoa física).
Tal concepção, trabalhada durante a pesquisa de mestrado, encontra atualização no presente
trabalho, a partir da percepção de que as plataformas de transporte não são nunca apenas
virtuais, pois “é no território que realizam sua função concreta, permitindo uma ação e-
ciente e instantânea, por meio do controle remoto do trabalho(80) dos motoristas e seus
veículos.
que não têm direitos sociais e que recebem salários somente quando executam algum trabalho?” (ANTUNES,
Ricardo. Capitalismo pandêmico. São Paulo: Boitempo, 2022. p. 21-23).
(77) ANTUNES, Ricardo. Capitalismo pandêmico. São Paulo: Boitempo, 2022. p. 21-23.
(78) Referindo-se ao Governo de Jair Bolsonaro, que tem se mostrado comprometido com a desconstrução da
regulação pública trabalhista: a exibilização do mercado de trabalho, a prevalência do negociado sobre o le-
gislado, o trabalho insalubre ampliado para as trabalhadoras, as restrições à Justiça do Trabalho, dentre tantos
outros pontos nefastos, foram consubstanciados na Reforma Trabalhista (Lei n. 13.467), de 2017. E como se isso
não bastasse, a “contrarreforma” introduziu o trabalho intermitente, “um dos mais nocivos elementos presentes
no mundo do trabalho contemporâneo” e, a partir de então, “trabalhadores e trabalhadoras cam disponíveis
para o trabalho, mas recebem somente se forem chamados, o tempo de espera não é remunerado”. Além da
“demolição da previdência pública, o Governo de Bolsonaro ainda pretendeu criar a “Carteria de Trabalho Verde
e Amarela”, em que o contrato individual prevalecerá sobre a CLT. ANTUNES, Ricardo. Capitalismo pandêmico. São
Paulo: Boitempo, 2022. p. 78-85.
(79) ANTUNES, Ricardo. Capitalismo pandêmico. São Paulo: Boitempo, 2022. p. 11. Como dene Antunes, “o tra-
balho, antes entendido como valor, se tornou um desvalor, para criar mais-valor” e “Se assim é no sistema de
metabolismo social do capital, será preciso reinventar um novo modo de vida”. Nas palavras de Ricardo Antunes:
“There is no alternative. Esse é o imperativo crucial do nosso tempo”.
(80) TOZI, Fábio; DUARTE, Leandro Ribeiro; CASTANHEIRA, Gabriel Rocha. As plataformas digitais de transporte
por aplicativos no Brasil: atritos e tensões entre o território e as corporações. In: VIII Simpósio Nacional de Ciência,
Tecnologia e Sociedade. As plataformas digitais de transporte por aplicativos no Brasil: atritos e tensões entre o
território. Anais..., ESOCITE.BR, p. 186-196, 2019.
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Dessa feita, “embora se denam como empresas de tecnologia, sua ação concreta
ocorre no setor de transportes e depende da organização pretérita dos territórios onde
agem”, apoiando-se, assim, nas infraestruturas urbanas, estações de trem, metrô, localização
de moradias, empregos, serviços e comércios”(81), razão pela qual é imprescindível compreen-
der a construção do espaço pelas plataformas de transporte. Há de se buscar também, aí,
qual é o papel exercido pelo Direito, em especial o do Direito do Trabalho, na apropriação
do espaço territorializado das plataformas. Estes dois últimos aspectos serão tratados em
tópicos próprios mais adiante. Antes, porém, faz-se necessário compreender a própria dinâ-
mica das plataformas de trabalho. O chamado “capitalismo de plataforma”(82), é visto aqui
como uma das facetas da fase capitalista neoliberal nanceirizada e globalizada.
Há uma vasta literatura sobre conceito e classicação das plataformas de trabalho.
Florian Schmidt possui uma compreensão abrangente das plataformas, classicando-as em
plataformas de bens, de serviços, de dinheiro, de comunicação, de entretenimento e de infor-
mação(83). Valério de Stefano e Antonio Aloisi propõem uma divisão entre plataformas de
trabalho e aquelas que facilitam o acesso a bens, propriedade e capital(84).
Rodrigo de Lacerda Carelli e Murilo Carvalho Sampaio conceituam especicamente
as plataformas digitais de trabalho como “infraestruturas digitais que possibilitam a interação
de dois ou mais grupos, tendo como objeto principal o trabalho intensivo”. Consideram
como plataforma “não a natureza do serviço prestado pela empresa, mas sim o método,
exclusivo ou conjugado, para a realização do negócio empresarial”. Explicam que tanto as
plataformas digitais como as que não se digitalizaram, são “simplesmente um modelo de
organização empresarial que logo serão onipresentes, não fazendo nenhum sentido tratá-las
como um setor da atividade econômica”(85).
Os supracitados autores ressaltam a conhecida tática das empresas de transporte por
plataforma apresentarem-se como empresas de tecnologia, bem como se confundirem em
seu funcionamento como marketplace(86). Em pesquisa anterior, já foi ressaltada a utilização
(81) TOZI, Fábio; DUARTE, Leandro Ribeiro; CASTANHEIRA, Gabriel Rocha. As plataformas digitais de transporte
por aplicativos no Brasil: atritos e tensões entre o território e as corporações. In: VIII Simpósio Nacional de Ciência,
Tecnologia e Sociedade. As plataformas digitais de transporte por aplicativos no Brasil: atritos e tensões entre o
território. Anais..., ESOCITE.BR, p. 186-196, 2019.
(82) SNIRCEK, Nick. Platform Capitalism. Cambridge: Polity Press, 2017. p. 36.
(83) SCHMIDT, Florian. Digital Labour markets in the platform economy: mapping the political challenges of crowd
work and gig work. Bonn: Friedrich-Ebert-Stiftung, 2017.
(84) DE STEFANO, Valerio; ALOISIO, Antonio. European legal framework for “digital Labour platforms”. Luxembourg:
Publications Oce of The European Union, 2018.
(85) CARELLI, Rodrigo de Lacerda; OLIVEIRA, Murilo de Carvalho Sampaio. As Plataformas Digitais e o Direito do
Trabalho: como entender a tecnologia e proteger as relações de trabalho no século XXI. Belo Horizonte: Editora
Dialética, 2021. p. 60-67.
(86) Ibidem, p. 57.
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intensa do marketing da economia colaborativa e a deturpação linguística com a intenção
deliberada de fuga da aplicabilidade da legislação trabalhista. Todavia, aponta-se que, desde
20 de dezembro de 2017, o Tribunal Europeu já reconheceu que a empresa Uber desempenha
um serviço de transporte, rechaçando aquela argumentação empresarial.(87)
Nick Snircek chama a atenção para a operação de plataformas industriais em plantas
fabris, ressaltando aspecto muito menos visível, de que as plataformas de inteligência arti-
cial estão sendo usadas dentro de empresas convencionais, transformando profundamente
os processos de trabalho nessas empresas(88). Esse fenômeno, muito menos visível do que
a plataformização do trabalho uberizado, traz à consideração o quanto o uso de estratégias
de gestão do trabalho e a coordenação de fatores baseada em plataformas que empregam
inteligência articial não implica ruptura em relação àquilo que vem ocorrendo com maior
ou menor intensidade em todas as organizações de trabalho. Constatar a ordinarização do
uso de plataformas digitais baseadas em inteligência articial para a gestão do trabalho em
espaços empresariais convencionais ou não, permite demonstrar, assim, que é uma mistica-
ção pretender que a gestão por plataforma esteja a introduzir uma nova forma de organização
das relações de trabalho e que não possa ser captada pelos conceitos legais existentes.
Importantíssimo também refutar a crença de que existam “trabalhadores digitais”,
pois “o trabalhador sempre é de carne e osso, com necessidades, desejos, vontades, e realiza
o seu trabalho no mundo real”. Nesse sentido, o trabalho é sempre localizado” e “o que pode
se deslocar de maneira quase que instantânea é o produto do trabalho”. Outra crença que
merece ser desbancada é a do suposto “ciberespaço”: ele não existe, “é uma cção trazida
para possibilitar ou justicar a fuga da legislação”(89).
Carelli e Sampaio ressaltam a importância de identicar tais erros para a análise de
plataformas e do mundo digital em geral, sendo especialmente central para a regulação do
trabalho. Armam que “mesmo o trabalho dito on-line é localizado” e “justamente por ser
realizado por um trabalhador a partir de um local e seu resultado poder ser imediatamente
recebido em outra parte do planeta também localizável é que o trabalho em plataforma”(90)
pode trazer desaos cruciais que demandam adequada articulação entre o global e o local.
(87) LEME, Ana Carolina Reis Paes. Da máquina à nuvem: caminhos para o acesso à justiça pela via de direitos dos
motoristas da Uber. Dissertação (Mestrado em Direito) – Programa de pós-graduação em Direito da Faculdade
de Direito da UFMG, 2018. Disponível em: . Acesso em: 28 abr.
2020, p. 34.
(88) SNIRCEK, Nick. Platform Capitalism. Cambridge: Polity Press, 2017.
(89) CARELLI, Rodrigo de Lacerda; OLIVEIRA, Murilo de Carvalho Sampaio. As Plataformas Digitais e o Direito do
Trabalho: como entender a tecnologia e proteger as relações de trabalho no século XXI. Belo Horizonte: Editora
Dialética, 2021. p. 66.
(90) Ibidem, p. 67.
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Demandas por justiça dos trabalhadores, localmente situados, frente a corporações trans-
nacionais(91) que mascaram sua atuação territorial, podem esbarrar em obstáculos intrans-
poníveis pela falta de instâncias adequadas capazes de fazer essa articulação em condições
de paridade de participação(92), valendo-se dos limitados instrumentos do direito nacional
e organismos internacionais.
O espaço jurídico-laboral está em disputa, contudo, as empresas de transporte indi-
vidual plataformizado já o vêm construindo largamente a seu favor, antes, durante e após
a publicação dos textos normativos e decisões dos tribunais, que não estão protegidos da
força de inuência das transformações fáticas produzidas pelos dispositivos de atuação das
plataformas e pelo seu grande poder de lobby sobre os poderes estatais.(93) Exemplo desse
poder de inuência deu-se com a própria Comissária responsável pela agenda digital da
Comissão Europeia, Neelie Kroes, que, no exercício do cargo, manifestara-se a favor da
companhia, qualicando de “loucura” a decisão de um tribunal de Bruxelas que, em 2014,
proibiu a atuação da Uber na Bélgica e, alguns meses após deixar a Comissão Europeia, pas-
sou a integrar, em 2016, o Comitê de Conselho em Política Pública da Uber(94). Ademais,
já nos momentos nais de escrita desta obra, em 10.07.2022, vieram a público os denomi-
nados Uber Files, conjunto de mais de 124 mil arquivos digitais vazados e publicados por
um consórcio de jornalistas em conjunto com os jornais e Guardian e Le Monde, também
reproduzido nas mídias brasileiras, os quais trazem várias evidências de como a Uber violou
leis, escondeu informações de autoridades de diferentes países, chegando a ações de lobby
exercidas diretamente com o presidente dos Estados Unidos, Joe Biden e o atual presidente
da França, Emmanuel Macron, à época em que exercia o cargo de ministro da economia.(95)
Essas revelações conrmaram a estratégia que aqui já se vinha apontando, de ter a
Uber atuado para criar um espaço protegido da aplicação do direito para permitir a sua
operação no país criando uma ctícia “zona cinzenta” — como se dene adiante —, pela
qual ora se vale de normas criadas de acordo com seus interesses, ora simplesmente se
furta à aplicação da lei ou a manipula a seu favor. Essa a estratégia que confundiu pessoas
(91) Observa-se que as plataformas nacionais também vêm se utilizando da mesma organização do trabalho
implantada no país pelas transnacionais.
(92) FRASER, Nancy. Reconhecimento sem ética? Tradução de Ana Carolina Freitas Lima Orgando e Mariana Pran-
dini Fraga Assis. Lua Nova, São Paulo, v. 70, p. 101-138, 2007. p. 113 (artigo originalmente publicado na Revista The-
ory, Culture e Society, v. 18, p. 21-42, 2001). O conceito de paridade de participação será explicitado no capítulo 2.
(93) Diversas dessas estratégias de lobby da Uber são descritas pelo observatório Corporate Europe (UBER: an
EU lobby prole. Corporate Europe, 11 jul. 2022. Disponível em:
-prole>. Acesso em: 1o ago. 2022).
(94) SUPIOT, Alain. La justice au travail. Paris: Le Seuil, 2022. p. 34 e 63.
(95) Jornal O Tempo, 10 jul. 2022. Disponível em: -
-mostram-que-uber-violou-leis-diz-jornal-britanico-1.2697195>. Acesso em: 11 jul. 2022. UBER Files: Documentos
vazados mostram como a empresa interferiu em leis locais. Estadão, 10 jul. 2022. Disponível em:
tadao.com.br/noticias/empresas,uber-les-documentos-vazados-mostram-como-a-empresa-interferiu-em-leis-
-locais,70004113081>. Acesso em: 11 jul. 2022. INVESTIGAÇÃO revela lobby da Uber para mudar leis trabalhistas.
G1 Website, 10 jul. 2022. Disponível em:
-revela-lobby-da-uber-para-mudar-leis-trabalhistas-10746289.ghtml>. Acesso em: 11 jul. 2022.
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e trabalhadores sobre uma suposta ausência de regulação pública do serviço de transporte
privado de passageiros intermediado por plataforma digital e do trabalho plataformizado.
Trata-se de um processo muito mais amplo do qual as disputas pela produção, interpretação
e aplicação do direito fazem parte.
Por tal razão, percebe-se que a disrupção das plataformas não está na “nuvem”, ou
seja, na tecnologia que utilizam ou em seu “novo modelo de negócio”, a disrupção está
“para além da nuvem”: a disrupção encontra-se na violação sistêmica do Direito, no caso do
Brasil, tanto na violação do Direito nacional como na construção de um espaço de suposta
ausência de lei aplicável ao contrato de trabalho pactuado com os motoristas.
2.2. Para além da nuvem: a construção do espaço pelas plataformas de
transporte
Estar nas nuvens é uma expressão idiomática que costuma signicar sentir-se feliz,
no melhor dos mundos, inteiramente realizado. A nuvem também se tornou a imagem me-
tonímica do grande modelo da indústria 4.0, algo que remete ao imaginário de que o capital
globalizado e nanceirizado, com a revolução tecnológica digital, o capitalismo de dados, a
governança pelos dispositivos digitais de controle, teria enm se libertado das determina-
ções e limitações do mundo concreto do trabalho realizado por pessoas de carne e osso e do
território, conquistando assim a sua própria felicidade. Com efeito, as primeiras abordagens
sobre as plataformas digitais de transporte atentaram naturalmente para a força disrup-
tiva do modelo de negócios baseado nos dispositivos tecnológicos e em sua capacidade
de dominar digitalmente o trabalho vivo. Inegavelmente, se nas duas primeiras revoluções
industriais a máquina consubstanciava a essência do controle do trabalho vivo pelo trabalho
morto, nas duas últimas revoluções industriais, esse controle se desloca substancialmente da
máquina para a nuvem, mas não integralmente como já foi demonstrado.
Não obstante, como as pesquisas mais recentes sobre o tema – inclusive a pesquisa de
campo aqui apresentada – têm revelado, não se trata de um dos polos da relação, o capital,
car “nas nuvens”, porque cticiamente “está nas nuvens”, mas não está, está em concreto.
Explica-se: por mais que o diferencial introduzido pelos dispositivos digitais de controle,
capazes de arregimentar e controlar o trabalho humano, clientes e dados em grande escala,
seja crucial, o seu intento de domínio depende de um arsenal estratégico muito mais amplo.
Um grande conjunto de condicionantes que se materializa na necessidade de construção de
um espaço territorial que viabilize, ao ser dócil e receptivo, o modelo de negócio dessas em-
presas. Por isso, para pensar as questões pertinentes à (in)justiça no trabalho dos motoristas
plataformizados, é relevante uma abordagem que perceba a ação das plataformas em termos
de construção do espaço e conformação do seu território de atuação.
Nos tópicos deste capítulo, abordar-se-á a construção do espaço pelas plataformas
de transporte, mediante diferentes frentes estratégicas. Inicialmente, apresenta-se o mapa
de atuação das plataformas de transporte em termos de estruturação do espaço geográco
e manipulação do território. A seguir, relata-se o processo de chegada e expansão do campo
de atuação da Uber e da 99 no Brasil. Na sequência, revela-se a relação entre a manipulação
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dos motoristas pelos algoritmos e a prática de atos antissindicais como estratégia de com-
bate às iniciativas de reconguração do espaço de regulação pelos trabalhadores. Por m,
sedimentado o papel do Direito do Trabalho e da jurisprudência na regulação civilizatória
do trabalho dos motoristas plataformizados, será problematizada a estratégia empresarial
de manipulação do Direito, com a contribuição da pesquisa acadêmica, para desvelar os
bloqueios no acesso à justiça.
2.2.1. As plataformas de transporte e o espaço: a manipulação do território
As plataformas de transporte otimizam o aproveitamento e a apropriação dos
recursos existentes no espaço territorial. Todavia, também interferem diretamente sobre o
território, transformando-o e construindo-o de acordo com as suas necessidades. Isso tam-
bém inclui os recursos político-jurídicos ligados ao Estado nacional, atuando fortemente
para manter-se o mais longe possível de qualquer regulação jurídica nacional que a vincule,
mesmo sem deixar de se beneciar da mesma estrutura jurídica de garantia de contratos,
preservação de marcos de atuação e demais condições que lhe disponibilizam contingentes
massivos de trabalhadores e consumidores.
Assim, tais empresas estabeleceram seu espaço por meio de manipulação da lin-
guagem, manipulação ideológica (o “empreendedorismo”), manipulação da mídia, mani-
pulação da legislação e da competência para legislar (vide a competência legislativa para o
transporte privado de passageiros por plataformas, deslocada da União para os municípios
(“Lei do Uber”), como também a manipulação da jurisprudência. Esse movimento pode
ser visto como fuga do território legal, por meio da criação de uma zona cinzenta de não
enquadramento ou, mais precisamente, de enquadramento híbrido, via regras manipulató-
rias, criando vácuos seletivos para a atuação estatal de modo a ampliar o espaço de atuação
territorial das plataformas.
O exame da construção do espaço pela Uber pode ser incrementado a partir do
conceito de Milton Santos que dene o espaço geográco como “conjunto indissociável de
sistemas de objetos e de ações”(96). O objeto geográco é visto na interação entre permanência
e transformação, ou seja, atravessado pelo tempo. Essa interação se estabelece na relação
entre o que o autor denomina de xos e uxos.(97)
Os elementos xos são aqueles que podem ser apontados em cada lugar do mapa
com certa permanência no tempo, constituindo suportes estáveis para a vida social. Além
disso, os xos têm sempre uma função. Como exemplos, o sistema viário de um local, o
relevo, as residências, os estabelecimentos de alimentação, ambientes de trabalho, escolas,
bosques, lugares de lazer, veículos etc. São formas que se perpetuam no espaço e, por isso,
(96) SANTOS, Milton. A natureza do espaço: técnica e tempo, razão e emoção. 4. ed. São Paulo: Edusp, 2009.
(97) SANTOS, Milton. Técnica, Espaço, Tempo: globalização e meio técnico cientíco e informacional. 5. ed. São Paulo:
Editora da Universidade de São Paulo, 2013.
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permitem que ações modiquem o próprio lugar, por meio de uxos novos ou renovados
que recriam as condições ambientais e as condições sociais.(98)
Os uxos, por sua vez, são “um resultado direto ou indireto das ações”. Eles atravessam
ou se instalam nos xos, modicando a sua signicação e o seu valor, ao mesmo tempo
em que, também, se modicam.(99) Uma montanha, como xo, sofre a ação de perfuração
humana (uxo) resultando em um xo (túnel) no qual está instalada aquela ação transfor-
madora. Pelo túnel, que compõe o sistema viário (xo), passará o uxo dos veículos — que
também são xos —, conduzidos, vários deles, por motoristas plataformizados, levando o
cidadão doente para o hospital, a estudante à faculdade, a gestante que deu à luz antes de
chegar à maternidade, em suma, o uxo da vida, quiçá da morte, que se inclui no estar vivo.
Pelos telefones celulares circulam os uxos de chamados via aplicativo, informações
de rotas e comandos impulsionados automaticamente pelos algoritmos, que se situam em
trânsito entre dispositivos xos. Edifícios de bancos são xos pelos quais circula o uxo
de dinheiro físico ou digital, mas que abrigam, em si, um uxo de ações humanas confor-
madoras do espaço econômico. Corporações, como bancos ou empresas de plataformas de
transporte, são centros de gestão (xos) que mobilizam enormes uxos de serviços, dados,
informações, comandos e mobilizam ações humanas e objetos xos.
Milton Santos alerta para o fato de que os xos são cada vez mais articiais, “xados
ao solo” ou xos-móveis, como veículos, ao passo que os uxos são cada vez “mais diver-
sos, mais amplos, mais numerosos, mais rápidos”.(100) Com a multiplicação de objetos e
de ações transformadoras, o espaço ganha espessura, a “profundidade do acontecer”(101).
Compreendendo a crescente integração de uxos e xos, Santos chega ao conceito de es-
paço como sistema de sistemas de objetos e de ações. Ações podem transformar objetos —
como numa colisão entre veículos — como desencadear uxos de ações — numa conversa
durante a viagem, que pode resultar em amizade, desprezo ou mesmo chegar à violência.
Objetos também induzem ou limitam as ações. O objeto-aplicativo, ao bloquear o acesso
do motorista plataformizado, bloqueia a sua ação como trabalhador. O espaço, para Santos,
é, assim, a interação constante dos sistemas de objetos e sistemas de ações.
A partir dele, o conhecimento sistemático do território pode ser entendido como a
relação entre xos e uxos. Ao conceituá-lo, Milton Santos arma que o território é “imu-
tável em seus limites, corresponde a uma linha traçada de comum acordo ou pela força”.
(98) BARROS, José D’Assunção. Fixos e uxos: revisitando um par conceitual. Cuadernos de Geografía: Revista Co-
lombiana de Geografía, v. 29, n. 2, p. 493-504, 2020. Disponível em: .
Acesso em: 27 jun. 2022.
(99) SANTOS, Milton. A natureza do espaço: técnica e tempo, razão e emoção. 4. ed. São Paulo: Edusp, 2009. p. 38.
(100) Idem.
(101) SANTOS, Milton. Técnica, Espaço, Tempo: globalização e meio técnico cientíco e informacional. 5. ed. São
Paulo: Editora da Universidade de São Paulo, 2013. p. 34.
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Para ele, o território não tem forçosamente a mesma extensão ao longo da história, mas em
um momento especíco ele representa um dado xo. O território passa a se chamar espaço
quando encarado segundo “a sucessão histórica de situações de ocupação efetiva por um
povo”. A utilização do território pelo povo, portanto, cria o espaço.(102)
A construção do espaço é, nesse contexto, a obra da sociedade em sua marcha his-
tórica ininterrupta. A sociedade se transforma em espaço pela sua “redistribuição sobre as
formas geográcas, e isto ela o faz em benefício de alguns e em detrimento da maioria;
ela também o faz para separar os homens entre si, atribuindo-lhes um pedaço de espaço
segundo um valor comercial”. Milton Santos adverte que o exame do espaço exige que se
reconheçam os agentes dessa obra, o lugar que cabe a cada um, seja um organizador da
produção e dono dos meios de produção, seja fornecedor de trabalho.(103)
Esse é o marco da pesquisa do Instituto de Geograa da Universidade Federal de
Minas Gerais (UFMG), coordenada pelo Professor Fábio Tozi, que mostra o cruzamento
entre precarização do trabalho e a divisão espacial do território e da forma de urbanização
das cidades. Segundo Tozi, a chegada de corporações globais às cidades cria processos de
“vampirização” da renda que antes circulava no circuito inferior em direção ao circuito su-
perior da economia urbana e que as taxas cobradas pelas plataformas, entre 20% e 40% do
preço de cada viagem, representam montantes que alimentariam formas de economia mais
horizontais (locais e regionais).(104)
Ensina Tozi que, acerca do debate sobre um possível aprimoramento dos sistemas de
deslocamento no território ou de sua maior eciência graças aos aplicativos, é imperioso
considerar que as corporações adotam o “cerceamento geográco” (GeoFencing), um tipo de
“censura técnico-geográca” ao território que, no caso da Uber, é denominada como “restri-
ção virtual de zonas ao embarque de passageiros”, prática pela qual a empresa assume um
papel político de organização do território, denindo, via GPS, áreas atendidas e áreas im-
pedidas, conforme seus critérios, sob a alegação de insegurança. Conclui Tozi que, concreta-
mente, essa decisão tem deixado zonas populares e periféricas fora de sua área de cobertura.
Explica o autor que, no caso brasileiro, a questão do deslocamento se fundamenta em
elementos estruturais como: (i) os processos de periferização, que impõem deslocamentos
pela distância entre a moradia e o trabalho; (ii) a insuciência (qualitativa e quantitativa)
das redes de transporte de diferentes idades em todas as suas congurações e capacidades
(102) SANTOS, Milton. Por uma Geograa Nova: da crítica da Geograa a uma Geograa Crítica. 2. ed. São Paulo:
Editora da Universidade de São Paulo, 2012. p. 233.
(103) Ibidem, p. 233.
(104) TOZI, Fábio. Da nuvem ao território nacional: uma periodização das empresas de transporte por aplicati-
vo no Brasil. GEOUSP Espaço e Tempo (On-line), [S. l.], v. 24, n. 3, p. 487-507, 2020. DOI: 10.11606/issn.2179-0892.
geousp.2020.168573. Disponível em: . Acesso em: 27
abr. 2022.
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(ônibus, trens metropolitanos, regionais ou de longa distância, ciclovias, sistemas uviais),
o que estimula o uso de veículos pessoais; e (iii) a tendência à fragmentação territorial de
atividades, serviços (públicos e privados), comércio e instituições.
Logo, a promessa de um novo “modal” só se realiza verdadeiramente em áreas que já
têm alta densidade de sistemas públicos e privados de transporte, reforçando, portanto, a
concentração da oferta onde ela já é proporcionalmente favorável. Esse efeito concentrador
também deveria ser considerado em debates e pesquisas sobre o impacto no trânsito de
dezenas de milhares de carros circulando com reduzido tempo de estacionamento. A falta
de publicidade dos dados das empresas diculta pesquisas mais detalhadas também sobre
esse processo.
As pesquisas produzidas pela Geograa mostraram, então, que essa nova relação de
trabalho deixou ainda mais vulneráveis aquelas pessoas que moram em bolsões, afastadas da
região central das grandes metrópoles, relegadas a uma condição de abandono no que diz
respeito ao acesso mínimo a condições de urbanização, pois não têm acesso a banheiros ou
locais de descanso, dormem no chão, em praças ou dentro do carro. O que se vê são pessoas
com fome entregando comida, além da cobrança de taxas altas, muitas horas de trabalho,
que chegam a, aproximadamente, quatorze horas por dia, trabalho sob grande pressão, pre-
sente insegurança diante da precariedade, medo de assaltos, roubos e outras agressões, ao
passo que possuem necessidade de trabalhar, sendo colocadas em uma situação de constante
descartabilidade e, por esse mesmo motivo, submetem-se a tais condições.(105)
Por outro lado, as empresas-nuvem não fornecem dados, não conversam com
pesquisadores nem com motoristas e raramente aceitam dialogar com o poder público para
negociar projeto de lei que benecie os trabalhadores. Assim, criam “curto-circuito” entre os
espaços local e global, apropriando-se das condições de reprodução dos trabalhadores, com
drenagem de recursos de uma economia local, que estão sendo levados para fora da região
e do país, o que leva também a uma questão de geopolítica.(106)
A manipulação do território pelas plataformas digitais, que resulta em tal “vampi-
rização do trabalho”, é sustentada por meio do investimento direcionado para ações de
marketing. Esse procedimento se utiliza de manipulação da linguagem para ns ideológicos,
enaltecendo o empreendedorismo, em frases como “seja patrão de si mesmo”(107), além
(105) TOZI, Fábio; DUARTE, Leandro Ribeiro; CASTANHEIRA, Gabriel Rocha. Trabalho precário, espaço precário:
as plataformas digitais de transporte e os circuitos da economia urbana no Brasil. Ar@cne. Revista Electrónica de
Recursos de Internet sobre Geografía y Ciencias Sociales. Barcelona: Universidad de Barcelona, 1o mar. 2021, vol.
XXV, n. 252. DOI: . Acesso em: 28 abr. 2022.
(106) Live em 1o jul. 2020. por meio do Instagram A GREVE dos entregadores de aplicativo: a precarização do
trabalho em pauta. Fábio Tozi e Mariah Brochado. Vídeo (56min). Publicado no canal [continente] OPD – UFMG.
Disponível em: . Acesso em: 02 jul. 2022.
(107) LEME, Ana Carolina Reis Paes. Da máquina à nuvem: caminhos para o acesso à justiça pela via de direitos dos
motoristas da Uber. Dissertação (Mestrado em Direito) – Programa de pós-graduação em Direito da Faculdade
de Direito da UFMG, 2018. Disponível em: . Acesso em: 28 abr.
2020. p. 44.
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de manipulação das mídias, inclusive com ações publicitárias para aprovação de projetos
legislativos, como ocorreu no caso da Lei n.13.640/2018, a “Lei do Uber”, e mesmo com a
manipulação da jurisprudência dos tribunais sobre o tema, como se verá adiante.
Toda essa manipulação, frisa-se, é do espaço, no sentido de interferir territorialmente
em locais onde há uma regulamentação prévia acerca de transporte de passageiros que não
permitiria a entrada de tais plataformas. A ação das plataformas de transporte interfere
sobre o conjunto de xos da infraestrutura urbana — aeroportos no Brasil passaram a ter
“trilhas” impressas no chão até os locais destinados para embarque e desembarque de pas-
sageiros de aplicativos, chamados de “Espaço Uber” e “Lounge 99”. Há também indicativos
do aumento do número de veículos nas cidades, demanda por veículos alugados e de produção
de CO²(108). Mas, sobretudo, interfere sobre o uxo de ações de transporte de pessoas e de
busca de trabalho e renda, em um mercado altamente precarizado, gerando novas ações, que
se submetem a esse tipo de exploração e também reagem em resistência.
Os conitos daí advindos desembocam em parte como conitos jurídicos, seja em
torno da aplicação do direito existente, seja em torno da produção de novas normas. Normas
jurídicas interferem na mobilização de objetos, assim como limitam, obrigam ou possi-
bilitam uxos de ações humanas que interferem no espaço. Foi mediante, primeiro, uma
ação sobre o território muito mais calcada em estratégias de marketing, mas à margem de
um marco regulatório, que, inicialmente, a Uber começou a atuar. Contudo, foi mediante a
associação dessa estratégia inicial a intensas ações de lobby sobre os poderes públicos, que
a Uber conseguiu estabilizar juridicamente o seu espaço de atuação corporativa no Brasil,
inscrevendo e garantindo as suas necessidades operativas na legislação existente, primeiro
mediante o reconhecimento jurídico no plano nacional, que deslocou a competência regu-
ladora para as legislações municipais, tendencialmente mais suscetíveis de interferência. Foi
preciso, ainda, criar um enquadramento do trabalho, ou melhor, produzir um desenquadra-
mento, a m de obliterar todo o arcabouço de regras locais e nacionais e instituir uma “zona
cinzenta”. Esta, entendida como espaço público de “regulação híbrida onde nada garante
(108) LEME, Ana Carolina Reis Paes. Da máquina à nuvem: caminhos para o acesso à justiça pela via de direitos dos
motoristas da Uber. Dissertação (Mestrado em Direito) – Programa de pós-graduação em Direito da Faculdade
de Direito da UFMG, 2018. Disponível em: . Acesso em: 28 abr.
2020. p. 33. Nesta oportunidade, informou-se que a Uber tem parceria com empresas de aluguéis de veículos,
como Localiza, Movida e Unidas, para que seus Uber Drivers possam alugar carros, pagando o valor mensal de
R$1.500,00, desde que dirijam para ela, dado revelador sobre como a empresa contribui para que existam mais
automóveis transitando pelas ruas das cidades, já congestionadas. Existe, ainda, um problema de terceirização
afeto a essa temática, uma vez que mais intermediários passam a fazer parte da cadeia. Assim, donos de veículos
alugam seus carros a motoristas que não os possuem e cobram parcela de sua remuneração. Isso ocorre, primor-
dialmente, em razão da alta taxa de aluguel das empresas especializadas e pelo fato de que a quilometragem dos
carros por elas alugados é limitada. Sobre o tema, ver a seguinte matéria, que entrevista funcionários públicos
que alugam seus próprios carros particulares: UBER movimenta o mercado de aluguel de carros. Mano a Mano
Rent a Car Website, 28 ago. 2016. Disponível em: .com.br/uber-movimenta-o-merca-
do-de-aluguel-de-carros/>. Acesso em: 20 jun. 2018.
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nem a estabilidade nem a coerência a priori(109), na qual as regras do “patrão”(110) transnacio-
nal(111) podem incidir geogracamente, tornando possível transposição do mesmo padrão de
gestão e exploração da mão de obra.
Como exemplo disso, no Brasil, merece destaque a campanha #LeiDoRetrocesso.(112)
O projeto de lei pretendia igualar os serviços da empresa Uber aos do transporte privado
de passageiros realizado por taxistas e, portanto, seriam exigidos licença, placa especíca,
impostos e taxas, o que alteraria o modelo de negócio da plataforma, baseado na ampla base
de motoristas controlada somente por ela e não pelo poder público. A Uber fez publicidade
direta com o intuito de inuenciar as decisões sobre o tema no parlamento.
Às vésperas de ser votado o Projeto de Lei que visava regulamentar o transporte
remunerado privado individual de passageiros na Câmara dos Deputados, em 2017, a Uber
lançou, em rede nacional, a campanha publicitária contra a aprovação da lei, chamada
de #LeiDoRetrocesso. O vídeo publicitário da referida campanha(113), carregado de cenas de
pessoas de todas as idades e etnias, com esparadrapos pretos na boca, foi transmitido pelas
redes sociais e em TV aberta em horário nobre, passando a ideia de que se tratava de uma
tentativa dos poderes legislativo e executivo de calar a voz dos consumidores, armando que
seria “a sua vez de fazer valer a sua vontade”. (114)
Na mesma mídia, eram utilizadas inúmeras queixas da população acerca do transporte
e da segurança pública, para justicar e legitimar a continuidade da operação da Uber no
Brasil, mesmo tendo a própria rearmado muitas vezes ao Judiciário não se tratar de empresa
de transporte. A campanha também foi direcionada aos endereços dos e-mails pessoais dos
usuários cadastrados no aplicativo, com texto personalizado, convocando o cliente, por seu
próprio nome, a integrar o movimento por ela criado em face do que chamou de “Lei do
Retrocesso”.(115)
(109) AZAÏS, Christian; DIEUAIDE, Patrick; KESSELMAN, Donna. Zona cinzenta do emprego, poder do empregador
e espaço público. In: CARELLI, Rodrigo L.; CAVALCANTI, Tiago M.; FONSECA, Vanessa P. (Orgs.). Futuro do trabalho:
os efeitos da revolução digital na sociedade. Brasília: ESMPU, 2020. p. 441-458.
(110) O termo jurídico constante da legislação é empregador ou tomador de serviços, mas utiliza-se “patrão” entre
aspas para dar voz à oralidade das falas dos entrevistados que se referem à gura do empregador como sendo o
“patrão”.
(111) Utiliza-se a expressão, que não tem estofo jurídico ou teórico, em face de ser tipicamente utilizada pelos
entrevistados para designar as plataformas de transportes como empregadoras.
(112) LEME, Ana Carolina Paes Leme. Da máquina à nuvem: caminhos para o acesso à justiça pela via de direitos
dos motoristas da Uber. São Paulo: LTr, 2019. p. 60.
(113) O conteúdo completo pode ser visto em: .
(114) LEME, Ana Carolina Paes Leme. Da máquina à nuvem: caminhos para o acesso à justiça pela via de direitos
dos motoristas da Uber. São Paulo: LTr, 2019. p. 60-61.
(115) A íntegra do e-mail ditava:
“Olá Carolina,
No nal de 2017, o Senado escutou a sua voz e alterou o PLC 28, a #LeidoRetrocesso. Ela ameaçava o direito de esco-
lha de 20 milhões de usuários da Uber no Brasil, como você, e a renda de 500 mil motoristas parceiros. O Projeto
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A campanha publicitária direcionava-se a motivar os usuários a emitirem opinião
contrária à proposição legislativa. A consulta pública sobre o PL n. 28/2017, por exemplo,
recebeu mais de 176 mil contribuições. Do total, mais de 136 mil votos foram contrários
ao projeto de Lei.(116) Isso signica que, como armou acertadamente Trebor Scholz, a
Uber faz do aplicativo “plataforma política que pode ser usada para ativar clientes para opor
qualquer esforço regulatório contra eles”(117), criando, por sua vez, seu espaço de atuação no
território, por meio de manipulação da regulação. A empresa se utilizou da manipulação
social e da “política do marketing-oriented”(118) para direcionar os usuários a aderirem à
campanha.
Após a não aprovação do projeto de lei acima citado, houve lobby da Uber para a edição
da conhecida “Lei do Uber”, a Lei n. 13.640/2018, que superou a controvérsia acerca da
clandestinidade ou “pirataria” do serviço de transporte privado de passageiro.(119) A mídia
noticiou que o CEO da Uber acompanhou presencialmente a votação da lei em Brasília(120).
A partir da sua vigência, passou a jurisprudência a compreender que “eventual proi-
bição da atividade privada constante do sistema Uber viola a livre-iniciativa, a liberdade de
voltou para a Câmara e agora é a vez dos deputados federais. Eles vão ter que escolher entre ouvir você ou calar
a sua voz e aprovar a #LeidoRetrocesso.
A votação deve acontecer nesta terça-feira (27/2) e a Uber estará, mais uma vez, defendendo o seu direito de
escolha.
É por isso que te convidamos a fazer parte deste movimento. Assista hoje (24/2 – sábado), no intervalo do Jornal
Nacional, à campanha contra a #LeiDoRetrocesso e pressione os deputados do seu Estado.
(116) RIBEIRO, Gabriel Francisco. Uber tem 500 mil motoristas no Brasil e diz: “modelo ca inviável com PL. Uol Tec-
nologia Website, 27 out. 2017. Disponível em:
-tem-500-mil-motoristas-no-brasil-e-diz-modelo-ca-inviavel-com-pl.htm>. Acesso em: 20 jun. 2018.
(117) SCHOLZ, Trebor. Platform Cooperativism vs. The Sharing Economy. Medium Website, 5 dez. 2014. Disponível em:
.
Acesso em: 20 jun. 2018. p. 36.
(118) DE MASI, Domenico. Alfabeto da sociedade desorientada: para entender nosso tempo. Tradução de Federico
Carotti e Silvana Cobucci. São Paulo: Objetiva, 2017. p. 318.
(119) Oportuno noticiar que a Corte Italiana de Milão conrmou a decisão do juiz italiano Claudio Marangoni que,
em 20 de março de 2015, decidiu banir aplicativos de serviço de transporte, na categoria Uber Pop, porque consi-
derou tais aplicativos como serviço de taxi sem licença e sem regulamentação. Ponderou que o serviço oferecido
pela Uber era uma concorrência desleal para com os taxistas italianos. Mais detalhes sobre decisões italianas
envolvendo a Uber em: CHAVES, Letícia Righi Rodrigues de Xavier. Informe sobre ações envolvendo a Uber no
Direito Comparado. In: LEME, Ana Carolina Reis Paes; RODRIGUES, Bruno Alves; CHAVES JÚNIOR, José Eduardo de
Resende (Coords.). Tecnologias disruptivas e a exploração do trabalho humano. São Paulo: LTr, 2017. p. 333.
(120) Notícias sobre o CEO da Uber, Dara Khosrowshahi, acompanhar presencialmente a votação no Congresso
Nacional da Lei n. 13.640/2018. RODRIGUES, Paloma. Uber ca no Brasil com regra rígida, mas motoristas ‘vão
sofrer’, diz CEO. Poder 360, 31 out. 2017. Disponível em:
no-brasil-com-regra-rigida-mas-motoristas-vao-sofrer-diz-ceo/>. Acesso em: 27 jun. 2022. CEO da Uber vem
ao Brasil na véspera da votação no Senado. Convergência digital, 27 out. 2017. Disponível em:
convergenciadigital.com.br/Governo/Legislacao/CEO-da-Uber-vem-ao-Brasil-na-vespera-da-votacao-no-
Senado-46586.html>. Acesso em: 27 jun. 2022.
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exercício de trabalho, ofício ou prossão, assim como a livre concorrência”(121). Em virtude
de vultosos investimentos em lobby, a regulamentação do transporte privado de passageiros
passou a ser uma faculdade do Município (ou Distrito Federal), portanto, o fato de o ente
municipal não regulamentar a atividade não a tornaria ilícita, o que signicou a total legalização
da atuação empresarial da Uber e de plataformas similares, como empresas de transporte
privado de passageiros no território brasileiro.
Nesse contexto, a escolha da Uber e da 99 Tecnologia como objetos de análise desta
pesquisa justica-se por ambas terem grande operação territorial no Brasil, como se mostrará
a seguir.
2.2.2. O campo de atuação da Uber e da 99 no Brasil
A Uber é uma empresa-rede, de âmbito transnacional, quase planetário, com hipermo-
bilidade de capital, que instituiu uma organização do trabalho copiada por outras empresas,
como a 99 Tecnologia. Tais empresas são ícones do denominado fenômeno da “uberização
do trabalho”, facilitado pelo uso das novas tecnologias da informação e comunicação, cujas
ferramentas conceberam a organização da produção em rede, no contexto da chamada Indús-
tria 4.0.
A tecnologia da “Internet das Coisas” viabilizou a criação do software que permite a
conexão do “patrão” algoritmo com o trabalhador, por intermédio de plataformas virtuais.
Contudo, como acima armado, “sua ação concreta ocorre no setor de transportes e de-
pende da organização pretérita dos territórios onde agem”(122), pois elas se apoiam, assim,
nas infraestruturas urbanas, estações de trem, metrô, localização de moradias, empregos,
serviços e comércios. Além disso, essas plataformas de transporte transformaram o espaço
existente e construíram um espaço geográco amoldado ao seu projeto empresarial, que
transcende o intuito de promover a mobilidade urbana.
Com a chegada no Brasil datada em 2014, a Uber beneciou-se do megaevento da
Copa do Mundo para se instalar em capitais brasileiras. A primeira cidade a receber a em-
presa foi o Rio de Janeiro, em maio de 2014, causando manifestação e protestos por parte
dos taxistas cariocas, que chamaram a empresa de “Pirata”(123). Em seguida, instalou-se na
(121) ACRE. Tribunal de Justiça. Apelação Cível n. 0712434-80.2017.8.01.0001. Rela. Regina Ferrari, Data de Jul-
gamento: 03.07.2018, Segunda Câmara Cível, Data de Publicação: 05.07.2018. CEARÁ. Tribunal de Justiça do
Ceará. Apelação Cível n. 0626461-25.2017.8.06.0000, Relator: Luiz Evaldo Gonçalves Leite, Data de Julgamento:
18.04.2018, 2a Câmara Direito Público, Data de Publicação: 18.04.2018.
(122) TOZI, Fábio; DUARTE, Leandro Ribeiro; CASTANHEIRA, Gabriel Rocha. As plataformas digitais de transporte
por aplicativos no Brasil: atritos e tensões entre o território e as corporações. In: VIII Simpósio Nacional de Ciência,
Tecnologia e Sociedade. As plataformas digitais de transporte por aplicativos no Brasil: atritos e tensões entre o
território. Anais..., ESOCITE.BR, p. 186-196, 2019. p. 181.
(123) Segundo foto de um dos protestos contra Uber no Rio em 2014, os taxistas carregavam faixas com os se-
guintes dizeres: “scalização não é um poder, senhor prefeito, é um dever!! Repressão à pirataria já!” e “Permissão
só pode ter um auxiliar, anal taxi é para taxista e não para investidor e empresário” (PROTESTO contra a chega-
da do Uber na cidade do Rio de Janeiro em 2014. Disponível em:
Ficheiro:Protesto_contra_o_Uber_no_Rio_02.jpg>. Acesso em: 27 jun. 2022).
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cidade de São Paulo, no nal de junho do mesmo ano, onde foi inaugurada a primeira cor-
rida pelo novo app, com a modelo brasileira Alessandra Ambrosio(124), que teria “chamado
um Uber” nos Jardins e “em poucos minutos estaria indo cheia de estilo para uma festa na
Embaixada Britânica”(125). A seguir, foi a vez de a Uber estrear em Belo Horizonte, em se-
tembro de 2014 e, em janeiro de 2016, a empresa começou a operar em Campinas.
No dia 28 de abril de 2015, a Justiça de São Paulo determinou a suspensão liminar do
aplicativo Uber no Brasil, contudo, em 4 de maio de 2015, a liminar foi revogada, voltando
a ser novamente suspensa pela Câmara de São Paulo no dia 30 de junho de 2015. Em 10
de maio de 2016, o então prefeito de São Paulo, Fernando Haddad, assinou um decreto
regularizando o Uber na Capital, sendo o primeiro decreto de regularização em território
nacional.
A 99, empresa brasileira com fundos de investimentos composto por empresas chi-
nesas, constituiu-se inicialmente como um aplicativo de táxi que, ao perceber a opção dos
usuários por aplicativos de serviço de transporte particular de pessoas, adaptou-se e incluiu
em seu leque de serviços o carro particular, mantendo os táxis já cadastrados na plataforma.
Nesse formato a empresa atua desde 2017, presente, de acordo com levantamento realizado
em 2019, em 1.693 municípios.
A título ilustrativo, as guras (4, 5 e 6) a seguir demonstram o domínio das duas
empresas no Brasil, segundo os dados disponíveis:
(124) Segundo o Pure People, Alessandra Corine Ambrósio é uma supermodelo, atriz e empresária brasileira. Em
2005 foi eleita como a mulher mais sexy do mundo pelo models.com, a 6.a mulher mais desejada do mundo do
Top 99 de 2007, via askmen.com, e a 2.a do Top de 2008. Desde 2006, encontra-se entre as modelos mais bem pa-
gas do mundo. (ALESSANDRA Ambrosio. Pure People. Disponível em: .com.br/famosos/
alessandra-ambrosio_p2835>. Acesso em: 27 jun. 2022).
(125) CAPUTO, Victor. App de caronas em carros de luxo Uber chega a São Paulo. Exame, 27 jun. 2014. Disponível
em: . Acesso em: 28 abr.
2022.
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Figura 4 – Campo de domínio da atuação da Uber no Brasil (2021)
A gura 4 diz respeito ao campo de domínio da Uber no Brasil. As informações
revelam que há uma predominância de atuação nas regiões Sudeste e Sul, denominada
como “Região Concentrada” por Milton Santos e Maria Laura Silveira(126), referindo-se
aos estados em que o “meio técnico-cientíco-informacional” é mais desenvolvido, ou seja,
nos quais “o território inclui obrigatoriamente ciência, tecnologia e informação [...], cons-
tituindo- se como a “nova cara do espaço e do tempo”, no conceito de Santos(127). A região
(126) SANTOS, Milton; SILVEIRA, Maria Laura. Brasil: território e sociedade no início do século XXI. Rio de Janeiro:
Record, 2001.
(127) SANTOS, Milton. Técnica, Espaço, Tempo: Globalização e meio técnico cientíco e informacional. 5. ed. São
Paulo: Editora da Universidade de São Paulo, 2013. p. 41.
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indicada concentra uma série de fatores que vão desde a ocupação, densidade demográca
ou número de municípios, até mesmo acesso e disponibilidade de infraestruturas de trans-
portes e comunicações. Apesar de uma certa aglomeração nessa área, constata-se pelo mapa
a existência de atuação da Uber em ao menos um município de todos os estados brasileiros,
sendo essa uma plataforma bem difundida e conhecida entre usuários.
Figura 5 – Campo de domínio da atuação da 99 no Brasil (2021)
A gura 5 tem o mesmo escopo da gura anterior, todavia com dados do campo de
domínio da 99. O acesso às informações atualizadas no site da 99 Tecnologia permitiu uma
melhor aproximação com a realidade e maior compreensão do fato observado. Pela espacia-
lização, é possível inferir que nem todos os estados brasileiros possuem acesso aos serviços
de motorista da 99. Outro fato notável é que também há concentração de municípios com
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acesso à plataforma nos estados do Sudeste e Sul, sobretudo em regiões metropolitanas e/
ou capitais litorâneas, fato que reforça a ideia de “Região Concentrada(128), uma vez que
há adensamento populacional é provável que haja também concentração dos demais xos e
uxos existentes: A 99, com sua estrutura mista, abrangendo também os taxistas, acaba por
fazê-la em mais cidades do que a Uber, embora não exista coincidência em alguns campos
do mapa. A sobreposição dos mapas de domínio de atuação torna possível compreender
realmente essa abrangência, como se depreende da gura a seguir:
Figura 6 – Campo de domínio da atuação da 99 e da Uber no Brasil (2021)
(128) SANTOS, Milton; SILVEIRA, Maria Laura. Brasil: território e sociedade no início do século XXI. Rio de Janeiro:
Record, 2001.
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A gura 6 traça um comparativo visual direto entre os campos de atuação da Uber e
da 99, sendo sobrepostas nas bases cartografadas os dados tanto de uma empresa como da
outra. É notória a maior abrangência da plataforma 99 no Brasil, todavia, esse fato não
representa necessariamente uma condição atual, uma vez que os dados da empresa Uber,
inseridos em seu sítio eletrônico, estavam desatualizados no momento da confecção dos
mapas.
Vale destacar que há extensas áreas sem atuação das empresas pelo território brasileiro,
os chamados “vazios demográcos”, constituídos de áreas de baixa ou sem ocupação do
centro-oeste e, principalmente, norte do país. Se há baixa densidade populacional, pode-se
inferir que há também um número reduzido de xos como indústrias, pontos de serviços
e infraestrutura urbana. Nesses territórios, utilizam-se outros meios de transporte, como o
barco, por exemplo.
Situadas as empresas Uber e 99 em território nacional, cabe agora voltar a atenção
para o fato de que a sua atuação espacial depende da adesão de trabalhadores locais ao apli-
cativo, ou seja, motoristas com força de trabalho disponível nos locais e horários necessários,
que precisam se plataformizar para realizar o transporte terrestre de passageiros, atividade
econômica explorada pela plataforma. Essa forma de trabalho merece ser estudada e pro-
blematizada. Na condição de indivíduos que trabalham para um “patrão” transnacional,
cujo poder de comando se expressa de forma predominantemente automatizada por algo-
ritmo, a par do poder exercido sobre vários outros elementos congurativos do território,
os trabalhadores são connados num espaço de (des) regulação que tem obstruído o acesso
a direitos trabalhistas básicos, estando sujeitos a exploração, expropriação e espoliação.(129)
Ao aderirem ao sistema de produção das plataformas, além de empregar sua força
de trabalho, cam alienados dos meios de produção necessários a esse especíco modelo de
negócio que só se viabiliza em grande escala — o aplicativo, a infraestrutura computacional
e de comunicações, as redes administrativas de apoio local, advogados, lobistas, os grandes
investimentos em marketing, a massa de dados relativa aos trajetos, aos motoristas e à rede
de consumidores. Além disso, perdem o resultado da energia do trabalho gasto e sujeitam-
-se a perder a saúde e a integridade física, o carro — ferramenta de trabalho —, a serem
cancelados ou bloqueados no acesso ao aplicativo sem sentido aparente.
(129) Ricardo Antunes explica que os motoristas plataformizados sofrem exploração, expropriação e espoliação,
pois além de terem explorada a sua força de trabalho, os trabalhadores precisam “comprar o carro ou alugá-lo, pa-
gar celular, pagar a conexão”, no caso dos entregadores tem que comprar até mesmo a mochila e, ainda, “pagam
se adoecem”, pois não recebem por esse dia de ausência ao trabalho. Anotações de aula da doutoranda foi aluna
da disciplina “Uberização do Trabalho III”, no curso de Sociologia do Trabalho III, ministrado pelo Professor Ricardo
Antunes, na Unicamp (2o semestre de 2021) e também na entrevista a COLL, Liana. Capitalismo virótico: um siste-
ma destrutivo que só será superado através das lutas sociais, diz Ricardo Antunes. Cultura e sociedade, 8 out. 2020.
Disponível em:
trutivo-que-so-sera-superado-atraves-das>. Acesso em: 27 jun. 2022 e em VIDIGAL, Viviane; ANTUNES, Ricardo.
“Bate-papo na labuta” com Ricardo Antunes. Democracia e mundo do trabalho em debate, 6 jan. 2022. Disponível
em: . Acesso em: 27 jun. 2022.
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Nesse contexto, vale investigar e compreender as formas coletivas de resistência dos
motoristas considerando a plataformização do trabalho. A organização coletiva frente ao
contexto de enorme poder informacional e de controle instiga a compreensão cientíca
sobre o problema. Vale, também, compreender o modo como as empresas atuam para
enfrentar as iniciativas organizativas dos motoristas, inclusive mediante a prática de atos
antissindicais, se necessário, segundo a sua visão e atuação empresarial. Esse será o tema do
próximo tópico.
2.2.3. Da manipulação e fragmentação à prática de atos antissindicais
Partindo-se da realidade fática de que é o proprietário-desenvolvedor do aplicativo
que detém o controle absoluto sobre o código-fonte(130), o trabalhador, usualmente chamado
de “uberizado”, ca à mercê dos comandos e das constantes alterações mandatórias do
aplicativo. Tipicamente, ao instalar o aplicativo, o usuário tem que concordar com as cláusulas
contratuais estabelecidas de forma unilateral e consentir com as futuras alterações, além de
conceder permissão expressa à empresa, por meio do software, para acesso a determinadas
informações e funções de seu dispositivo particular, como às suas imagens (por acesso à
sua câmera fotográca), suas mensagens e seus áudios. Ademais, a conhecida extensão do
contrato e dos termos de uso, pode, inclusive, ser tida como fator de diculdade da compreensão
daqueles que desejam utilizar a plataforma para oferecer seus serviços, aderindo de forma
consciente e informada aos seus termos.(131)
Além da xação unilateral, são introduzidas periodicamente, seja por intervenção hu-
mana na programação, seja em decorrência da capacidade de aprendizagem automatizada do
algoritmo, alterações nos termos de uso e nos critérios de funcionamento do aplicativo.(132)
Tais alterações realizadas diretamente na plataforma virtual aumentam a vulnerabilidade do
(130) O código-fonte corresponde a um sistema de símbolos utilizados para codicar o programa-fonte em uma
determinada linguagem de programação. O programa-fonte é convertido na linguagem de máquina, uma receita
de comandos que o computador é capaz de entender. O acesso ao código-fonte permite ao programador adaptar
o sistema às suas necessidades, seja alterando seu funcionamento, adicionando ou removendo recursos, alteran-
do a forma de armazenamento e recuperação dos dados, dentre outros. (SILVA, Tiago Falchetto. As novas tecnolo-
gias e o devido processo legal. Monograa (Graduação em Direito). Faculdade de Direito da Universidade Federal
de Minas Gerais, 2014). Em outras palavras, o proprietário do aplicativo (software), detém o poder absoluto sobre
o programa, o que inclui o contrato digital, e suas alterações, de acordo com as suas próprias conveniências. Re-
ferido conceito de código-fonte não está incluindo a inteligência articial e o aprendizado de máquina, em que
há uma pré-programação para a modicação relativa dos comandos do algoritmo a partir da análise de padrões
de dados recebidos.
(131) No caso da Uber, os termos de uso podem ser consultados em: UBER. Termos e condições. Disponível em:
. Acesso
em: 08 maio. 2022.
(132) A periodicidade destas alterações varia do investimento feito por cada empresa no aprimoramento do
software, podendo ser diária, inclusive. No caso da Uber, por ex., o motorista, na instalação inicial do aplicativo,
e em todas as atualizações subsequentes, precisa autorizar e aceitar as novas “regras do jogo” advindas de mu-
danças no código-fonte do aplicativo, sob pena deste simplesmente não mais funcionar.
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trabalhador, na medida em que ca condicionado às regras de validação e funcionalidades
aplicadas ao seu perl, em cada nova versão disponibilizada.
Essas atualizações, a par de modicarem unilateralmente as bases contratuais da
relação, como padrões de preço, taxa retida pela plataforma, informações disponibilizadas,
critérios de alocação de chamados, por exemplo, podem também reetir, inclusive, no padrão
de prerrogativas e preferências de uso e acesso ao sistema, atribuídas ao seu perl na
plataforma virtual (v.g. categorias ouro, platinum, diamante). Dessa forma, o proprietário
da tecnologia, detentor exclusivo do código-fonte do aplicativo, possui o poder de, auto-
mática ou voluntariamente, alterar a categoria, restringir o recebimento de chamados, sus-
pender e mesmo bloquear qualquer perl de usuário (o seu login no aplicativo), incluindo
os trabalhadores habituais ou seus “parceiros”, a qualquer tempo, sem justicativa ou acordo
previamente estabelecido.
Outro aspecto relevante é que, além de xar o preço da viagem e a taxa de retenção
pela plataforma, o aplicativo utiliza o mecanismo de ofertar aos motoristas corridas com a
chamada “tarifa dinâmica”, em que os preços se elevam à medida da escassez de motoristas,
frente à demanda dos usuários. O resultado esperado é o aumento de oferta de motoristas
que concorrem às chamadas nesses locais e momentos, o que automaticamente faz reduzir o
preço, quando muitas vezes o motorista já se deslocou para a área especíca, a m de obter a
tarifa dinâmica. Essa manipulação localizada da oferta de mão de obra pela tarifa dinâmica
é representativa do modelo geral de negócio, vez que, à medida do desemprego e preca-
riedade geral do mercado de trabalho, a oferta de trabalho nas plataformas aumenta. Isso
é vetorizado automaticamente pelo aplicativo em termos de catalização da concorrência
entre os trabalhadores, inserindo-os em uma espécie de leilão constante pelo menor preço
do trabalho(133), agravado pela constante modicação unilateral dos critérios dessa mesma
concorrência. Oportuno trazer as reexões de Chaves Júnior, em manifestação na plataforma
Twitter, de que “plataformas são marketplace de trabalho, operado por um oligopsônio de
compradores de trabalho humano barato”. (134)
Ao armar “que na gestão algorítmica, há um exército de reserva de mão de obra à
disposição”, Chaves Júnior explica que “com isso, as plataformas não precisam estabelecer
uma disciplina horária rígida”, porque “esse exército de reserva joga no chão a renda do tra-
balho”. Acrescenta que as plataformas, ao não remunerarem o tempo em que o trabalhador
está à disposição, conectado para trabalhar, “mais do que simples 'redução', opera-se uma
verdadeira 'oclusão' da porosidade do trabalho humano”, fato que, segundo o autor, justica
que os motoristas plataformizados possuam proteção jurídica laboral superior à tradicional.
(133) TODOLÍ SIGNES, Adrián. El impacto de la “ubereconomy” en las relaciones laborales: los efectos de las pla-
taformas virtuales en el contrato de trabajo. IUSLabor, n. 3, 2015, p. 1-25. Disponível em:
iuslabor/_pdf/2015-3/Todoli.pdf>. Acesso em: 8 dez. 2021.
(134) CHAVES JR., José Eduardo de Resende. Post no Twitter, 30 jul. 2022. Disponível em:
PepeChaves/status/1553348388036530176>. Acesso em: 31 jul. 2022
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Sobre a proteção jurídica laboral e o que dela se compreende, desde já se antecipa que o
tema será amplamente abordado no capítulo 5 em seus matizes em face aos dados da empiria,
além de considerações ampliadas em face a conceitos legais e jurídicos especícos.(135)
Assim, em função de sua abrangência territorial, o modelo de negócio desenvolvido
nas plataformas de transporte, longe de ser exemplo de economia solidária, produziu a
“atomização do trabalho”(136), rompendo com as formas de solidariedade de classe(137),
transformando-as em práticas de concorrência entre trabalhadores profundamente aliena-
das, vez que nem sequer são conhecidos os critérios da própria concorrência, inseridos no
segredo do código-fonte do aplicativo.
Tamanha desigualdade de poder não impede, mas afeta profundamente as iniciativas
de reconguração do espaço e de resistência de parte dos trabalhadores, notadamente no
que se refere àquelas voltadas à constituição de coletivos e organizações sindicais.
Faz-se pertinente enfatizar a importância das organizações sindicais como sujeitos
do Direito Coletivo do Trabalho. Isso porque “os trabalhadores somente ganham corpo,
estrutura e potência de ser coletivo por intermédio de suas organizações associativas de
caráter prossional”(138). Sindicatos, na denição de Mauricio Godinho Delgado, são “en-
tidades associativas permanentes” que representam os trabalhadores “vinculados por laços
prossionais e laborativos comuns”, com o intuito de lidar com “problemas coletivos das
respectivas bases representadas”, na defesa de seus “interesses trabalhistas e conexos, com o
objetivo de lhes alcançar melhores condições de labor e de vida”.(139)
A denição de sindicato envolve, na legislação brasileira, a incorporação de categoria,
inerente ao sistema jurídico vigente no país desde a década de 1930. Os critérios de agrega-
ção dos trabalhadores no sindicato se dão por ofício ou prossão; por categoria prossional;
por empresa; ou por ramo empresarial de atividade. A Consolidação das Leis do Trabalho
(CLT) concebeu a categoria prossional como a similitude de condições de vida oriunda da
(135) CHAVES JR., José Eduardo de Resende. Post no Twitter, 30 jul. 2022. Disponível em:
PepeChaves/status/1553348388036530176>. Acesso em: 30 jul. 2022.
(136) TODOLÍ SIGNES, Adrián. El impacto de la “ubereconomy” en las relaciones laborales: los efectos de las pla-
taformas virtuales en el contrato de trabajo. IUSLabor, n. 3, 2015, p. 1-25. Disponível em:
iuslabor/_pdf/2015-3/Todoli.pdf>. Acesso em: 8 dez. 2021.
(137) Oportuno trazer a reexão de José Eduardo Resende Chaves Júnior de que “estamos em transição para um
novo capitalismo, cognitivo e tecnológico, no qual a acumulação é cada vez mais baseada na captura do produto
da cooperação social, como resultado do incremento da socialização da produção, principalmente pela atividade
produzida por meio das redes sociais (Lucarelli & Fumagalli). Nesse contexto, o capital apropria-se do commons,
do conhecimento tácito e codicado da comunidade em rede e acaba por capturar as energias de emancipação
que eclodem desse novo meio de colaboração produtiva." (CHAVES JÚNIOR, José Eduardo de Resende. Desao do
Direito do Trabalho é limitar o poder do empregador-nuvem. Conjur, 16 fev. 2017. Disponível em:
conjur.com.br/2017-fev-16/desao-direito-trabalho-limitar-poder-empregador-nuvem>. Acesso em: 16 jun. 2022).
(138) DELGADO, Mauricio Godinho. Curso de Direito do Trabalho. 18. ed. São Paulo: LTr, 2019. p. 1.589.
(139) Idem.
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prossão ou trabalho em comum, em situações de emprego na mesma atividade econômica
ou em atividades econômicas similares ou conexas (art. 511, § 2o da CLT).
Do ponto de vista jurídico, a ideia de similitude de condições de vida e labor, em função
de vínculo dos trabalhadores a atividades econômicas empresariais similares ou conexas, é
o núcleo do conceito legal de categoria(140) e deve ser compreendida a m de concretizar o
papel constitucional do sindicato de fazer valer a sua consistência representativa nos termos
Ao reetir acerca do conceito de categoria, José Eduardo Resende Chaves Júnior
aponta que foi “construído a partir de uma noção de identidade, de uma identidade da pros-
são ou do trabalho em comum” e que “nunca foi um conceito ontológico”, mas sociológico,
ao encontrar sua identidade “não na organização espontânea, mas numa conuência de
interesses econômicos, juridicamente regulados”.(141) Referido autor elucida que o conceito
de “representação” não se conecta com o conceito de "multidão", porque a representação
pressupõe uma separação, uma identidade segmentada, e não um seguimento, um contínuo
de singularidades imanentes ou mesmo um uxo.
Para Chaves Júnior, nas plataformas de trabalho não haveria mais categoria prossional
homogênea organizada, com similitude de condições de vida, identidade e conexidade, nos
moldes do art. 511 da CLT, e sim “o crowdwork, ou seja, a massa heterodoxa e disforme”.(142)
No caso dos motoristas plataformizados, é fato que há certa diversidade na origem
social e na perspectiva imediata dos motoristas. Há tanto aqueles cuja origem prossional é
a de motoristas ou taxistas e que intencionam permanecer nela ainda que sob outra modali-
dade, quanto engenheiros ou técnicos desempregados em busca de uma futura recolocação,
estudantes universitários que trabalham no contraturno para pagar a faculdade, empregados
de outras empresas que dirigem em horários de descanso para complementar renda.
Entretanto, pode-se dizer que essa diversidade de origem vai gradativamente se dis-
solvendo na homogeneidade que advém das condições de trabalho às quais os trabalhadores
vão se amoldando. A realidade de precarização de condições adversas e unilateralmente im-
postas a todos os trabalhadores, ligados àquela determinada plataforma, acaba produzindo
não só as mesmas similitudes de condições de vida, mas também projeta o distanciamento
da diversidade suposta, quando da entrada no espaço uberizado, como será visto no capítulo 4.
O que aora é um modelo de negócio e de trabalho profundamente fragmentador
das relações concretas entre trabalhadores, promotor de uma forte manipulação ideológica
(140) DELGADO, Mauricio Godinho. Curso de Direito do Trabalho. 18. ed. São Paulo: LTr, 2019. p. 1.594.
(141) CHAVES JÚNIOR, José Eduardo de Resende. A categoria prossional da CLT, entre crowd e multitude. Trab21,
17 jun. 2020. Disponível em:
tre-crowd-e-multitude-jose-eduardo- de-resende-chaves-junior/>. Acesso em: 27 jun. 2022.
(142) Idem.
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da autocompreensão de sua condição — a ideologia do empreendedorismo —, sustentada
por um amplo aparato de marketing e de lobby perante as instituições. Não bastasse isso, as
empresas de plataformas de transporte têm atuado diretamente, “por dentro e por fora do
aplicativo”, na inibição, repressão e em cooptação das iniciativas sindicais. Trata-se de suprimir
iniciativas sindicais por meio de comandos algorítmicos, aqui chamados de “por dentro do
aplicativo” e também se valendo de cooptação de lideranças, contatando-as diretamente, ou
seja, “por fora do aplicativo”, o que se retomará no capítulo 4.
No Brasil, as mídias noticiaram que, desde o ano de 2016, iniciativas de organização
coletiva de motoristas plataformizados, acompanhadas de protestos a m de reivindicar
melhores condições de trabalho, foram reprimidas, inclusive, com o bloqueio do perl dos
motoristas considerados “envolvidos”, impedindo denitiva ou temporariamente seu acesso ao
aplicativo, sem qualquer respaldo legal ou, até mesmo, diálogo sobre o bloqueio sofrido.(143)
Ao que tudo indica, o intuito da Uber naquele momento foi coibir manifestações reivindi-
catórias dos trabalhadores e a constituição de coletivos organizados, utilizando a estratégia
de gestão por medo(144) — o mal, a ameaça como meio de gestão. A empresa, assim, aparenta
lutar contra um movimento sindical forte, ao inibir que seu embrião se forme, impedindo
ou dicultando o surgimento do ente coletivo. A prática de condutas antissindicais por em-
presas de transporte plataformizado foi já relatada em artigo acadêmico datado de 2017.(145)
Neste, pôde-se inferir que o modelo de negócio mediado pelo aplicativo que congrega tanto
a prescrição humana dos comandos automatizados constantemente alteráveis, quanto me-
didas ad hoc veiculadas no aplicativo e que se escondem por entre os comandos automáticos,
cria uma enorme disparidade entre as partes.
Uma das entrevistadas desta pesquisa teve, recentemente, sua ação judicial julgada
procedente na Justiça do Trabalho(146). Nessa ação, requereu o reconhecimento da conduta
antissindical da 99, uma vez que, arbitrariamente, foi bloqueada pela plataforma, no curso
das negociações em mediação pré-processual requerida pelo Sindicato junto ao Tribunal
(143) Os detalhes estão disponíveis em: DIÓGENES, Juliana. Após táxis, Uber agora enfrenta seus motoristas. O
Estado de S. Paulo Website, 26 mar. 2016. Disponível em: om/jyfx2hh>. Acesso em: 08 dez. 2016.
O MPT está investigando denúncias contra a empresa Uber, cuja subsidiária no Brasil responde pela razão social
"Uber do Brasil Tecnologia Ltda.", por meio dos seguintes inquéritos civis: IC 1417.2016.01.000/6-10 (Rio de Janei-
ro); IC 003255.2016.02.000/3 (São Paulo) e IC 1824.2016.10.000-5.
(144) DEJOURS, Christophe. A banalização da injustiça social. Rio de Janeiro: FGV, 1999.
(145) LEME, Ana Carolina Reis Paes. A relação entre o implemento das inovações tecnológicas disruptivas e a
potencialização de práticas antissindicais. In: LEME, Ana Carolina Reis Paes; RODRIGUES, Bruno Alves; CHAVES
JÚNIOR, José Eduardo de Resende (Coords.). Tecnologias disruptivas e a exploração do trabalho humano. São Paulo:
LTr, 2017. p. 304-317.
(146) 99POP é condenada por bloquear dirigente sindical. Extra Classe, 12 abr. 2022. Disponível em:
www.extraclasse.org.br/justica/2022/04/99-pop-e-condenada-por-bloquear-dirigente-sindical/>. Acesso em: 14
abr. 2022. Durante a escrita da tese, em 23.06.2022, o TRT 4 julgou o recurso ordinário interposto pela plataforma
99, negando-lhe provimento, mantendo-se a sentença acima referido no processo n. 0020882-91.2021.5.04.0201
(RORSum).
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Regional do Trabalho da 4a Região (TRT4)(147). Na época atuava na condição de presidente
de sindicato (no primeiro semestre de 2021). No acórdão, publicado em 23.06.2022, o
relator chamou a atenção para o fato de que o bloqueio da autora foi efetivado durante a
tramitação do pedido de mediação pré-processual acima mencionado, sendo “nítida a ten-
tativa de frustrar sua atuação”.
Com fundamento nos arts. 5o, XVI e 8o da CF/1988; 525 e 543, § 6o da CLT, bem
como no art. 199 do Código Penal e nas disposições da Convenção n. 98 da Organização
Internacional do Trabalho (OIT), a 5a Turma do TRT4 concluiu que os elementos de
prova apontavam para a prática antissindical da reclamada. Manteve a sentença da origem
que condenou a plataforma 99 ao pagamento de indenização pelo ato ilícito, considerando,
ainda, que “o bloqueio, por certo, causará diculdade ao sustento da reclamante, pois ela
depende do cadastro nos aplicativos para realizar o seu trabalho”.(148)
O cancelamento imotivado, exemplicado nesse episódio, evidencia a vulnerabilidade
das iniciativas incipientes de organização dos trabalhadores. Os bloqueios, os impedimentos,
a utilização do poderio econômico contra aqueles que, de certa forma, se organizam ou
são líderes das entidades sindicais, demonstram uma realidade ainda incompatível com
as condições necessárias às mesas de diálogo (nas Secretarias Regionais do Trabalho, por
exemplo), quanto mais para uma negociação coletiva voltada a negociar direitos da categoria
prossional.
Ao longo do livro “Da máquina à nuvem: caminhos para o acesso à justiça pela via de
direitos dos motoristas da Uber (149), sustentou-se que o denominado empregador-nuvem usa,
além do marketing da economia colaborativa e da cooperação social desempenhada pelos
próprios clientes, uma espécie de panóptico digital que atua como dispositivo de controle
do trabalho. É o que permite a obtenção de força de trabalho perfeitamente amoldada às
diretrizes, padrões e interesses da plataforma, sem a formalização de contratos de trabalho,
mediante a camuagem tecnológica e ideológica do poder de comando, controle, scalização,
a m de afastar a aplicação da norma jurídica trabalhista. Chamou-se inclusive a atenção
para a quantidade de empregados formais com experiência em marketing contratados pela
Uber, com salários expressivos(150), contrastando com o quadro dos demais trabalhadores,
não considerados pela Uber como empregados.
(147) A título de informação, o número do processo da mediação pré-processual é o n. 0020657-92.2021.5.04.0000.
(148) BRASIL. Tribunal Regional do Trabalho da 4a Região. Processo n. 0020882-91.2021.5.04.0201. Recorrente: 99
tecnologia Ltda. Recorrido: Carina Mineia dos Santos Trindade. Rel. Marcos Fagundes Salomão, 2022. Julgamento
da 5a Turma do TRT 4, em 23.06.2022.
(149) LEME, Ana Carolina Paes. Da máquina à nuvem: caminhos para o acesso à justiça pela via de direitos dos
motoristas da Uber. São Paulo: LTr, 2019.
(150) Os gerentes de marketing contratados pela Uber do Brasil recebiam então remuneração de aproximada-
mente R$ 12.000,00, mais benefícios, conforme informações retiradas do Inquérito Civil mencionado na nota
acima. Ver depoimentos e termos de rescisão de contrato de trabalho no Anexo A.2. da dissertação (LEME, Ana
Carolina Reis Paes. Da máquina à nuvem: caminhos para o acesso à justiça pela via de direitos dos motoristas da
Uber. Dissertação (Mestrado em Direito) – Programa de pós-graduação em Direito da Faculdade de Direito da
UFMG, 2018. Disponível em: . Acesso em: 28 abr. 2020).
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Na mesma pesquisa foram identicadas manifestações de motoristas da Uber fre-
quentemente noticiadas pela mídia ao redor do mundo e no Brasil. Em dezembro de 2016,
foi noticiada a fundação do Sindicato dos Motoristas de Transporte Privado Individual de
Passageiros por Aplicativo do Estado do Pernambuco (SIMTRAPLI-PE), reunindo moto-
ristas de Uber e de outros aplicativos, liado à Central Única dos Trabalhadores (CUT).(151)
Armou-se, naquela oportunidade, que a movimentação dos trabalhadores, ainda que de
forma embrionária, existia. A Uber adotou, em paralelo, a estratégia de “escoltar”(152) o Estado,
no sentido de dirigir lado a lado, auxiliando-o a desempenhar suas tarefas essenciais, com
especial foco na parcela vulnerável da população em determinado município, incentivando
eventos e ações comunitárias, como campanhas de arrecadação de agasalhos.
Com o intuito de incentivar a colaboração social, com o apoio da população e, ao
mesmo tempo, comunicando que estaria colaborando com o Estado, a Uber notoriamente
assumiu o papel de patrocinadora do Carnaval de diversas capitais brasileiras, inclusive o
mundialmente conhecido Carnaval do Rio de Janeiro. Patrocinou barracas no calçadão,
negociadas com a Prefeitura do Rio, instalou o “Uber Fresh” — duchas de água corrente na
praia, e estacionou o “Uber Acqua” na orla de Ipanema, uma picape conversível com piscina
instalada na caçamba. Patrocinou, ainda, o carnaval da capital mineira, Belo Horizonte,
criando também o “Uber Aero Bike”, um trilho suspenso com uma bicicleta dentro e uma
imagem panorâmica das folias.(153)
Tal estratégia empregada pelas plataformas digitais, de utilizar-se de campanha massiva
de marketing, angariar a cooperação do consumidor por meio de agrados e da busca de pari-
dade com o Estado, busca desconstruir as narrativas do movimento sindical sobre o próprio
trabalho, que são essenciais no processo de reinvindicação de direitos. Recentemente, foi
noticiada a manipulação realizada pela plataforma IFood(154), de entrega de alimentos por
trabalhadores plataformizados por meio de moto e bicicleta. Constatou-se que a empresa
(151) RODRIGUES, Vanessa. Motoristas do Uber criam sindicato no Pernambuco e se liam à CUT. Ilisp Website, 10
jan. 2017. Disponível em:
-se-liam-cut/>. Acesso em: 20 jun. 2018.
(152) O verbo "escoltar" foi utilizado para simbolizar o apoio ou suporte que a Uber demonstra oferecer ao Esta-
do, enxergado por ela como ineciente e dependente da ajuda de empresas como ela. Como exemplo, cita-se o
apoio que a Uber deu à população carente de atenção do Estado ao entregar 20 mil peças para a Campanha do
Agasalho 2017. (UBER entrega 20 mil peças para a Campanha do Agasalho. O Sul Website. Disponível em:
www.osul.com.br/uber-entrega-20-mil-pecas-para-campanha-agasalho/>. Acesso em: 20 jun. 2018). O diretor da
Uber declarou, nessa ocasião, que a missão da empresa é melhorar a vida das pessoas nas cidades onde atua.
“Colocamos a tecnologia à disposição de um projeto como este, de solidariedade. Usuários e motoristas estive-
ram unidos em dois dias, engajados na campanha. O resultado foi muito positivo: entre cinco e sete toneladas de
agasalhos foram arrecadados”.
(153) LEME, Ana Carolina Paes. Da máquina à nuvem: caminhos para o acesso à justiça pela via de direitos dos
motoristas da Uber. São Paulo: LTr, 2019. p. 79-81.
(154) LEVY, Clarissa. A máquina oculta de propaganda do iFood. A Pública, 4 abr. 2022. Disponível em:
apublica.org/2022/04/a-maquina-oculta-de-propaganda-do-ifood/>. Acesso em: 27 jun. 2022.
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contratou uma agência de publicidade para atuar nas redes sociais, por meio de pers falsos,
que se passavam por entregadores em meio a manifestações pelo reconhecimento de direitos
trabalhistas, com o claro intuito de destruir a sua narrativa e desmontar o movimento grevista.
O sentido dessa ação antissindical era impedir que os trabalhadores organizados coletiva-
mente tivessem uma pauta reivindicatória de reconhecimento de direitos empregatícios.
Segundo a reportagem, as agências contratadas pela plataforma criaram duas páginas, a
fanpage de conteúdo político “Não Breca Meu Trampo” e a página de memes “Garfo na Ca-
veira” para dar suporte à estratégia de esvaziar a narrativa de greve dos entregadores. A des-
crição da página dizia: “A gente quer melhorar de vida e ganhar mais. SEM patrão e salário
mínimo. No corre bem feito a gente tira mais e não tem chefe pra encher o saco. A gente
quer liberdade pra trampar pra quem a gente quiser!”. Uma das fontes chamou a estratégia
de “marketing 4.0” e exemplicou: “Você posta memes, piadas e vídeos que promovem uma
marca ou ideia, mas sem mostrar quem está por trás. Sem assinar”. Segundo os relatos, o
objetivo da publicidade não assinada era disseminar ideias e opiniões em um formato que
imitasse a forma dos entregadores de se comunicarem, simulando que as postagens e narra-
tivas vinham de verdadeiros entregadores. (155) O objetivo era “suavizar o impacto das greves
e desnortear a mobilização dos entregadores”, relata a matéria.
Semelhante situação foi observada na pesquisa de campo e será tratada adiante, no
capítulo 4, quanto à atuação da Uber com os líderes sindicais e com administradores de
grupos de WhatsApp.
A manipulação do espaço geográco, apropriando-se dos recursos do território,
mobilizando grandes quantidades de xos e múltiplos uxos de ações, interferindo nos
mecanismos regulatórios, apoiada pela manipulação ideológica, que envolve a população
em geral e em especial os motoristas, com o intuito de incutir a doutrina do empreendedo-
rismo e da meritocracia e que alcança também a manipulação — coibição/cooptação — das
iniciativas sindicais e de líderes, chega então à manipulação do papel regulatório do Direito
do Trabalho e sua aplicação pelos tribunais.
2.3. O papel do Direito do Trabalho na construção do espaço jurídico-
-laboral do transporte individual por motoristas plataformizados
O Direito do Trabalho é ramo jurídico especializado que regula certo tipo de relação
laborativa na sociedade contemporânea. Segundo Mauricio Godinho Delgado, o Direito
do Trabalho tem na relação empregatícia sua categoria básica, embora não exclusiva, a partir
da qual se constroem os princípios, regras e institutos essenciais desse ramo jurídico espe-
cializado.(156) Tomando-se esse ponto de partida da identicação do Direito do Trabalho,
(155) LEVY, Clarissa. A máquina oculta de propaganda do iFood. A Pública, 4 abr. 2022. Disponível em:
apublica.org/2022/04/a-maquina-oculta-de-propaganda-do-ifood/>. Acesso em: 27 jun. 2022.
(156) DELGADO, Mauricio Godinho. Curso de Direito do Trabalho. 18. ed. São Paulo: LTr, 2019. p. 47.
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torna-se essencial compreender que o regime de emprego é o modelo de referência, mas a
razão de ser da tutela jurídica é o próprio trabalho humano, sujeito a diversos processos de
degradação e vulnerabilização pelas relações de trabalho no modo capitalista de produzir e
que também estão presentes em formas diversas, mas vizinhas à relação de emprego, como
trabalho pessoal autônomo, cooperativado, parceria, microempreendimento, dentre outras.
Para Delgado, é papel do Direito do Trabalho “a desmercantilização da força de
trabalho no sistema socioeconômico capitalista, restringindo o livre império das forças de
mercado na regência da oferta e da administração do labor humano”(157) Pode-se considerar,
ao menos, que se o Direito do trabalho não chega a suprimir o tratamento mercantil da
força de trabalho, anal, o contrato de trabalho juridiciza a compra e venda dessa “estranha
mercadoria” que não se descola do seu portador, pelo menos cria um marco geral de certos
limites ao livre enfrentamento de mercadorias desiguais, protegendo algumas necessidades
humanas básicas, como limitação de jornada, condições elementares de saúde e segurança,
salário mínimo, pausas, etc. Abre, com isso, um espaço relativo a direitos, mas também de
lutas e conquistas que atenuam o resultado do cru enfrentamento entre oferta e demanda
de trabalho.
O autor alerta que o cumprimento da função central do Direito do Trabalho de me-
lhoria das condições de pactuação da força de trabalho na ordem econômica deve considerar
“o ser coletivo obreiro, a categoria, o universo mais global de trabalhadores”, independente
dos estritos efeitos sobre o trabalhador individualmente destacado.(158) Ressalta, ademais,
a função redistributiva do Direito do Trabalho ao considerar ser pela “norma jurídica tra-
balhista, interventora no contrato de emprego, que a sociedade capitalista, estruturalmente
desigual, consegue realizar certo padrão genérico de justiça social, a ponto de distribuir a um
número signicativo de indivíduos”, no caso, os empregados, “em alguma medida, ganhos
do sistema econômico”.(159)
Assim, arma, o contrato empregatício corresponde ao principal veículo de conexão
do indivíduo com a economia, razão pela qual o Direito do Trabalho torna-se “um dos mais
ecientes e genéricos mecanismos de realização da justiça social no sistema capitalista”. E
isso porque a economia de mercado não visa à equidade e justiça social, mas à eciência,
produtividade e lucro. Cabe, assim, ao Direito do Trabalho intervir, por meio da norma
jurídica, na regulação das relações sociais dentro da economia capitalista, em prol da justiça
social.(160)
(157) DELGADO, Mauricio Godinho. Curso de Direito do Trabalho. 18. ed. São Paulo: LTr, 2019. p. 56
(158) Ibidem, p. 57.
(159) DELGADO, Mauricio Godinho. Capitalismo, trabalho e emprego: entre o paradigma da destruição e os cami-
nhos de reconstrução. São Paulo: LTr, 2005. p. 122.
(160) Idem.
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Uma segunda função do Direito do Trabalho apontada por Mauricio Godinho Del-
gado é seu “caráter modernizante e progressista, do ponto de vista econômico e social”, no
sentido de que nas formações socioeconômicas centrais, como na Europa Central, a legislação
trabalhista, desde seu nascimento, cumpriu o papel de “generalizar ao conjunto do mercado
de trabalho aquelas condutas e direitos alcançados pelos trabalhadores em segmentos mais
avançados da economia” e, desse modo, a partir do setor mais moderno e dinâmico da eco-
nomia, são alargadas condições mais civilizadas de gestão da força de trabalho.(161)
Pondera o autor que os países mais desenvolvidos, do ponto de vista econômico,
social e cultural, são os que apresentam o nível mais elevado de retribuição ao trabalho,
motivo pelo qual rechaça certo tipo de discurso popularmente difundido no sentido de que
o elevado nível dos salários e do próprio custo total do trabalho se constituiria em obstáculo
ao desenvolvimento econômico dos países. Delgado defende, portanto, que a densidade e o
vigor das economias e sociedades se devem muito à “consistente retribuição que tendem a
deferir ao valor-trabalho dentro de suas fronteiras”(162)
No Brasil, contudo, a função civilizatória básica do Direito do Trabalho, que é sua
função progressista e modernizante, cou comprometida pela “resistência à generalização
desse padrão de contratação laborativa” ao longo do século passado e até o início deste novo
século, diante da prevalência de uma cultura de concentração de renda e de uma política de
“desprestígio ao Direito do Trabalho” e de “indisfarçável incentivo à precarização da contra-
tação laborativa de seres humanos no país”.(163)
Ao analisar o papel do Direito do Trabalho no regramento das relações sociais, Del-
gado explicita, ainda, que o Direito do Trabalho possui uma “função política conservadora”,
compreendida por “esse ramo jurídico especializado conferir legitimidade política e cultural
à relação de produção básica da sociedade contemporânea”.(164) Contudo, o autor aponta
que o reconhecimento dessa função não anula o seu diagnóstico de que a normatividade
justrabalhista, tanto a autônoma, como a heterônoma, conferiram a elevação do padrão de
gestão das relações empregatícias e do nível de retribuição paga aos trabalhadores.
Enfatiza, por m, que a função civilizatória e democrática é o principal papel do Di-
reito do Trabalho, que se tornou, na História do Capitalismo Ocidental, “um dos instrumen-
tos mais relevantes de inserção na sociedade econômica de parte signicativa dos segmentos
sociais despossuídos de riqueza material acumulada”, e que vivem essencialmente do seu
próprio trabalho.(165)
(161) DELGADO, Mauricio Godinho. Curso de Direito do Trabalho. 18. ed. São Paulo: LTr, 2019. p. 57.
(162) DELGADO, Mauricio Godinho. Capitalismo, trabalho e emprego: entre o paradigma da destruição e os cami-
nhos de reconstrução. São Paulo: LTr, 2005. p. 125.
(163) DELGADO, Mauricio Godinho. Curso de Direito do Trabalho. 18. ed. São Paulo: LTr, 2019. p. 59.
(164) Ibidem, p. 60.
(165) Ibidem, p. 61.
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Outras funções do Direito do Trabalho podem também ser consideradas, envoltas
em sua missão de compatibilizar a armação histórica do vínculo entre dignidade e trabalho,
subjacente à máxima de que “o trabalho não é uma mercadoria”, com o caráter mercantil
das relações sociais capitalistas e que se expressa no reconhecimento constitucional de
direitos sociais vinculados ao trabalho. Leonardo Wandelli destaca a importância crucial da
regulação pública do trabalho, ainda que sejam relativos os ganhos dela advindos e não seja
eliminada a mercantilização do trabalho:
Direitos sociais que protegem certas condições mínimas de compra e venda da
força de trabalho podem acabar reproduzindo e rearmando a dinâmica mer-
cantil e têm de se defrontar com determinantes estruturais e relações de poder
que tendem à exploração e à instrumentalização das pessoas que trabalham. (166)
Incumbe à regulação pública por meio do Direito do Trabalho a função regulatória
de “ordenar o mercado de compra e venda da força de trabalho”, dando-lhe estabilidade
e previsibilidade e tornando juridicamente legítimas essas transações de compra e venda,
razão pela qual arma ser esse ramo jurídico laboral essencial ao capitalismo(167). Além
da função regulatória do mercado de trabalho, ao Direito do Trabalho também incumbe
regular o acesso à renda, função indispensável para sustentar as expectativas de consumo,
relevantes à demanda.
A par dessas funções, cabe ao Direito do Trabalho regular os limites à própria degradação
total das condições de vida das pessoas humanas pelo mercado laboral, a m de assegurar-
-lhes aspectos vivenciais básicos, que vão desde a subsistência dos trabalhadores, como suas
condições de saúde, participação coletiva, identidade, justiça, assegurando com isso a conti-
nuidade do provimento de força de trabalho. (168)
Ao proteger os trabalhadores, como pessoas, o Direito do Trabalho também protege
o próprio mercado da sua tendência autodestrutiva, que, sem a regulação pública, tenderia à
degradação contínua da própria substância humana, pelo aprofundamento da concorrência
a engendrar condições cada vez piores de trabalho. Portanto, o Direito do Trabalho, quando
assim o faz, também contribui para preservar aquelas pré-condições das quais o capitalismo
depende, mas que não produz, de que fala Fraser.
Além disso, o Direito do Trabalho não se reveste apenas desse aspecto funcional.
Conquistas de direitos têm também a dimensão de transformação do sentido socialmente
(166) WANDELLI, Leonardo Vieira. Comentário ao art. 7o. In: CANOTILHO, J. J. Gomes; MENDES, Gilmar F.; STRECK,
Lenio L. (Coords.). Comentários à Constituição do Brasil. São Paulo: Saraiva Educação, 2018. p. 584-592.
(167) Idem.
(168) Explica Leonardo Wandelli que o mercado degrada a substância humana do trabalho, sem a qual não há esse
tipo de mercado e ca prejudicado o consumo, ao desmesurar-se na exploração da força de trabalho, buscando ma-
ximizar a rentabilidade. In: WANDELLI, Leonardo Vieira. Comentário ao art. 7o. In: CANOTILHO, J. J. Gomes; MENDES,
Gilmar F.; STRECK, Lenio L. (Coords.). Comentários à Constituição do Brasil. São Paulo: Saraiva Educação, 2018. p. 586.
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atribuído à condição de quem trabalha: “a aceitação de um valor social positivo daqueles que
se qualicam pelo trabalho somente chega por meio de um reconhecimento jurídico”.(169)
Reconhecer juridicamente o trabalho, aqui incluindo o trabalho dos motoristas platafor-
mizados é, pois, imprescindível a m de promoção do sentido e das condições do trabalho.
Nos diversos dados e nas diferentes investigações cientícas realizadas no Brasil, o
perl predominante do trabalhador em plataformas não é o de empreendedor que exercita
sua liberdade de trabalho, para denir quando e quanto tempo trabalhar, ou daquele que
consegue receber rendimentos maiores do que a média dos empregados. Muito menos que
ele seja titular de um negócio próprio autonomamente explorado e não simplesmente alguém
que empresta sua força de trabalho e, eventualmente um instrumento ou ferramenta — o
veículo — ao negócio inteiramente dirigido e controlado por outrem.
No caso da plataforma Uber, as pesquisas empíricas desfazem o senso comum, enfa-
tizado pelo marketing, de que se trata de trabalho com autonomia, liberdade e bem remu-
nerado. Investigação realizada pela UFBA detectou um perl de motorista que trabalha,
na maioria das vezes, com exclusividade, por mais de 8 horas diárias e mais de 44 horas
semanais, em troca de uma remuneração bruta, em geral, inferior a 2 salários mínimos.(170)
Em pesquisa realizada no âmbito da UFRJ, vericou-se que 70% dos trabalhadores
ultrapassam 44 horas semanais e mais de um terço (35%) realizam mais de 60 horas se-
manais, recebendo o valor bruto de R$ 19,12 a hora, do qual ainda devem ser descontadas
todas as despesas, e a quase a totalidade deles não tem noção integral dos seus gastos e não
leva em conta custos como a depreciação do veículo ou despesas na sua manutenção.(171)
De acordo com a investigação realizada por Renan Kalil, realizada entre agosto e
outubro de 2018, totalizando 102 entrevistados, 53% dos condutores pesquisados relataram
trabalhar mais do que 10 horas por dia, sendo que, no que se refere aos dias da semana, quase
70% trabalhavam mais do que 5 dias. Considerando apenas aqueles que têm o trabalho em
plataforma como única fonte de renda, o percentual dos que trabalhavam mais de 10 horas
diárias subia para quase 61% do entrevistados. Em função das respostas obtidas sobre como
os trabalhadores denem seu tempo de trabalho, o autor concluiu que “a quantidade de horas
por dia está diretamente relacionada à capacidade de auferir rendimentos dirigindo”(172).
(169) WANDELLI, Leonardo Vieira. Comentário ao art. 7o. In: CANOTILHO, J. J. Gomes; MENDES, Gilmar F.; STRECK,
Lenio L. (Coords.). Comentários à Constituição do Brasil. São Paulo: Saraiva Educação, 2018. p. 587.
(170) OLIVEIRA, Murilo Carvalho Sampaio; ASSIS, Anne Karoline Barbosa de; COSTA, Joelane Borges; Relatório de
Pesquisa Pibic 2018-2019. Uberização do Trabalho: análise crítica das relações de trabalho prestadas por aplicati-
vos. Salvador: Universidade Federal da Bahia, 2019.
(171) CARELLI, Rodrigo de Lacerda. O caso Uber e o controle por programação: de carona para o século XIX. In:
LEME, Ana Carolina Reis Paes; RODRIGUES, Bruno Alves; CHAVES JÚNIOR, José Eduardo de Resende (Coords.).
Tecnologias disruptivas e a exploração do trabalho humano. São Paulo: LTr, 2017. p. 257.
(172) KALIL, Renan Bernardi. Capitalismo de plataforma e Direito do Trabalho: crowdwork e trabalho sob demanda
por meio de aplicativos. 366 f. Orientador: Otavio Pinto e Silva. 2019. Tese (Doutorado em Direito) – Universidade
de São Paulo, USP, Programa de Pós-Graduação em Direito, Direito do Trabalho e da Seguridade Social, São Paulo,
2019. p. 154.
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O pesquisador também questionou os entrevistados sobre o tempo gasto com o trabalho
não remunerado, ou seja, aquele em que estes cam à espera de uma chamada, ou estão se
deslocando sem nenhum cliente. Nesse caso, 49% relataram gastar entre 1 a 2 horas por dia
nessas atividades não remuneradas.
Regra geral os trabalhadores que dirigem para plataformas não têm uma renda xa.
Assim, se não trabalharem, não tem renda. Se adoecerem ou se depararem com problemas
de manutenção do veículo, também não recebem. Soma-se a esses fatores de risco integral
ao motorista de plataforma a possibilidade de serem furtados, assaltados, sofrerem acidente
ou colisão, entre tantos outros infortúnios que podem ser submetidos.
Além disso, o valor semanal recebido não inclui gastos essenciais para trabalhar como:
custos de aparelho celular inteligente, manutenção, combustível, refeição, internet etc., isso
sem contar que habitualmente não incluem o cálculo da depreciação do veículo. A dedução
da fração mensal destinada à troca do veículo consome parte signicativa do rendimento
do motorista. Até porque, no caso dos motoristas plataformizados, não existe subsídio scal
para aquisição de veículo, diferentemente do que ocorre com os taxistas. Em muitos casos a
viabilidade econômica do trabalho decorre do uso de um veículo que o trabalhador já tem,
mas cujo desgaste não poderá repor.
Há aí uma forma a mais de espoliação do trabalhador, que se vê alijado do seu bem
de propriedade móvel local, apropriado pela empresa transnacional. E essa situação é
intencional. As plataformas externalizaram praticamente todos os custos e os riscos para
os trabalhadores, resultando não apenas em remuneração baixa, mas também incerta, além
de se utilizarem dos recursos da cooperação social.(173) Assim, quando os motoristas conse-
guem sair para trabalhar, não têm ideia de quanto receberão ao nal do dia, ou com quanto
poderão contar ao nal do mês, nem de quanto gastarão com infortúnios com o carro ou sua
saúde. Com rendimentos baixos e incertos(174), esses trabalhadores são obrigados a laborar
longas jornadas ao longo de praticamente toda a semana, realidade essa que é diametral-
mente oposta à ideia de liberdade e exibilidade amplamente publicizada pela empresa
global.
Rodrigo Moraes, Marco Oliveira e André Accorsi, ao pesquisarem sobre o trabalho
dos motoristas plataformizados da região metropolitana de São Paulo, identicaram que a
(173) LEME, Ana Carolina Paes. Da máquina à nuvem: caminhos para o acesso à justiça pela via de direitos dos
motoristas da Uber. São Paulo: LTr, 2019. A pesquisa relata como “a Uber captura a narrativa e a energia da coo-
peração social, com o discurso de que colabora para o desenvolvimento de “um mundo melhor” e que pode “nos
livrar de formas ultrapassadas de trabalho”. Ao contrário, a empresa se utiliza de uma retórica para convencer
todos os participantes — usuário (cliente) e motorista (Uber driver) — a realizarem pagamentos diretamente ao
intermediário — ela mesma”. p. 22.
(174) Sobre perl dos motoristas, vide a história verídica da “Fernanda” e do “João” que ilustra bem a realidade dos
motoristas que dirigem a mando da Uber, com jornadas extensas e, remuneração baixa. In: LEME, Ana Carolina
Paes. Da máquina à nuvem: caminhos para o acesso à justiça pela via de direitos dos motoristas da Uber. São Paulo:
LTr, 2019. p. 75-76, 129 e 130.
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jornada diária de trabalho de mais de 8 horas alcança 77% dos entrevistados, os quais dirigem
de 5 a 7 dias por semana (73%), sendo que 90% não chega a alcançar uma receita (bruta)
semanal de R$ 2.000,00 (51% auferem menos de R$1.000,00 brutos semanais). Além disso,
identicaram que para 57% dos trabalhadores, a atividade de direção na plataforma de
transporte era a sua única fonte de renda.(175)
A partir desses e dos dados que serão trazidos no capítulo 4, vericou-se que o perl
predominante desses trabalhadores em plataformas de transporte é constituído por pessoas
que cumprem extensas jornadas e recebem baixos salários, quando se faz a dedução das
despesas de aquisição e manutenção dos instrumentos de trabalho.
Com a pandemia do vírus SARS-CoV-2, houve agravamento das condições de tra-
balho em razão das diculdades dos motoristas por plataforma de preservarem sua vida e
sua integridade psicofísica. Em pesquisa sobre os condutores em plataformas digitais de
transporte individual na cidade de Juiz de Fora(176), foi observado que, no contexto da pande-
mia do vírus SARS-CoV-2, um dos aspectos mais frisados pelos respondentes foi a “queda
dos rendimentos, em função da redução na demanda por viagens ocorrida no início da
pandemia, quando o isolamento social, o fechamento do comércio e a adoção do trabalho
remoto foram fortes”(177). No que se refere à jornada de trabalho, os autores vericaram que,
comparando o período antes e durante a pandemia, foi constatado que 45% dos motoristas
trabalhavam sete dias por semana antes do período de isolamento social e, mesmo após,
esse número continuou elevado, “o que signica que estes não tinham nenhum dia para des-
cansarem e vivenciarem outros tempos sociais, como os da família, de lazer ou estudo”(178).
Ainda no que se refere ao período anterior à pandemia, observaram que praticamente 70%
dos entrevistados trabalhavam mais de 8 horas por dia, e, em torno de 41%, mais do que
10 horas.(179) Foi observado, ainda, que a pandemia levou parte dos motoristas a reduzirem os
dias de trabalho por semana, sendo que “mais de um terço deixou de trabalhar no período
(175) MORAES, Rodrigo Bombonati de Souza; OLIVEIRA, Marco Antonio Gonsales de; ACCORSI, André. Uberização
no contexto da economia de compartilhamento: um estudo sobre o trabalho dos motoristas de transporte parti-
cular por aplicativo em São Paulo. Revista Interface, v. 16, n. 2, p. 72-92, jul./dez. 2019. p. 81.
(176) PESQUISA com condutores Apresentação AMOAPLIC JF. Vídeo [1h46min]. Canal Professor Victor Paradela.
Disponível em: . Acesso em: 12 set. 2020.
(177) CARDOSO, Ana Claudia Moreira et al. A pandemia da Covid-19 e o agravamento da precariedade do traba-
lho dos motoristas em empresas-plataforma de transporte individual em uma cidade brasileira de médio porte.
Revista ABET, 2022 (no prelo).
(178) CARDOSO, Ana Claudia Moreira; ARTUR, Karen; OLIVEIRA, Murilo Carvalho Sampaio. O trabalho nas platafor-
mas digitais: narrativas contrapostas de autonomia, subordinação, liberdade e dependência. Revista Valore, [S.l.],
v. 5, p. 206-230, set. 2020. ISSN 2526-043X. Disponível em: om.br/valore/article/
view/657>. Acesso em: 16 jun. 2022.
(179) Idem.
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em que a pesquisa foi realizada”, sendo que, no c aso das mulheres, essa queda foi mais acen-
tuada: 47,6% deixando de trabalhar, contra 31,9% dos homens, identicando-se aqui uma
possível discriminação de gênero, na medida em que, culturalmente, incumbe-se às mulheres,
mais do que aos homens, “cuidar dos lhos que caram sem escola, da casa, da comida e das
pessoas mais velhas que necessitam de maior atenção”.(180)
Percebem-se, pelos dados de pesquisas trazidos até aqui, diferentes formas de pre-
cariedades e inacesso a direitos pelos motoristas plataformizados, a passo da ausência de
limites regulativos ao trabalho. Isto ocorre, como visto, em razão do esforço que as plata-
formas fazem para criar um novo enquadramento desse trabalho, ou melhor, um esforço
concentrado para produzir um desenquadramento, a m de obliterar todo o arcabouço de
regras locais e nacionais e instituir, ou uma “zona cinzenta”(181), ou outro marco regulatório.
Diante desse quadro, arma-se a necessidade de se qualicar o trabalho dos motoristas por
meio de plataformas com o reconhecimento jurídico que lhes é de direito, a m de criar
“espaços de pertencimento e autoestima”, nos quais há proteção jurídica ao trabalho por eles
realizado, além de “fomentar as lutas reivindicatórias”.(182)
A armação, feita por Delgado, de que o Direito do Trabalho representa o melhor
patamar civilizatório que o capitalismo logrou propiciar merece uma reexão. De fato, as
inúmeras críticas sobre as condições de trabalho no capitalismo, como reguladas pelo Direito
do Trabalho, podem levar a questionar se a sua função conservadora não se sobrepõe a sua
função civilizatória. Nesse aspecto, o caráter bifronte do Direito do Trabalho, como direito
de regulação e de emancipação, de proteção do mercado e de proteção do trabalhador, de
armação do poder legítimo de subordinação e de limitação da exploração humana pode
ser teoricamente capitado com o auxílio do conceito de ambivalência, desenvolvido pelo
juslaboralista francês Antoine Jeammaud.(183)
O conceito de ambivalência envolve a compreensão de que o Direito do Trabalho
reconhece direitos aos trabalhadores, restringindo a exploração desenfreada e, assim, pro-
tegendo-os da tendência de maximização da exploração, que degradaria a própria força de
trabalho, ao mesmo tempo em que institucionaliza, organiza e legitima essa mesma explo-
ração. Ao regular a tensão entre a tendência de maximização da exploração e a necessidade
(180) CARDOSO, Ana Cláudia Moreira et al. A pandemia da Covid-19 e o agravamento da precariedade do traba-
lho dos motoristas em empresas-plataforma de transporte individual em uma cidade brasileira de médio porte.
Revista ABET, 2022 (no prelo).
(181) AZAÏS, Christian; DIEUAIDE, Patrick; KESSELMAN, Donna. Zona cinzenta do emprego, poder do empregador
e espaço público. In: CARELLI, Rodrigo L.; CAVALCANTI, Tiago M.; FONSECA, Vanessa p. (Orgs.). Futuro do trabalho:
os efeitos da revolução digital na sociedade. Brasília: ESMPU, 2020. p. 441-458.
(182) Leonardo Wandelli aponta que a par da utilidade econômica, o direito do trabalho retirou o trabalho da
condição de indignidade, passando a ser encarado do ponto de vista da cidadania social, como condição jurídica
formada por direitos e deveres e baseada no reconhecimento do pertencimento a uma coletividade. WANDELLI,
Leonardo. O direito humano e fundamental ao trabalho: fundamento e exigibilidade. São Paulo: LTr, 2012.
(183) JEAMMAUD, Antoine. Le droit du travail dans le capitalism, question de fonctions et de fonctionnement. In:
JEAMMAUD, Antoine. (Dir.) Le droitt du travail confronte à l’économie. Paris: Dalloz, 2005. p. 15-38.
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de proteção do trabalho humano, ou seja, das pessoas e seus modos de vida, limita a explo-
ração dessa força de trabalho, não deixando dissolver-se a tensão e, assim, cria um espaço
institucional de reivindicação e implementação de direitos.(184)
O conito social é canalizado como conito jurídico, favorecendo a estabilidade do
sistema econômico.(185) Para além de manter e legitimar a ordem estabelecida, a ambivalência
do Direito do Trabalho exsurge ao permitir também aos trabalhadores contestar o status quo,
sem com isso perder o caráter de técnica de controle social, regulando o enfrentamento de
classes e criando espaços de luta econômica, cultural e ideológica.(186) Trata-se, portanto,
de um ramo jurídico nuclear ao vínculo social, pois cuida não só de aspectos necessários à
reprodução do capital, mas também da própria reprodução da vida, em uma sociedade sob
a égide do sistema capitalista.
Chega-se, então, ao que Leonardo Wandelli denomina de dupla ambivalência da
legislação do trabalho que inclui os direitos fundamentais das pessoas que vivem do traba-
lho. À mediação da tensão instrumental entre os interesses dos trabalhadores e do capital,
acrescenta a mediação de uma segunda tensão. Não se trata só de regular a tensão entre as
necessidades do sistema de assegurar juridicamente a compra e venda da força de trabalho
subordinada como “negócio lícito” e de proteger o mercado de trabalho da “força destrutiva
do sistema de mercado sobre o trabalho”.
Cuida-se, ao mesmo tempo, de mediar a tensão interacional, baseada nas expectativas
de justiça dos trabalhadores, entre, num polo da tensão, a “necessidade de manter expec-
tativas normativas de reconhecimento de subjetividades trabalhadoras que promovam o
engajamento ecaz em termos de zelo e cooperação”. Isto porque compelir os trabalhadores
a produzir apenas com base no aguilhão da fome não asseguraria a dedicação e o zelo que a
produção cada vez mais requer. E, no outro polo da tensão, a “impossibilidade constitutiva
do sistema de satisfazer plenamente tais expectativas de justiça dos trabalhadores, o que
levaria à própria ruptura da estrutura desigual do capital, razão pela qual conclui o autor
que somente é possível mediar essas duas tensões de interesses e normativa, “admitindo
espaços de lutas reivindicatórias potencialmente ampliativas de direitos que não podem ser
inteiramente determinados e controlados”.(187)
O cerne do conito decorrente da luta dos trabalhadores por interesses, reconhe-
cimento e direitos e da resistência e incapacidade constitutiva do capital de acolhê-la é
(184) WANDELLI, Leonardo. O direito humano e fundamental ao trabalho: fundamento e exigibilidade. São Paulo:
LTr, 2012. p. 192.
(185) RAMOS FILHO, Wilson. Direito capitalista do trabalho: história, mitos e perspectivas no Brasil. São Paulo: LTr,
2021. p. 94.
(186) Ibidem, p. 95.
(187) WANDELLI, Leonardo. O direito humano e fundamental ao trabalho: fundamento e exigibilidade. São Paulo:
LTr, 2012. p. 195-196.
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que impulsiona a produção normativa. Nessa perspectiva, ao erodir a regulação pública do
trabalho, o neoliberalismo vai erodindo a base de regulação que, até o momento, sustentou
e estabilizou as relações capitalistas de trabalho, em torno da mediação dessas tensões, que
cam dissolvidas pela desconsideração do polo que se refere às demandas dos trabalhadores.
Ao problematizar o papel tático da proteção jurídica do trabalhador, Gustavo Seferian
compreende o Direito do Trabalho como “barricada jurídica”(188) na linha de frente dos
choques entre as classes em luta no seio do capitalismo. Rearma que se trata “da última
fronteira formal da luta”, por “estar inserta a matéria justrabalhista na principal contradição
que dimana da sociedade capitalista: aquela existente entre capital e trabalho”. Por tal razão,
“faz denotar em suas funcionalidades uma miríade de contradições”. Seferian alerta que não
há, no Direito do Trabalho, sabedoria no recuo, pois o recuo é derrota. E segue armando
que a compreensão que espera “não só dos contemporâneos, mas dos que virão” é:
[...] lutar pelo Direito do Trabalho é, porquanto perdurar o modelo capitalista,
uma tarefa tática imprescindível para aquelas e aqueles que vivem da venda da
sua força de trabalho. O que, indiferente das contradições que daí possam de-
correr, não faz compactuar com a reprodução e continuidade da forma jurídica,
senão o acentuar das contradições que dela dimanam.(189)
Como se pôde ver, a constante construção do espaço jurídico e protetivo dos direi-
tos humanos e fundamentais é momento essencial das ações sobre o território. Trata-se
de uma luta multifacetada, que envolve tanto as condições de regulação e funcionamento
do mercado capitalista, quanto o conjunto de limites e proteções que contribuirão com
um determinado patamar civilizatório no interior das relações mercantis. E, também, todo um
plexo de aspectos ideológicos de legitimação do assalariamento e outras formas de apro-
priação e exploração do trabalho humano, de atribuição de sentido e valor social à condição
de trabalhador e de canalizar as lutas sociais como disputas jurídicas, trazendo-as para o
campo sistêmico do Direito.
2.3.1. O vínculo de emprego entre motoristas plataformizados, as empresas
Uber e 99 e o acesso à justiça pela via dos Direitos Trabalhistas
Embora a CF/1988 atribua importante rol de direitos fundamentais a todos os tra-
balhadores (art. 7o), de modo geral, a legislação do trabalho brasileira está substancialmente
(188) MACHADO, Gustavo Seferian Scheer. Direito do trabalho como barricada: sobre o papel tático da proteção
jurídica do trabalhador. 2017. Tese (Doutorado) – Universidade de São Paulo, São Paulo, 2017. p. 196, 202 e 223.
(189) MACHADO, Gustavo Seferian Scheer. Direito do trabalho como barricada: sobre o papel tático da proteção
jurídica do trabalhador. 2017. Tese (Doutorado) – Universidade de São Paulo, São Paulo, 2017. p. 329. Seferian, ao
se referir ao uso tático do Direito do Trabalho para resistências e investidas, o faz à luz da tônica de que “uma vez
conquistado o ponto de avanço tático na guerra de posições e erigida nova barricada, serve ela de referência para
novas e futuras incursões, bem como de ponto forticado para resistência das classes trabalhadoras postas em
luta contra os ataques dos seus históricos opressores” (p. 257).
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limitada a prever direitos protetivos aos empregados, ou seja, trabalhadores sob regime de
emprego, ainda que haja normas especiais relativas aos trabalhadores avulsos, cooperados,
dentre outros. Há enorme silêncio legislativo sobre o trabalho autônomo, relegado ao campo do
direito civil privado, por excelência. A centralidade do emprego como requisito de incidência
da legislação protetiva do trabalho e como plataforma de integração social atrai enorme
pressão em torno de quais trabalhadores serão ou não incluídos na modalidade jurídica
empregatícia. Assim, a disputa quanto ao enquadramento ou reconhecimento como enqua-
dramento empregatício, em torno da qual se disputa a proteção jurídica do trabalho, situa-se
num modelo de “tudo ou nada”. Daí que a luta pela regulação do espaço jurídico-laboral, no
Brasil, está centrada na luta jurídica acerca do reconhecimento judicial ou extrajudicial do
enquadramento jurídico dos motoristas na condição de empregados das empresas proprie-
tárias das plataformas, segundo o padrão básico da lei trabalhista vigente, a CLT (Decreto-
-lei n. 5.452 de 1o de maio de 1943).
A discussão relativa ao enquadramento jurídico do motorista plataformizado como
empregado ou não está permeada não só pela ambiguidade do Direito do Trabalho no
sentido acima mencionado, mas também pelas diversas funções exercidas por esse ramo do
Direito, de caráter regulatório, ideológico, distributivo e civilizatório.
No âmbito da legislação trabalhista brasileira, a investigação do enquadramento de
um trabalhador como empregado percorre a análise dos elementos fático-jurídicos da relação
de emprego que se extraem da leitura conjunta dos arts. 2o e 3o da CLT e que na doutrina de
Delgado correspondem a trabalho por pessoa física, com pessoalidade, não eventualidade,
onerosidade e subordinação jurídica.(190) Em 2011, houve uma atualização da CLT com o
intuito de fazer constar em seu art. 6o um novo comando, inserido na forma de parágrafo
único: “os meios telemáticos e informatizados de comando, controle e super visão se equipa-
ram, para ns de subordinação jurídica, aos meios pessoais e diretos de comando, controle
e supervisão do trabalho alheio”.(191)
A m de fugir da incidência do regramento justrabalhista, a empresa Uber — e tam-
bém a 99 — armam que os motoristas são autônomos, pois suportam seus riscos, gerenciam
seu tempo e suas atividades. Sustentam que os motoristas são “contratados independentes”
e, portanto, que não são empregados. A Uber (e também a 99) não fornecem serviços de
transporte e dizem que os contratados independentes seriam microempreendedores, portanto
(190) DELGADO, Mauricio Godinho. Curso de Direito do Trabalho. 18. ed. São Paulo: LTr, 2019. p. 337-351.
(191) OLIVEIRA, Murilo Carvalho Sampaio; CARELLI, Rodrigo de Lacerda; GRILLO, Sayonara. Conceito e crítica das
plataformas digitais de trabalho. Revista Direito e Práxis, Rio de Janeiro, v. 11, n. 4, p. 2.609-2.634, 2020. Os autores,
ao defenderem que há solução suciente no ordenamento jurídico vigente para a regulação do trabalho dos
motoristas plataformizados, preceituam que “a própria legislação brasileira elegeu um conceito aberto — “sob
dependência” no art. 3o da CLT — e que já está atualizado para uma subordinação “telemática” como consta,
desde 2011, no parágrafo único do art. 6o. Mas isto pressupõe o reconhecimento de que o Direito do Trabalho não
incide somente sobre o trabalho no modelo fordista típico, o qual dependia necessariamente da “subordinação
por hierarquia” e com jornada heteroxada, regulando modos diferenciados de apropriação do trabalho humano”.
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unicamente responsáveis por quaisquer prejuízos. Utilizam o exercício argumentativo(192)
com intuito de afastar quaisquer interferência das plataformas nos desígnios do motorista.
Assim, argumentam que a avaliação do motorista, a restrição por má conduta ou por rejeitar
viagens seguidamente, seriam mecanismos de manutenção da qualidade do serviço, da con-
abilidade da plataforma e da segurança do usuário contratante, utilizando uma roupagem
lúdica(193) em verdadeiro processo de gamicação da ingerência patronal.(194)
Assim é possível destacar um esforço linguístico de afastar a incidência da legislação
trabalhista e de criar um novo enquadramento do trabalho, produzindo um desenquadra-
mento, como já salientado anteriormente(195). Como demonstra a pesquisa realizada pela
Clínica de Direito do Trabalho da UFPR, há uma ampla predominância de decisões des-
favoráveis (78,14%) sobre o tema da relação de emprego entre o motorista e as plataformas
Uber e 99.(196)
(192) BROCHADO, Mariah; PORTO, Lucas. Novas tecnologias e relação de emprego: app-trabalho e direitos sociais
no Brasil. In: VASCONCELOS, Antônio Gomes de; CHIMURIS, Ramiro (Orgs.). Direito e economia: neocolonialismo,
dívida ambiental, tecnologia, trabalho e gênero no sistema econômico global. Napoli: La Cittá del Sole, 2020. p. 305-
341.
(193) O uso de neuromarketing pela Uber foi relatado em artigo cientíco, no qual descreveu que plataforma
envia mensagens funcionais aos seus pilotos, sem que estes necessitassem de uma meta especíca de renda em
mente. A funcionalidade ocorre simplesmente pelo vício no jogo. Não há nal e o game over só ocorre quando
o aplicativo é desligado. E a Uber tira vantagens desse “ciclo lúdico”. Traz, como exemplo, que a UBER chegou a
incluir um gráco de um indicador de motor com uma agulha que se aproximava tentadoramente de um sinal de
dólar. Armou-se que todas essas métricas podem estimular os impulsos competitivos que impulsionam o jogo
compulsivo. In: LEME, Ana Carolina Reis Paes. Neuromarketing e sedução dos trabalhadores: o caso Uber. CARELLI,
Rodrigo L.; CAVALCANTI, Tiago M.; FONSECA, Vanessa P. (Orgs.). Futuro do trabalho: os efeitos da revolução digital
na sociedade. Brasília: ESMPU, 2020. p. 139.
(194) Viviane Vidigal compreende a gamicação como um modelo de premiar e punir o trabalhador que atinge
ou não uma meta imposta pelas empresas, desvelando-se como mecanismo de gestão para interferir na vontade
deste trabalhador, incutindo-lhe o desejo de trabalhar mais. In: VIDIGAL, V. Game Over: a gestão gamicada do
trabalho. MovimentAção, [S. l.], v. 8, n. 14, p. 44–64, 2021. DOI: 10.30612/mvt.v8i14.15018. Disponível em:
ojs.ufgd.edu.br/index.php/movimentacao/article/view/15018>. Acesso em: 16 jun. 2022.
(195) Segundo Sidnei Machado e Alexandre Pilan Zanoni, organizadores da pesquisa realizada pela Clínica de
Direito do Trabalho da UFPR: “Apesar de uma judicialização substantiva sobre o tema das plataformas digitais, e de
algumas decisões de impacto na jurisprudência, o debate sobre a qualicação jurídica ainda é bastante restrito.
Há um conjunto de decisões de tribunais regionais do trabalho e quatro pronunciamentos pontuais do Tribunal
Superior do Trabalho. Conquanto haja decisões em tribunais regionais do trabalho favoráveis à qualicação da
relação de emprego, as decisões do TST, o tribunal responsável pela uniformização jurisprudencial, têm afastado a
conguração do vínculo, com a aceitação da tese geral da natureza autônoma do trabalho. Nesse sentido, obser-
vasse um enorme descompasso da jurisprudência brasileira com o debate estendido em países como França, Rei-
no Unido, Alemanha e Espanha”. In: MACHADO, Sidnei; ZANONI, Alexandre Pilan (Orgs.). O trabalho controlado por
plataformas digitais: dimensões, pers e direitos. Curitiba: UFPR, Clínica Direito do Trabalho, 2022. E-book. p. 219.
(196) A pesquisa produzida no Brasil, no período de 2017 a 2021, nos 24 Tribunais Regionais do Trabalho e no
Tribunal Superior do Trabalho, analisou 485 decisões proferidas por estas cortes de instância intermediária e pelo
TST, sendo que entre todas as decisões proferidas em processos trabalhistas cujo objeto da controvérsia foi a
relação de emprego, 78,14% rejeitaram a qualicação do status de empregado. In: MACHADO, Sidnei; ZANONI,
Alexandre Pilan (Orgs.). O trabalho controlado por plataformas digitais: dimensões, pers e direitos. Curitiba: UFPR,
Clínica Direito do Trabalho, 2022. E-book. p. 188-189.
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Como se viu nos tópicos anteriores, há uma disputa acerca do enquadramento jurídico
laboral, na qual as plataformas Uber e 99 almejam rechaçar por completo a incidência do
Direito do Trabalho, como se viu nos tópicos anteriores. É preciso ponderar esses números
a partir da percepção, que se explicitará adiante, da estratégia de manipulação quando da
formação da jurisprudência nos tribunais trabalhistas brasileiros mediante a realização sele-
tiva de acordos em demandas escolhidas a dedo. Contudo, isso não foi suciente para que a
Justiça do Trabalho deixasse de reconhecer o vínculo de emprego entre motoristas e as pla-
taformas Uber e 99. Atualmente, ainda que a maioria das decisões judiciais dos Tribunais
neguem a relação de emprego, existem decisões judiciais de primeira instância(197), acórdãos
de Tribunais Regionais(198) e, também, uma decisão da 3a Turma do Tribunal Superior do
Trabalho(199) reconhecendo a presença dos requisitos fático-jurídicos do vínculo de emprego
nessa relação entre motoristas plataformizados e a empresa proprietária da plataforma.
No plano nacional, as decisões demoraram mais para acontecer. No panorama inter-
nacional, a primeira que sinalizou no sentido de que seriam reconhecidos direitos traba-
lhistas aos motoristas da plataforma Uber foi a decisão do Juiz Federal Edward M. Chen,
da Corte do Distrito Norte da Califórnia que, em 16 de agosto de 2013, recebeu uma
reclamação trabalhista envolvendo quatro motoristas da Uber que requeriam pagamento de
parcelas trabalhistas, inclusive gorjetas e reembolso de despesas.(200) A reclamação plúrima
foi convertida em “class action”, a U ber ofereceu um acordo de 100 milhões de dólares que
não foi considerado pela Corte, diante do seu valor irrisório e distante dos 850 milhões de
dólares avaliado como razoável pelo órgão jurisdicional. Contudo, a Uber recorreu dessa
decisão e acabou conseguindo que o Tribunal de São Francisco decidisse que os litígios
deveriam ser solucionados por meio da arbitragem privada.
No campo da legislação estrangeira, é preciso citar a edição da Assembly Bill n. 5
(AB5), uma lei estadual da Califórnia-EUA, editada em 2019, que surgiu a partir de um
caso julgado pela Suprema Corte da Califórnia, Dynamex Operations West Inc. v. Tribunal
Superior, no ano de 2018. Esse caso concreto serviu como precedente para a edição da AB5.
Nele, o Tribunal considerou que os trabalhadores “mal classicados” como contratantes
independentes, e não como empregados, não tem direitos e proteções signicativos, como
salário mínimo, indenização por acidente de trabalho, seguro-desemprego e licenças médica
(197) MACHADO, Sidnei; ZANONI, Alexandre Pilan (Orgs.). O trabalho controlado por plataformas digitais: dimen-
sões, pers e direitos. Curitiba: UFPR, Clínica Direito do Trabalho, 2022. E-book. p. 195.
(198) Ibidem, p. 199.
(199) BRASIL. Tribunal Superior do Trabalho. Processo n. 100353-02.2017.5.01.0066 (ROT). Recorrente: Elias do Nas-
cimento Santos. Recorrido: Uber do Brasil Tecnologia Ltda.; rel. Ministro Mauricio Godinho Delgado. 2022.
(200) As decisões aqui mencionadas podem ser vistas em: CHAVES, Letícia Righi Rodrigues de Xavier. Informe
sobre ações envolvendo a Uber no Direito Comparado. In: LEME, Ana Carolina Reis Paes; RODRIGUES, Bruno Alves;
CHAVES JÚNIOR, José Eduardo de Resende (Coords.). Tecnologias disruptivas e a exploração do trabalho humano.
São Paulo: LTr, 2017. p. 331.
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e familiar pagas, sendo um fator signicativo, inclusive, na erosão da classe média americana
e no aumento da desigualdade de renda.(201)
Assim, o “caso Dynamex” é emblemático, pois a Suprema Corte da Califórnia reco-
nheceu o vínculo de emprego de um trabalhador com a empresa de entrega de encomendas.
Esse caso foi fundamento para a edição da denominada AB5, legislação que ampliou as
hipóteses de reconhecimento dos trabalhadores como empregados até então previstas no
Código do Trabalho Californiano (Labour Code – LAB) e transferiu o ônus da classicação
dos indivíduos como contratantes independentes à entidade contratante. Tratou-se de im-
portante evolução legislativa na proteção dos direitos trabalhistas no âmbito da plataformi-
zação do trabalho(202). Entretanto, antes mesmo da sua vigência, após decisão da Suprema
Corte determinando que os parâmetros da AB5, inclusive o teste ABC(203) se aplicavam às
demandas entre motoristas e as plataformas de transporte(204), a Uber e outras empresas do
setor reagiram e, com vultosos investimento em campanhas publicitárias contra a vigência
(201) LEME, Ana Carolina Reis Paes; COSTA, Anna Jéssica Araújo; MENEGUINI, Nancy Vidigal. Assembly Bill n. 5
da Califórnia e tratamento penal da contratação fraudulenta: uma tradição do Common Law norte-americano e
breves considerações de Direito Comparado em relação ao ordenamento brasileiro. In: ORSINI, Adriana Goulart
de Sena; CHAVES JÚNIOR, José Eduardo de Resende; MENEGHINI, Nancy Vidal (Orgs.). Trabalhadores plataformi-
zados e o acesso à justiça pela via dos direitos: regulações e lutas em países das Américas, Europa e Ásia voltadas
ao reconhecimento, redistribuição e representação. Belo Horizonte, Expert, 2021. p. 104. Além de conferir menos
privilégios aos trabalhadores, essa situação provoca, ainda, um desequilíbrio entre as grandes empresas que os
classicam incorretamente e os demais empregadores, visto que as primeiras, ao utilizarem denominações que
“mascaram” o contrato de trabalho, afastam a incidência da proteção do sistema trabalhista e impedindo, assim,
o cumprimento de obrigações legais, tais como pagamento de impostos sobre os salários, prêmios por remu-
neração dos trabalhadores, seguro social, seguro-desemprego e seguro de invalidez, para ns de obtenção de
vantagens no mercado. Essa prática, denominada dumping social e adotada frequentemente pelas empresas da
gig economy, comporta ser scalizada e criticada por órgãos judiciais e administrativos em todo o mundo, pois
promove a precarização das relações de trabalho, a concorrência desleal e a concentração de mercado.
(202) Cássio Casagrande chegou a armar que o caso Dynamex poderia representar a esperança contra o pesade-
lo uberista. (CASAGRANDE, Cássio. California dreamin: o caso Dynamex e a esperança contra o pesadelo uberista.
Jota, 24 jun. 2019. Disponível em:
california-dreamin-o-caso-dynamex-e-a-esperanca- contra-o-pesadelo-uberista-24062019?amp>. Acesso em: 27
jun. 2022).
(203) De acordo com o teste ABC, para um trabalhador ser considerado autônomo devem ser preenchidos três
requisitos cumulativos: estar o trabalhador livre do controle ou direção do empregador na execução do trabalho;
ser a atividade desempenhada pela empresa fora do curso normal dos negócios e fora do estabelecimento e
estar o trabalhador habitualmente envolvido em um comércio, ocupação, prossão ou negócio independente,
conforme RIBEIRO, Ailana; CUNHA, Raissa Lott Caldeira da. Um estudo sobre os direitos trabalhistas e sociais dos
trabalhadores enquadrados na Assembly Bill 5: desmisticando o discurso neoliberal da desregulamentação tra-
balhista nos EUA. In: ORSINI, Adriana Goulart de Sena; CHAVES JÚNIOR, José Eduardo de Resende; MENEGHINI,
Nancy Vidal (Orgs.). Trabalhadores plataformizados e o acesso à justiça pela via dos direitos: regulações e lutas em
países das Américas, Europa e Ásia voltadas ao reconhecimento, redistribuição e representação. Belo Horizonte,
Expert, 2021. p. 21.
(204) VENTURI, Thaís G. Pascoaloto. Os desaos da regulação e da resolução de conitos gerados pelas GIG Eco-
nomy Companies: o caso da Uber. Migalhas, 21 fev. 2022. Disponível em: .com.br/coluna/
direito-privado-no-common-law/360072/regulacao-e-resolucao-de- conitos-gerados-pelas-gig-economy-com-
panies>. Acesso em: 27 jun. 2022.
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da AB5(205), conseguiram submeter o tema da regulação trabalhista a um plebiscito estadual
e 58,6% dos votantes se pronunciaram a favor da chamada “Proposta 22”, que considerava
os motoristas como autônomos.
No entanto, em agosto de 2021, a Corte Superior do Estado da Califórnia declarou
a inconstitucionalidade da “Proposta 22”, o que reacendeu o debate voltado à vigência da lei
californiana que reconhece a condição de empregados aos motoristas plataformizados.(206)
A partir dessa decisão de inconstitucionalidade, a Suprema Corte da Califórnia vem rejeitan-
do pedidos de revisão apresentados pelas empresas de plataforma de transporte no sentido da
aplicação da “Proposição 22”, mantendo diversas ordens judiciais que determinaram à Uber
e à Lyft que procedam à reclassicar seus motoristas como empregados. (207)
A segunda decisão que merece ser destacada por ser originária de um país de tradição
neoliberal, a Inglaterra. Nela, o Juiz Anthony Snelson, em 28 de outubro de 2016, classi-
cou os motoristas como workers, o que correspondente a uma categoria de empregado
precarizado quando se considera o employee o emprego pleno(208). Nela, declarou que os
motoristas de plataforma não são autônomos. Letícia Righi observa:
A legislação do Reino Unido dene “worker” como aquele que possui direito
ao salário mínimo (6,50 libras por hora), 28 dias de férias, inclusão no plano
de pensão, um sistema de trabalho seguro, além do direito de ser tratado como
empregado, sem discriminações. O “employee” possui todos estes direitos, além
de um contrato de trabalho por escrito, licença maternidade, aviso prévio e
contribuição previdenciária.(209)
(205) Segundo o Brasil de Fato, empresas como Uber, Lyft, DoorDash e Instacart gastaram cerca de US$ 200 mi-
lhões — mais de R$ 1,1 bilhão — em campanha para aprovar a Proposta 22, que foi revertida na Corte Superior.
(GIOVANAZ, Daniel. Ações da Uber despencam após decisões judiciais favoráveis a motoristas nos EUA e no Ca-
nadá. Brasil de Fato, 23 ago. 2021. Disponível em:
-despencam-apos-decisoes-judiciais-favoraveis-a-motoristas-nos-eua-e-no-canada>. Acesso em: 27 jun. 2022).
(206) RIBEIRO, Ailana; CUNHA, Raissa Lott Caldeira da. Um estudo sobre os direitos trabalhistas e sociais dos traba-
lhadores enquadrados na Assembly Bill 5: desmisticando o discurso neoliberal da desregulamentação trabalhista
nos EUA. In: ORSINI, Adriana Goulart de Sena; CHAVES JÚNIOR, José Eduardo de Resende; MENEGHINI, Nancy
Vidal (Orgs.). Trabalhadores plataformizados e o acesso à justiça pela via dos direitos: regulações e lutas em países
das Américas, Europa e Ásia voltadas ao reconhecimento, redistribuição e representação. Belo Horizonte, Expert,
2021. p. 39.
(207) VENTURI, Thaís G. Pascoaloto. Os desaos da regulação e da resolução de conitos gerados pelas GIG Eco-
nomy Companies: o caso da Uber. Migalhas, 21 fev. 2022. Disponível em: .com.br/coluna/
direito-privado-no-common-law/360072/regulacao-e-resolucao-de- conitos-gerados-pelas-gig-economy-com-
panies>. Acesso em: 27 jun. 2022.
(208) CHAVES, Letícia Righi Rodrigues de Xavier. Informe sobre ações envolvendo a Uber no Direito Comparado.
In: LEME, Ana Carolina Reis Paes; RODRIGUES, Bruno Alves; CHAVES JÚNIOR, José Eduardo de Resende (Coords.).
Tecnologias disruptivas e a exploração do trabalho humano. São Paulo: LTr, 2017. p. 332.
(209) Idem.
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O magistrado inglês chegou a chamar de “ridícula” a tese defensiva da empresa que
dizia que Londres era um mosaico de mais de 30.000 pequenos empreendedores ligados
a uma plataforma comum. Ao nal, concluiu que o contrato formal não correspondia à
realidade, escondendo a verdadeira relação de trabalho dependente(210). A decisão mencio-
nada do Reino Unido foi conrmada pelo Tribunal Trabalhista do Reino Unido, em 10 de
novembro de 2017, tendo rejeitado a tese da Uber de que seus motoristas são prossionais
autônomos. João Leal Amado e Catarina Gomes Santos destacaram: “employee ou worker,
o certo é que, para o Tribunal do Trabalho de Londres, os motoristas da Uber não são self-
-employed independent contractors(211). Mais adiante, no capítulo 5, analisar-se-á o tema das
lutas dos motoristas na Califórnia e no Reino Unido por direitos trabalhistas junto com as
análises que serão feitas dos dados da pesquisa empírica realizada com os líderes sindicais
no Brasil.
Reconhecer que o mundo é global sempre foi preciso e o que acontece num país deve-
ria reetir no outro, em face a atuação global das empresas de plataformas. Nesse sentido,
estranhou-se que tais decisões estrangeiras tenham demorado para surtir efeitos na formação
da jurisprudência pátria.
A primeira sentença brasileira a reconhecer vínculo empregatício entre um motorista
e a Uber do Brasil Tecnologia LTDA, com todos os direitos à relação inerentes, inclusive
a assinatura da Carteira de Trabalho e Previdência Social — CTPS foi exarada em 13 de
fevereiro de 2017, pelo magistrado Márcio Toledo Gonçalves (TRT – 3a Região), na qual
ele destaca que a Uber é também (e acima de tudo) uma empresa de marketing. Destacou
o magistrado que a Uber instrumentaliza formas de propaganda buscando disfarçar sua
real condição de empregadora. Arma que a empresa investe, na área de marketing, em
empregados cuja relação é formalizada, com salários altíssimos, para atingir seu verdadeiro
propósito, qual seja, o de criar um véu de ignorância para disfarçar sua “tentativa agressiva
de maximização de lucros por meio da precarização do trabalho humano”. Prossegue o ma-
gistrado destacando que a UBER dispõe de técnicas de propaganda com apelo emocional e
manipulação de afetos, falseando a realidade para conquistar conança e credibilidade.(212)
(210) MENEZES, Bianca Caroline Bento. O ridículo mosaico de 30.000 Small Businesses: a Uber no Reino Unido
e as contribuições para classicação laboral dos motoristas de aplicativos. In: ORSINI, Adriana Goulart de Sena,
CHAVES JÚNIOR, José Eduardo de Resende; MENEGHINI, Nancy Vidigal. Trabalhadores plataformizados e o acesso à
justiça pela via dos direitos: regulações e lutas em países das Américas, Europa e Ásia voltadas ao reconhecimento,
redistribuição e representação. Belo Horizonte, Editora Expert, 2021. p. 321.
(211) AMADO, João Leal; SANTOS, Catarina Gomes. A Uber e os seus motoristas: mind the gap! In: LEME, Ana
Carolina Reis Paes; RODRIGUES, Bruno Alves; CHAVES JÚNIOR, José Eduardo de Resende (Coords.). Tecnologias
disruptivas e a exploração do trabalho humano. São Paulo: LTr, 2017. p. 334-348.
(212) No mesmo sentido do raciocínio construído no capítulo 1 do Livro da Máquina à Nuvem, o Juiz Márcio Toledo
Gonçalves considerou que “no mundo do marketing como uma plataforma de tecnologia, quando, em verdade,
no mundo dos fatos objetivamente considerados é uma empresa de transportes. Arma fazer parte do mundo
da economia de compartilhamento, apropriando-se de toda a carga positiva que essa corrente comportamental
e econômica possui, quando em sua essência é uma empresa privada com objetivo de lucro e intenso volume
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Na sentença, o juiz de 1o grau, segundo a prova dos autos, identicou a presença da
subordinação jurídica em três vieses: (i) clássico, (ii) objetivamente considerado no caso e
(iii) estrutural, entendendo que o autor estava sob direção no exercício de suas atividades,
realizava os objetivos da empresa por ela e estava inserido na dinâmica de um empreen-
dimento complexo. Destacou as alterações por que vem passando o Direito do Trabalho,
levando em consideração as atividades laborais que fogem ao enquadramento tradicional do
Direito do Trabalho e nem por isso deixam de ser tipicamente tuteláveis por ele.(213)
Ao analisar o requisito da não eventualidade o magistrado trouxe para o arcabouço
fático-probatório da lide depoimento de ex-coordenador de operações da Uber que delineia
o “modus operandi” dela no sentido de obrigar a continuidade da prestação de serviços a
partir dos seus critérios e diretrizes ao ainda impor a possibilidade da exclusão do motorista
da plataforma.(214)
Trata-se de decisão que resguarda a legislação brasileira, bem como os ns teleo-
lógicos do Direito do Trabalho e compreende a manutenção do conteúdo da relação de
emprego, apesar dos argumentos da Uber em sentido contrário.
Como salientado na introdução, em 24 de agosto de 2018, a 15a Turma do Tribunal
Regional do Trabalho da 2a Região, pela primeira vez no âmbito de um Tribunal Regional
Trabalhista Brasileiro, reconheceu o vínculo de emprego entre o motorista e a Uber. Em seu
voto, a Desembargadora relatora Beatriz de Lima Pereira entendeu que os meios telemáticos
de investimento”. (BRASIL. Tribunal Regional do Trabalho da 3a Região. 33a Vara do Trabalho de Belo Horizonte.
Sentença no processo n. 0011359-34-2016.5.03.0112. Juiz Márcio Toledo Gonçalves. Disponível em:
migalhas.com.br/arquivos/2017/2/art20170214-02.pdf>. Acesso em: 20 jun. 2022. p. 9-10.)
(213) Segundo o Juízo sentenciante: “Na hipótese dos autos, sob qualquer dos ângulos que se examine o qua-
dro fático da relação travada pelas partes e, sem qualquer dúvida, a subordinação, em sua matriz clássica, se faz
presente. O autor estava submisso a ordens sobre o modo de desenvolver a prestação dos serviços e a controles
contínuos. Além disso, estava sujeito à aplicação de sanções disciplinares caso incidisse em comportamentos
que a ré julgasse inadequados ou praticasse infrações das regras por ela estipuladas. Resta bastante evidente
que a reclamada exerce seu poder regulamentar ao impor inúmeros regramentos que, se desrespeitados, podem
ocasionar, inclusive, a perda do acesso ao aplicativo [...] O controle destas regras e dos padrões de atendimento
durante a prestação de serviços ocorre por meio das avaliações em forma de notas e das reclamações feitas pelos
consumidores do serviço. Aqui cabe um adendo: somente o avanço tecnológico da sociedade em rede foi capaz
de criar essa inédita técnica de vigilância da força de trabalho. Anal, já não é mais necessário o controle dentro
da fábrica, tampouco a subordinação a agentes especícos ou a uma jornada rígida. Muito mais ecaz e repressor
é o controle difuso, realizado por todos e por ninguém. Neste novo paradigma, os controladores, agora, estão
espalhados pela multidão de usuários e, ao mesmo tempo, se escondem em algoritmos que denem se o moto-
rista deve ou não ser punido, deve ou não ser ‘descartado’.” (BRASIL. Tribunal Regional do Trabalho da 3a Região.
33a Vara do Trabalho de Belo Horizonte. Sentença no processo n. 0011359-34-2016.5.03.0112. Juiz Márcio Toledo
Gonçalves. Disponível em: . Acesso em: 20
jun. 2022. p. 9-10).
(214) O depoimento do ex-coordenador de operações da Uber encontra-se no Anexo 2 da dissertação de LEME,
Ana Carolina Reis Paes. Da máquina à nuvem: caminhos para o acesso à justiça pela via de direitos dos motoristas
da Uber. Dissertação (Mestrado em Direito) – Programa de pós-graduação em Direito da Faculdade de Direito da
UFMG, 2018.
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de controle utilizados pela plataforma se equiparam para ns de subordinação jurídica, nos
termos do art. 6o da CLT(215). As partes peticionaram requerendo que o processo fosse retirado
de pauta, o que foi indeferido na própria sessão de julgamento. (216)
Um ano após, em 13 de agosto de 2019, nos autos do processo n. 0010806-
62.2017.5.03.0011, decidiu o Tribunal Regional do Trabalho da 3a Região (TRT3), por sua
11a Turma e pela 1a vez nessa corte, que o motorista da Uber é empregado. A redatora do
voto vencedor foi a juíza convocada Ana Maria Espi Cavalcante, que atuou em substituição
ao relator originário do recurso ordinário e proferiu seu voto oralmente na sessão, tendo
sido acompanhada pelos demais julgadores.(217)
A magistrada redatora considerou que, efetivamente, tratava-se de trabalho efetuado
por conta de outrem, com xação unilateral do preço do trabalho. Armou que a própria
precicação é um instrumento de controle bem sutil e ecaz. A ausência de liberdade na
estipulação do valor do trabalho prestado pelo próprio motorista de aplicativo o afasta da
condição de autônomo. Continuou dizendo que a relação fática existente não se aperfeiçoava
a nenhuma das guras contratuais civis e/ou comerciais.
No campo jurisdicional, entende-se acertada a corrente jurisprudencial que reconhece
que a relação é de emprego, porque as condições que exsurgem do contrato-realidade
existente entre as partes, consideradas em seu conjunto, apontam para a presença dos cinco
elementos fático-jurídicos conguradores da relação de emprego (arts. 2o, 3o e 6o da CLT).
Se há pontuação a partir da avaliação, não se trata de empresa de tecnologia que conecta
o passageiro ao motorista, mas sim de transporte. Há controle sobre a atividade exercida,
inclusive, de forma extremamente sosticada e, assim, o olhar do magistrado há de ser
ainda mais atento e capacitado. Explica-se: a avaliação do motorista que é realizada pelo
cliente da corrida, por exemplo. Nela o que se busca é assegurar um padrão de qualidade
(215) BRASIL. Tribunal Regional do Trabalho da 2a Região. Processo n. 1000123-89.2017.5.02.0038 (ROT). Recorrente:
Márcio Vieira Jacob. Recorrido: Uber do Brasil Tecnologia Ltda.; rela. Desa. Beatriz de Oliveira Lima. 2018. Dispo-
nível em: .
Acesso em: 08 ago. 2022.
(216) BRASIL. Tribunal Regional do Trabalho da 2a Região. Processo n. 1000123-89.2017.5.02.0038 (ROT). Recorrente:
Márcio Vieira Jacob. Recorrido: Uber do Brasil Tecnologia Ltda.; rela. Desa. Beatriz de Oliveira Lima. 2018. Dispo-
nível em: .
Acesso em: 08 ago. 2022.
(217) Reportagem veiculada em: ORSINI, Adriana Goulart de Sena; LEME, Ana Carolina Reis Paes. TRT3 reconhe-
ce que motorista da Uber é empregado. Jota, 16 ago. 2019. Disponível em:
-analise/artigos/trt3-reconhece-que-motorista-da-uber-e -empregado-16082019>. Acesso em: 27 jun. 2022. Esta
pesquisadora e sua orientadora zeram a tradução do inteiro teor do voto para o inglês e para o espanhol, a m
de possibilitar o amplo acesso ao conteúdo da decisão, disponível no blog de Rodrigo Carelli: ORSINI, Adriana
Goulart de Sena; LEME, Ana Carolina Reis Paes. Acórdão do TRT 3a Região — Vínculo de emprego de motorista com
a Uber — íntegra da decisão em português, inglês e espanhol. Disponível em:
com/2019/08/13/acordao-do-trt-3a-regiao-vinculo-de-emprego-de -motorista-com-a-uber-integra-da-decisao-
-em-portugues-ingles-e-espanhol/>. Acesso em: 1o ago. 2022.
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dos serviços no interesse da plataforma e não no interesse do motorista. Não há acesso pelo
motorista às avaliações individuais, mas tão somente à “média” de sua avaliação. É a empresa
que tem acesso a todas as avaliações, realizando a média que é apresentada ao motorista,
unilateralmente.
As avaliações são forma de expressão do controle da empresa sobre os motoristas e
sobre a forma em que o trabalho é realizado. Trata-se de controle “na sua máxima extensão”,
pois é um controle via algoritmo, com a participação, inclusive, dos clientes do serviço de
transporte, visando o aprimoramento da atividade econômica frente ao consumidor. Ao
apresentar a média avaliativa ao motorista, a empresa nada mais faz do que exercer o poder
empregatício, em sua expressão diretiva.(218)
Daniela Muradas e Eugênio Corassa problematizaram o tema da subordinação algo-
rítmica no Brasil, em artigo publicado no ano de 2017.(219) Apontaram que as plataformas
exercem uma “subordinação peculiar”, por meio de um sistema de controle inteligente, que
concilia os algoritmos com a gestão humana. Alertaram que o poder empregatício exercido
pelas plataformas “tende a um maior grau de concentração por controle de trabalhadores
em massa e por gestão algorítmica de dados coletados pelo aplicativo” e, inversamente, “os
trabalhadores têm pouco acesso às informações sobre o sistema e seu contato com a empresa
é bastante limitado”.(220)
Os pesquisadores Jean-Philippe Deranty e omas Corbin, da Macquarie Univer-
sity, ao reetirem acerca da abrangência da gestão algorítmica, deniram que a referida
gestão abrange as tarefas tradicionalmente desempenhadas por gestores humanos como a
contratação de empregados (da seleção de currículos à automação do processo de contrata-
ção), otimização do processo de trabalho (por meio do rastreamento dos movimentos dos
trabalhadores, por exemplo, rastreamento por GPS ou maximização de rotas no transporte
e logística), avaliação de trabalhadores (via sistemas de classicação), agendamento auto-
matizado de turnos, coordenação da demanda do cliente com prestadores de serviços, mo-
nitoramento do comportamento dos trabalhadores, incentivo algorítmico (por “empurrões”
e penalidades baseados em algoritmos).(221)
(218) Para saber mais sobre o Poder Empregatício, ver: DELGADO, Mauricio Godinho. O poder empregatício. São
Paulo: LTr, 1996.
(219) REIS, Daniela Muradas; CORASSA, Eugênio Delmaestro. Aplicativos de Transporte e Plataforma de Controle:
o mito da tecnologia disruptiva e a subordinação por algoritmo. In: LEME, Ana Carolina Reis Paes; RODRIGUES,
Bruno Alves; CHAVES JÚNIOR, José Eduardo de Resende (Coords.). Tecnologias disruptivas e a exploração do traba-
lho humano. São Paulo: LTr, 2017. p. 162-164.
(220) Idem.
(221) DERANTY, Jean-Philippe; CORBIN, Thomas. Articial Intelligence and work: a critical review of recent rese-
arch from the social sciences. 13 abr. 2022. Disponível em:
id=4083455>. Acesso em: 22 jun. 2022.
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Ao abordar o gerenciamento algorítmico das plataformas de transporte, Viviane Vidigal
concluiu que, no contexto do trabalho plataformizado, o uso da gamicação se alinha com
a estratégia capitalista de incorporar o tempo de vida como atividade produtiva ao sistema,
intensicando e estendendo o tempo de trabalho. A autora compreende a gestão gamicada
como “um jogo com regras de cartas marcadas para o capitalista vencer e o trabalhador per-
der” e alerta para o fato de que enquanto esse “jogo” continuar desregulado, os trabalhadores
continuarão trabalhando sem parar, desprotegidos e sendo “interrompidos” apenas por doen-
ças laborais e acidentes de trabalho, os quais não raras as vezes, ceifam suas vidas. “Game
over”: “sem vida, não há jogo”.(222)
Diante de tudo isso, pode-se armar que a Uber não é “mera plataforma intermediá-
ria”, nem um “agente de conexão e, muito menos, “somente uma empresa de tecnologia”.
A Uber oferece um serviço de transporte, inclusive, conforme o entendimento já citado do
Tribunal de Justiça Europeu:
[...] um serviço de intermediação como o que está em causa no processo principal [Uber Systems
Spain], que tem por objeto, através de uma aplicação para telefones inteligentes, estabelecer a liga-
ção, mediante remuneração, entre motoristas não prossionais que utilizam o seu próprio veículo e
pessoas que pretendam efetuar uma deslocação urbana, deve ser considerado indissociavelmente
ligado a um serviço de transporte e, por conseguinte, abrangido pela qualicação de «serviço no
domínio dos transportes», na aceção do art. 58.o, n. 1, TFUE.(223)
Mesmo que o motorista trabalhe para outro aplicativo, tal fato por si só não impos-
sibilita a conguração do vínculo empregatício, pois a exclusividade não está inserida no
rol dos elementos caracterizadores do emprego. Além disso, a exibilidade de horário não
elimina a subordinação, conforme o art. 62 da CLT. E, ainda, a recusa da oferta de trabalho
também não descaracteriza a subordinação, conforme disposição expressa do art. 452-A, § 3o
da CLT.
O fato de o motorista arcar com as despesas do veículo é uma das faces mais perver-
sas das condições impostas pela empresa para o trabalho em plataforma. Com tal cláusula,
a empesa transfere para o empregado o risco do negócio, pois, sendo uma empresa que for-
nece serviço de transporte, deveria ter veículos para tal ou remunerar por aluguel o veículo
de propriedade do motorista. O veículo é uma ferramenta para a prestação dos serviços de
transporte e para a realização do real objetivo social da plataforma de transporte, esteja ou
não previsto nos documentos formais. Ressalta-se que tanto a Uber, quanto a 99, são em-
presas que fornecem serviço de transporte, portanto, deveriam ter veículos para o serviço
que se propõem a oferecer em solo nacional ou, como dito, remunerar por aluguel o veículo
(222) VIDIGAL, Viviane. Game Over: a gestão gamicada do trabalho. MovimentAção, [S. l.], v. 8, n. 14, p. 44–64,
2021. DOI: 10.30612/mvt.v8i14.15018. Disponível em:
view/15018>. Acesso em: 16 jun. 2022.
(223) TRIBUNAL DE JUSTIÇA EUROPEU. Acórdão do Tribunal de Justiça Europeu no processo C434/15- ECLI:EU:C:2017:981.
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de propriedade do motorista. Não o fazem, apesar do veículo ser uma ferramenta para(224)
a prestação dos serviços de transporte e para a realização do real objetivo social das empre-
sas. A previsão em documentos formais não é elemento disruptivo para a análise no ramo
justrabalhista, pois a realidade da relação sempre prevaleceu em face de documentos que a
desvirtuam, inteligência do art. 9o da CLT.
Seja na “era da máquina”, seja na “era da nuvem(225), a incidência do Direito do
Trabalho nas relações empregatícias sempre foi e é medida de acesso à justiça e a direitos
pelo ser humano que trabalha. Anal, o trabalho não é uma mercadoria e a organização
econômica deve se subordinar ao princípio de justiça social (Declaração de Filadéla de
1944)(226). As decisões que reconhecem o vínculo de emprego entre o trabalhador plata-
formizado e a plataforma de transporte estão incluídas no rol dos precedentes de garantia
do acesso à Justiça pela via dos Direitos sociais trabalhistas aos motoristas uberizados.(227)
Na esteira de decisões históricas concretizadoras dos direitos sociais dos motoristas
plataformizados é a decisão, de 06 de abril de 2022, da 3a Turma do TST que enquadrou
juridicamente um motorista plataformizado como empregado da Uber, cujo acórdão foi
publicado em 11 de abril de 2022.(228) Trata-se do 1o acórdão do Tribunal Superior do Tra-
balho reconhecendo o vínculo de emprego entre um motorista e a plataforma de transporte
Uber.
O relator, Ministro Mauricio Godinho Delgado, destacou que, no Direito brasileiro,
existe sedimentada presunção de ser empregatício o vínculo jurídico formado, regido pela
CF/1988 (art. 7o) e pela CLT, desde que seja incontroversa a prestação de serviços por uma
pessoa natural a alguém (Súmula n. 212, TST). Armou que essa presunção jurídica rela-
tiva é clássica ao Direito do Trabalho, em geral, resultando de dois fatores historicamente
incontestáveis: “a circunstância de ser a relação de emprego a regra geral de conexão dos
trabalhadores ao sistema socioeconômico capitalista” e a “circunstância de a relação de em-
prego, desde o surgimento do Direito do Trabalho, ter se tornado a fórmula mais favorável
e protegida de inserção da pessoa humana trabalhadora na competitiva e excludente economia
contemporânea”. Explicou:
(224) A construção doutrinária e jurisprudencial sobre os termos legais “para” e “pela” prestação de serviços, cons-
truída na doutrina justrabalhista nacional durante anos, bem se aplica à temática.
(225) LEME, Ana Carolina Paes. Da máquina à nuvem: caminhos para o acesso à justiça pela via de direitos dos
motoristas da Uber. São Paulo: LTr, 2019. p. 165.
(226) ORGANIZAÇÃO INTERNACIONAL DO TRABALHO. Constituição da Organização Internacional do Trabalho
(OIT) e seu anexo. (Declaração de Filadéla). 1944. Disponível em:
--americas/---ro-lima/---ilo-brasilia/documents/genericdocument/wcms_336957.pdf>. Acesso em: 11 ago. 2022.
(227) Como se armou em: ORSINI, Adriana Goulart de Sena; LEME, Ana Carolina Reis Paes. TRT3 reconhece que
motorista da Uber é empregado. Jota, 16 ago. 2019. Disponível em:
artigos/trt3-reconhece-que-motorista-da-uber-e -empregado-16082019>. Acesso em: 27 jun. 2022.
(228) BRASIL. Tribunal Superior do Trabalho. Processo n. 100353-02.2017.5.01.0066 (ROT). Recorrente: Elias do Nas-
cimento Santos. Recorrido: Uber do Brasil Tecnologia Ltda.; rel. Ministro Mauricio Godinho Delgado. 2022.
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No Brasil, desponta a singularidade de esta antiga presunção jurídica ter sido incorporada, de certo
modo, até mesmo pela Constituição da República de 1988, ao reconhecer, no vínculo empregatício,
um dos principais e mais ecazes instrumentos de realização de notável bloco de seus princípios
cardeais, tais como o da dignidade do ser humano, o da centralidade da pessoa humana na ordem
jurídica e na vida socioeconômica, o da valorização do trabalho e do emprego, o da inviolabilidade
física e psíquica da pessoa humana, o da igualdade em sentido substancial, o da justiça social, o
do bem-estar individual e social, o da segurança e o da subordinação da propriedade à sua função
socioambiental.(229)
Enfatizou, ainda, que “a Constituição percebeu que não se criou, na História do
Capitalismo, nessa direção inclusiva, fórmula tão ecaz, larga, abrangente e democrática
quanto a estruturada na relação de emprego” e do texto constitucional emerge “clara a pre-
sunção também constitucional em favor do vínculo empregatício no contexto de existência
de incontroversa prestação de trabalho na vida social e econômica”. Compõem o arcabouço
legal brasileiro no reconhecimento do vínculo de emprego entre motoristas plataformi-
zados e as empresas de plataforma de transporte, os seguintes preceitos constitucionais o
preâmbulo da CF/1988; art. 1o, III e IV; art. 3o, I, II, III e IV; art. 5o, caput; art. 6o; art. 7o,
caput e seus incisos e parágrafo único; arts. 8o até 11; art. 170, caput e incisos III, VII e
VIII; art. 193.
Nestes autos, a 3a Turma do Turma do Tribunal Superior do Trabalho decidiu que a
ordem jurídica não permite a contratação do trabalho por pessoa natural, “com os intensos
elementos da relação de emprego, sem a incidência do manto mínimo assecuratório da dig-
nidade básica do ser humano nessa seara da vida individual e socioeconômica”. Destacou
que o fenômeno sociojurídico da relação empregatícia emerge quando reunidos os seus cin-
co elementos fático-jurídicos constitutivos e, assim, considerou presente, no caso concreto,
a prestação de trabalho por pessoa física a outrem, com pessoalidade, não eventualidade,
onerosidade e sob subordinação.(230)
Indubitável que referido precedente é de extrema relevância para o acesso à jurisdição
dos motoristas plataformizados pela via dos direitos trabalhistas, pois o quadro de entendi-
mento único ou do Tribunal Superior do Trabalho não mais se apresenta, nem é a realidade
jurisprudencial brasileira Pesquisa empírica(231) desenvolvida pela Clínica de Direito do
Trabalho da Universidade Federal do Paraná revelou, por meio de cálculos matemáticos e
de forma automatizada ao identicar precedentes similares com base na rede de citações
entre processos, que, entre as decisões mais centrais, três emanadas do TST são citadas
(229) BRASIL. Tribunal Superior do Trabalho. Processo n. 100353-02.2017.5.01.0066 (ROT). Recorrente: Elias do Nas-
cimento Santos. Recorrido: Uber do Brasil Tecnologia Ltda.; rel. Min. Mauricio Godinho Delgado. 2022.
(230) Trata-se de um processo individual, passível de reanálise pelo Supremo Tribunal Federal, caso seja interposto
e admitido recurso extraordinário. Segundo consulta processual realizada em 30.07.2022, foram admitidos os
embargos de declaração opostos por Uber do Brasil Ltda. que ainda se encontram pendente de julgamento.
(231) MACHADO, Sidnei; ZANONI, Alexandre Pilan (Orgs.). O trabalho controlado por plataformas digitais: dimen-
sões, pers e direitos. Curitiba: UFPR, Clínica de Direito do Trabalho, 2022. E-book. p. 180-188.
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como precedente com maior recorrência nas decisões existentes nos Tribunais Regionais
brasileiros no período de 2017 a 2021, pesquisadas.
Segundo Sidnei Machado e Alexandre Pilan Zanoni, organizadores da supracitada
pesquisa, a leitura dos grácos, quadros e diagramas(232) permite concluir que os julga-
dos de tribunais de segunda instância, para afastar a relação de emprego, fazem referência
de forma destacada a três processos julgados no TST (RR-1000123-89.2017.5.02.0038;
AIRR-0011199-47.2017.5.03.0185; AIRR0010575-88.2019.5.03.0003), concluindo que
estes precedentes(233) geraram um impacto importante em decisões de instâncias inferiores,
como demonstram as redes de citações da pesquisa empírica.(234)
Nesse panorama, rearma-se a importância do precedente citado que reconheceu um
motorista como empregado, diante do potencial impacto que poderá surtir nos próximos
julgamentos, seja do próprio TST, seja dos Tribunais Regionais, seja da primeira instância
da Justiça do Trabalho.
Acerca das propostas legislativas em trâmite, a pesquisa paranaense fez um diag-
nóstico e identicou que os projetos tentam responder demandas de trabalhador ou das
empresas. Captou entre 2019/2021 os movimentos de regulação no parlamento brasileiro,
a partir dos projetos apresentados. Segundo o levantamento realizado nas bases de dados
dos portais da Câmara dos Deputados e do Senado Federal brasileiros foram identicadas,
entre 2019 e julho de 2021, um total de 38 projetos de lei em tramitação que se relacionam a
condições de trabalho de trabalhadores em plataformas digitais, incluindo motoristas, mo-
toboys e trabalhadores de plataformas em geral. Nos dados, a pesquisa identica que ainda
não se concretizou uma arena de debate entre os setores coletivos interessados e, menos
ainda, se ampliada para outros e diversos setores.(235)
Da análise do conteúdo desses projetos foi constatado, na pesquisa citada, que “eles
não propõem modelos muito denidos para regular o trabalho”. Em geral, “os projetos
repercutem em grande medida os debates da jurisprudência e as pautas das mobilizações
(232) MACHADO, Sidnei; ZANONI, Alexandre Pilan (Orgs.). O trabalho controlado por plataformas digitais: dimen-
sões, pers e direitos. Curitiba: UFPR, Clínica de Direito do Trabalho, 2022. E-book. p. 188-191.
(233) Até o nal do ano de 2021, no âmbito do Tribunal Superior do Trabalho (TST) existiam cinco decisões, todas
relacionadas à empresa Uber. A primeira decisão ocorreu em janeiro de 2019, seguida de outras duas, em feve-
reiro e setembro de 2020, e mais duas em fevereiro e maio de 2021, em quatro diferentes turmas da Corte. Essas
quatro decisões, com argumentos semelhantes, não reconheceram o vínculo de emprego entre motorista e Uber.
(234) “A leitura dos grafos permite concluir que os julgados de tribunais de segunda instância, para afastar a
relação de emprego, fazem referência a três processos julgados no TST, que aparecem ranqueados como aque-
les que mais receberam citações (indegree): RR-1000123-89.2017.5.02.0038 (BRASIL, TST, 2020c), AIRR-0011199-
47.2017.5.03.0185 (BRASIL, TST, 2019b) e AIRR-0010575-88.2019.5.03.0003 (BRASIL, TST, 2020)”. (MACHADO, Sid-
nei; ZANONI, Alexandre Pilan (Orgs.). O trabalho controlado por plataformas digitais: dimensões, pers e direitos.
Curitiba: UFPR, Clínica de Direito do Trabalho, 2022. E-book. p. 188).
(235) Vide Quadro 2, Apêndice D. In: MACHADO, Sidnei; ZANONI, Alexandre Pilan (Orgs.). O trabalho controlado por
plataformas digitais: dimensões, pers e direitos. Curitiba: UFPR, Clínica de Direito do Trabalho, 2022. E-book. p. 174.
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de trabalhadores de aplicativos”. Foi observado, também, que os projetos são “iniciativas
isoladas de deputados e senadores, sem um diálogo direto com as organizações e os tra-
balhadores”. Nos projetos foi possível identicar três vieses nesses projetos: 1) esforço
protetivo de garantir direitos mínimos de saúde, renda e algumas condições de trabalho,
sem uma preocupação de denir a existência de relação de emprego; 2) proposta de uma
denição de status de empregado; 3) proposta que claramente busca afastar o reconheci-
mento da relação de emprego e instituir direitos básicos. Também foram identicados que
os temas e pautas mais recorrentes nesses projetos são propostas de regulação para seguro de
vida e normas de saúde e segurança no trabalho, que se ampliaram a partir da crise sanitária
do vírus SARS-CoV-2.(236)
Do outro lado, do lado do mercado, percebe-se a tentativa das empresas de defender
o encaminhamento de uma proposta de lei que contemple um modelo especial para pla-
taformas digitais, desvinculado do padrão de contrato de trabalho regido pela CLT, com
evidente intuito de afastar a incidência do vínculo jurídico da relação de emprego. A plata-
forma iFood defendeu a criação de um novo regime trabalhista no Brasil, o do “trabalhador
sob demanda”, para regulamentação das atividades de trabalhadores de plataformas digi-
tais. Segundo a empresa noticiou, o iFood mantém conversas com o governo, com outras
plataformas digitais(237), com trabalhadores e parceiros comerciais a respeito de um “futuro
marco regulatório”. Veiculou o Jornal “Folha de São Paulo”, em 22 de julho de 2021, artigo
de opinião de autoria do CEO do iFood, Fabricio Bloisi:
A discussão sobre o futuro do trabalho cai, muitas vezes, na improdutiva po-
larização que reconhece apenas dois caminhos. De um lado, o modelo tra-
dicional de emprego, com controle e subordinação. Do outro, a ausência de
qualquer regulação, pautada no imediatismo e na liberdade irrestrita. Tirar os
(236) Sidnei Machado e Alexandre Pilan Zanoni, organizadores da pesquisa realizada pela Clínica de Direito do
Trabalho da UFPR informam que há um reduzido número de propostas legislativas com a previsão de denição
em lei de relação de emprego para os trabalhadores em plataformas: o PL n. 5069/2019, do deputado Gervásio
Maia, com proposta de vínculo de emprego para motoristas de aplicativos e dispositivos a serem incluídos na
CLT e o projeto do deputado Márcio Jerry (PL n. 3577/2021), que propõe a denição de relação de emprego
para entregadores pelo regime da CLT. Há o projeto de lei do deputado Henrique Fontana (PL n. 4172/2021),
apresentado em julho de 2020, que cria regime de contrato de trabalho em plataformas digitais de transporte
individual privado ou de entrega de mercadorias. E o projeto de lei apresentado pela deputada Gleisi Homann
(PL n. 2355/2021), de junho de 2021, que, sem denir o status da relação de emprego, pretende instituir direitos
básicos, como remuneração mínima e seguro de acidentes de trabalho. (MACHADO, Sidnei; ZANONI, Alexandre
Pilan (Orgs.). O trabalho controlado por plataformas digitais: dimensões, pers e direitos. Curitiba: UFPR, Clínica de
Direito do Trabalho, 2022. E-book. p. 174).
(237) O CEO do iFood declarou que estão unidos com outras plataformas “digitais” a m de “caminharem juntas
para proteger esses trabalhadores”. (BLOISI, Fabricio. Novas regras para novas relações de trabalho. Folha de S.
Paulo, 22 jun. 2021. Disponível em:
-relacoes-de-trabalho.shtml>. Acesso em: 24 jul. 2022).
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trabalhadores de plataformas digitais do limbo regulatório em que se encon -
tram é o próximo passo que o Brasil precisa dar, com urgência, para garantir
segurança, proteção social e ganhos mínimos aos 22 milhões de brasileiros que
prestam serviços com a intermediação de aplicativos móveis.(238)
Vale lembrar que a Lei n.13.467/2017 já criou um regime de trabalho sob demanda,
na forma da modalidade do contrato de trabalho intermitente (art. 452-A), como moda-
lidade de regime de emprego, prevendo o legislador, inclusive, que o direito assegurado ao
trabalhador de recusar chamados para o trabalho não afasta a subordinação legal.(239)
De tudo o que foi exposto e destacado, percebe-se que não há um caminho único,
sequer escolhido, nesse dado momento histórico no campo das relações entre motoristas
e plataformas. Arma-se, com segurança cientíca que o Direito do Trabalho brasileiro
tem condições de realizar o devido enquadramento jurídico do modelo de negócio advin-
do da “uberização”. O Direito Laboral tem arcabouço legal e jurisprudencial no território
brasileiro para os vários e diversos aspectos que advém da relação entre o motorista e as
plataformas. O Direito do Trabalho construiu e continua a construir a sempre necessária
barreira de proteção ao ser humano trabalhador e à sua dignidade, com incidência integral
do arcabouço protetivo, seja nacional, seja internacional.
No caso dos motoristas plataformizados, forçoso reconhecer que o espaço jurídico-
-laboral está em disputa, como se viu acima na manifestação do CEO da plataforma iFood,
as plataformas estão unidas e atuam com interesses se não idênticos, com certeza, interesses
similares e conexos. Assim, a academia tem papel de fundamental importância para desven-
dar os bloqueios ao acesso à justiça pela via dos direitos trabalhistas dos motoristas plata-
formizados, bem como os caminhos protetivos ao trabalho e a pessoa humana que trabalha.
Veja-se o caso do bloqueio via manipulação da jurisprudência. Foi a academia que
descobriu por meio de pesquisa cientíca a existência de um bloqueio de acesso a justiça via
direitos trabalhistas. Identicado o bloqueio, a academia fez o seu papel com a publicação
de artigo explicando e expondo a manipulação da jurisprudência por meio de estratégia
ilegal e antiética de uma das plataformas.
A publicação de artigos e de trabalhos de forma ampliada no campo cientíco nacional
tornou possível demonstrar a utilização indevida da conciliação direcionada a impedir a
formação de jurisprudência contrária aos interesses empresariais. É que a nalização do
(238) BLOISI, Fabricio. Novas regras para novas relações de trabalho. Folha de S. Paulo, 22 jun. 2021. Disponível em:
.
Acesso em: 22 jun. 2022.
(239) Art. 452-A. O contrato de trabalho intermitente deve ser celebrado por escrito e deve conter especicamente
o valor da hora de trabalho, que não pode ser inferior ao valor horário do salário mínimo ou àquele devido aos
demais empregados do estabelecimento que exerçam a mesma função em contrato intermitente ou não. [...] § 3o
A recusa da oferta não descaracteriza a subordinação para ns do contrato de trabalho intermitente.
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processo por acordo acabava por obstruir o debate jurisprudencial, com forte repercussão
também para o público em geral, em especial os motoristas e as suas entidades sindicais.
O desvendamento da estratégia e o empenho para retirar a venda da Justiça am de que
enxergasse a sua própria manipulação é o tema do tópico a seguir.
2.3.2. Desvendando Têmis: contribuição da academia para uma
jurisprudência que não se deixe manipular
A Deusa Têmis é gurada, em suas versões modernas mais comuns, segurando a
balança da justiça e sopesando o conito judicializado, tendo uma venda sobre os olhos. Os
olhos cobertos buscam expressar a imparcialidade de tal gura mítica, a justiça, que deve
julgar o conito, aplicando a lei geral e abstrata, sem olhar a quem se refere, a m de fazer
jus à noção moderna de igualdade perante a lei. A Justiça pré-moderna jamais foi repre-
sentada com vendas, pois a essência do julgar até a modernidade estava na compreensão
da singularidade de cada contexto a ser apreciado com equidade.(240) A nova ideia de uma
justiça cega, lha do racionalismo moderno, porém, acaba por produzir uma visão distorcida
de que o ideal de julgamento deve ignorar, cegamente, o contexto das relações sociais e do
espaço histórico-geográco no qual a “Justiça” encontra-se inserida. Em outras palavras,
trata-se de idealizar uma justiça que desconsidera as determinantes do espaço construído
à sua volta, a interferência no território e a eventual manipulação ideológica dos próprios
afetados. Trata-se de pensar uma Justiça que não vê a si mesma inserida em processos de
poder e manipulação, como se estivesse acima do bem e do mal, próxima a um poder divino,
ou até mesmo dele imbuída. A Justiça é realizada por seres humanos cuja formação inicial
e complementar junto às Escolas Judiciais é dever e direito dos jurisdicionados, para que de
forma contínua e crítica possam bem realizar o mister para o qual foram empossados. (241)
Sem se pretender um anacrônico retorno ao momento jurídico pré-moderno, parece,
no entanto, que os tempos de anormalidade em que vivemos não permitem mais chancelar
uma Justiça cega na modernidade como uma virtude.
Fraser ensina que “a transnacionalização da produção, nanças globalizadas em mercado
e regimes de investimentos neoliberais” faz com que as reivindicações por redistribuição
frequentemente invadam “limites de gramáticas centradas no estado e fóruns deliberativos”.
Na “justiça anormal”, conceito de Nancy Fraser que será explicitado no capítulo seguinte,
diante das “migrações transnacionais e o uxo global da mídia”, surgem as “reclamações
por reconhecimento de pessoas outrora distantes que assumem uma nova proximidade,
desestabilizando horizontes de valores culturais previamente desprezados”. Assim, “em uma
(240) FONSECA, Ricardo Marcelo. A Justiça pelas imagens: história e iconograa. Palestra proferida em 2017 no
Instituto dos Advogados do Paraná. Disponível em https://www.youtube.com/watch?v=Hs2jH-Sz_lU>. Acesso
em: 02 maio 2022.
(241) Relembre-se que a chamada Reforma do Judiciário — EC n. 45/1999 incluiu as Escolas Judiciais em todos os
Tribunais do país, além de orientar a contínua formação dos magistrados brasileiros.
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era de contestação da hegemonia das superpotências, da governança global, e de políticas
transnacionais, clamores por representação põem à prova cada vez mais o quadro anterior
do estado territorial moderno”(242). Nessa situação de desnormalização, Fraser mostra que
“reclamações de justiça se deparam imediatamente com reclamações contrárias, fundamen-
tadas em bases não compartilhadas”.(243)
Incumbe ao Poder Judiciário a realização da Justiça, mas não por meio de uma lente cuja
paisagem é inerte, em um monóculo de plástico como uma relíquia. A justiça a ser realizada
deve o ser com instrumentos ampliados e modernos, permitindo que meios, mensagens e
dispositivos distintos, interajam, de forma a compor um todo a ser analisado, dinâmico e
hipercomplexo que está aí e não pode ser olvidado. Deve compreender que manipulações
da realidade a ser julgada e da realidade que se julga podem acontecer, sendo dever de quem
julga estar capacitado para tal mister. Se ao Poder Judiciário incumbe a realização de Justiça,
sendo sua precípua função, deve estar atento a impedir as variadas formas de injustiça, não
relativizando a realidade que salta aos olhos, nem simplicando o que é hipercomplexo, mas
sim buscando compreender os fenômenos e relações sociais que estão sob seu manto para
realizar a justiça e impedir injustiças.
Importante pontuar que nos ns do século XV, as primeiras imagens que mostraram
a justiça vendada o zeram com intenção satírica, pois uma justiça cega só poderia ser uma
brincadeira, ou até mesmo, algo insano. Assim, aparece na célebre obra do jurista germâ-
nico Sebastian Brant, “A Nau dos Insensatos”, de 1494(244), uma imagem da justiça sendo
vendada por um louco.(245)
Nos tempos de anormalidade, atuais, um exemplo paradigmático de como os olhos
da justiça têm sido vendados(246) é aquele que se consubstancia na distorção estrategica-
mente produzida pelas plataformas digitais sobre a denição jurisprudencial da natureza
jurídica da relação de trabalho dos motoristas por plataformas.
A pesquisa de campo realizada durante o mestrado teve como objetivo mapear as
ações trabalhistas propostas por motoristas uberizados no território nacional brasileiro. Foram
encontradas 135 demandas individuais de motoristas em face da Uber do Brasil, com pedido
de reconhecimento de direitos trabalhistas, em curso na Justiça do Trabalho. Como o Poder
(242) FRASER, Nancy. Justiça anormal. Tradução de Norman Michael Rodi com coordenação da tradução por Eduar-
do Carlos Bianca Bittar. Revista da Faculdade de Direito, Universidade de São Paulo, [S. l.], v. 108, p. 739-768, 2013.
Disponível em: . Acesso em: 24 jun. 2022
(243) Idem.
(244) BRANT, Sebastian. A nau dos insensatos. Trad. Karin Volobuef. São Paulo: Octavo, 2010.
(245) FONSECA, Ricardo Marcelo. A Justiça pelas Imagens: história e iconograa. Palestra proferida em 2017 no
Instituto dos Advogados do Paraná. Disponível em https://www.youtube.com/watch?v=Hs2jH-Sz_lU>. Acesso
em: 2 maio 2022.
(246) In casu, certamente mais por argúcia e compreensão alargada do que está em “jogo” do que por loucura.
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Judiciário dialoga por meio de suas decisões judiciais fundamentadas formando a jurispru-
dência, foi surpreendente um dos dados exposto na pesquisa: na época, das 41 sentenças
proferidas, 4 foram de procedência e 37 foram de improcedência, ou seja, 90,3% das decisões
de primeira instância negavam o vínculo ao motorista.(247)
De modo a garantir dados para uma análise mais na, foi ampliada a base de pesquisa,
sendo consultadas manualmente, em cada Vara, as informações referentes aos processos já
arquivados no TRT3. Isso tornou possível identicar, só em Belo Horizonte, 12 processos
em que haviam sido realizados acordos (peticionadas na segunda instância, quando o pro-
cesso se encontrava pendente de julgamento de recurso ordinário) e estes acordos foram
homologados(248), sendo que, destes 12 processos, 11 já estavam arquivados e, por isso, não
apareciam na Certidão Eletrônica de Ações Trabalhistas (CEAT).
A somatória dos dados obtidos por meio da CEAT com aqueles levantados na con-
sulta de processos arquivados revelou um número inesperado: de 18 reclamações trabalhistas
arquivadas no 2o grau do TRT, no período de 20.01.2016 e 03.07.2018, em pelo menos 11
delas, foi identicado acordo homologado entre as partes, realizado com o processo já em
grau de recurso. Em sete desses processos não se pôde conrmar os termos acordados, em
decorrência de sigilo nos documentos respectivos. Aos onze processos arquivados somou-se
o único processo em curso constante da CEAT, que mostrava acordo homologado, chegou-
-se ao total de 12 processos, em que foi pactuado acordo. Ao cruzar os dados percebeu-se
que algo similar estava acontecendo àquele momento no Tribunal do Trabalho de Minas
Gerais e que a academia e a Justiça ainda não tinham se dado conta. Havia 14 processos
julgados no TRT, todos com acórdãos negando o vínculo de emprego e existiam, pelo me-
nos, 12 processos em que foi celebrado acordo em grau de recurso. Ou seja, quase o mesmo
número de processos.
A análise individualizada desses processos mostra que os acordos realizados se
concentraram em processos distribuídos à 1a, 7a e 11a Turmas do TRT da 3a Região, cuja
composição pode ser avaliada como de maior possibilidade de uma decisão de reconheci-
mento do vínculo de emprego. Nos processos distribuídos às demais turmas (2a, 3a, 5a, 6a,
9a e 10a) do TRT3, os acórdãos proferidos negaram o vínculo de emprego e não houve a
celebração de acordo. Esses elementos evidenciaram o que se denominou de estratégia de
litigância manipulativa. A ausência de jurisprudência contrária aos interesses empresariais
(247) LEME, Ana Carolina Paes. Da máquina à nuvem: caminhos para o acesso à justiça pela via de direitos dos
motoristas da Uber. São Paulo: LTr, 2019, p. 112-114.
(248) A pesquisa sobre as ações trabalhistas arquivadas foi feita por meio da ferramenta “consulta de processos de
terceiros” no PJe. In: LEME, Ana Carolina Paes. Da máquina à nuvem: caminhos para o acesso à justiça pela via de
direitos dos motoristas da Uber. São Paulo: LTr, 2019. p. 112-114
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em 2o grau se dava não em decorrência de uma opinião interpretativa uníssona no TRT3
quanto à tese da inexistência de vínculo de emprego entre a Uber e os motoristas, mas sim
porque a possibilidade de decisões divergentes era estrategicamente obstruída via conci-
liação seletiva, baseada nas pessoas dos julgadores, o que também se evidencia como uma
prática discriminatória ao dever legal de jurisdição desses magistrados “selecionados” pela
empresa via predição.(249)
O resultado da obstrução acima demonstrada foi a ausência de teses distintas na
jurisprudência, entre os argumentos daqueles que entendiam inexistir o vínculo com os
argumentos daqueles que entendiam existir, cerceando o legítimo diálogo jurídico necessário
ao amadurecimento da jurisprudência. Assim, tentaram inibir a formação de convencimen-
to de juízes e de outros atores sociais quanto à natureza jurídica da relação de trabalho dos
motoristas em face às plataformas de transporte.
Com o desvendamento da estratégia de litigância manipulativa utilizada pelas em-
presas de plataformas digitais de transporte, a pesquisa acadêmica contribuiu para que o
Poder Judiciário pudesse compreender, de forma mais elastecida, a conduta empresarial
efetivada. Contribuiu, também, para a formação de entendimentos diversos acerca da exis-
tência ou não de vínculo de emprego dos motoristas plataformizados. Observou-se que
duas turmas do Tribunal Regional do Trabalho da 3a Região – TRT3 (a 10a e a 11a), em face
da estratégia empresarial — conciliações celebradas pelas empresas Uber do Brasil Ltda.
e 99 Tecnologia Ltda. — passaram a não homologar os acordos protocolados e a proferir
acórdãos reconhecendo o vínculo de emprego com os motoristas. (250)
Revelou-se, portanto, um problema do acesso à justiça, na medida em que a litigân-
cia manipulativa (por meio da tática da conciliação seletiva), afetou a formação plural da
jurisprudência, evidenciando um poder desigual das partes ao acesso à justiça. É que uma
das partes — empresas — tem enorme poder de inuência sobre o processo de formação
de precedentes judiciais. Trata-se de um problema na própria estrutura da jurisdição, como
arena democrática constitucional para a conformação dos direitos.
Na arena jurisdicional deve haver e ser garantida a igualdade de tratamento de liti-
gantes; deve ser um espaço onde a não isonomia socioeconômica entre as partes litigantes
não se transforme em um tratamento jurisdicional desigual até pela igualdade cega e no
qual a circulação e confrontação de argumentos possa ser realizada de forma isonômica e
não cerceada ou amplicada a partir do poderio econômico de uma das partes.
(249) ORSINI, Adriana Goulart de Sena; LEME, Ana Carolina Reis Paes. Litigância manipulativa da jurisprudência e
plataformas digitais de transporte: levantando o véu do procedimento conciliatório estratégico. Revista eletrônica
[do] Tribunal Regional do Trabalho da 9a Região, v. 10, n. 95, p. 24-44, jan. 2021. Disponível em:
tst.jus.br/handle/20.500.12178/182394>. Acesso em: 18 abr. 2022.
(250) Idem.
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A jurisdição, na condição de instância democrática de participação em contraditório
na tomada de decisão pelo Estado-juiz, tem nas condições processualmente previstas de
forma igualitária entre os contendores, elementos centrais de sua legitimidade, sem as quais
não se pode falar de “devido processo legal”.
No dizer de Marinoni e Mitidiero, “o processo só pode ser considerado justo se as
partes dispõem das mesmas oportunidades e dos mesmos meios para dele participar. Vale
dizer: se dispõem das mesmas armas.”(251) Isto deve incluir não só a igualdade de oportuni-
dades e tratamento dos litigantes no processo, “mas também a igualdade de acesso à justiça e
aos procedimentos e às técnicas processuais”.(252) Em face disso, se na sociedade há evidente
desigualdade de poder e recursos entre os atores sociais, o que por si já afeta a paridade de par-
ticipação, essa disparidade precisa ser neutralizada no âmbito do processo, sob pena de estar
a jurisdição perpetrando e perpetuando a disparidade participativa existente na base social.
Mais grave é a situação quando os próprios órgãos judiciais são englobados na desi-
gual capacidade de inuenciar e mesmo distorcer a formação dos precedentes a respeito de
tema de interesse de uma grande corporação, como os processos de discussão de vínculo
empregatício da Uber e da 99. Isso implica o dever de atuação dos órgãos jurisdicionais em
impedir qualquer recurso ou atividade que vise desequilibrar (ainda mais) a posição, inclu-
sive, processual da parte hipossuciente. Deve ser também assegurado ao Poder Judiciário
a armação de sua jurisprudência, de forma livre, coerente e fundamentada (art. 926 do
CPC). Assim, à Têmis, desvendada, deve impedir toda e qualquer manipulação a que possa
ser submetida, garantindo o devido processo legal.
Pode ser armado que a pesquisa realizada no mestrado contribuiu para que fos-
se compreendido o que estava acontecendo nos Tribunais do Trabalho brasileiros naquele
momento histórico e para o futuro, em face aos dados demonstrados. Tanto que, no dia 20
de abril de 2021, a 11a Câmara do TRT 15, com sede em Campinas-SP, recuperou dados
da pesquisa e, ao decidir recurso em processo ajuizado por um motorista em face da Uber,
os desembargadores consideraram que “a estratégia da reclamada, de celebrar acordo às
vésperas da sessão de julgamento, confere-lhe vantagem desproporcional” porque a fraude
trabalhista, que envolve uma multidão de trabalhadores e é propositadamente camuada
pela aparente uniformidade jurisprudencial, disfarça a existência de dissidência de entendi-
mento quanto à matéria, “aparentando que a jurisprudência se unica no sentido de admitir,
a priori, que os fatos se conguram de modo uniforme em todos os processos”.(253)
(251) SARLET, Ingo; MARINONI, Luís Guilherme; MITIDIERO, Daniel. Curso de direito constitucional. 4. ed. São Paulo:
Saraiva, 2015. p. 754.
(252) Ibidem, p. 756.
(253) BRASIL. Tribunal Regional do Trabalho da 15a Região. ROT: 00117101520195150032 0011710-15.2019.5.15.0032,
rel. João Batista Martins Cesar, 11a Câmara, Data de Publicação: 26.04.2021.
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Em julho de 2021, a 7a Turma do Tribunal Regional do Trabalho da 1a Região
(TRT1)(254) — Rio de Janeiro, recusou-se a homologar um acordo entre a Uber e uma mo-
torista, prosseguindo no julgamento do recurso e condenando a empresa a assinar a carteira
da trabalhadora entre dezembro de 2018 e maio de 2019. Decisões semelhantes também
foram proferidas no TRT11(255) (Amazonas e Roraima) e no TRT4(256) (Rio Grande do
Sul).
Todos os processos acima mencionados se referem a ações individuais, propostas
por motoristas, com procurador particular ou assistência da assessoria jurídica do sindicato.
Caso não fosse desvendada a manipulação da jurisprudência, por meio do procedimento
conciliatório seletivo, dicilmente haveria decisões reconhecendo direitos aos motoristas,
em ações individuais, ou demorariam a existir. Isso porque, como visto, na ação individual,
a empresa tem a possibilidade de oferecer ou o valor da causa proposto pelo autor da recla-
mação trabalhista ou próximo e, sendo o motorista, um trabalhador hipossuciente e que,
na maioria das vezes, encontra-se em condição de desemprego, aceitar o acordo é quase
uma decisão inexorável do ponto de vista individual. (257) Se não fosse vericada a litigância
manipulativa da empresa ré em tais processos individuais e se os tribunais não se recusassem
a homologar o acordo, proferindo decisão, tais processos provavelmente teriam sido arqui-
vados(258) (“baixados”) por acordo.
Na esteira das decisões que superaram a manipulação da jurisprudência, sem dúvida, o
já mencionado acórdão do Tribunal Superior do Trabalho, por sua 3a Turma, em 06 de abril
de 2022. O julgamento do processo iniciou-se em 02.12.2020, quando o Ministro Mauricio
Godinho Delgado, Relator, conheceu do recurso de revista, por divergência jurisprudencial
e por violação do art. 3o da CLT; e, no mérito, deu-lhe provimento para, reconhecendo o
vínculo empregatício entre as partes, determinar o retorno dos autos ao Juízo da Vara do
Trabalho de origem para examinar os demais pedidos. Contudo, em face ao pedido de vista
regimental do Ministro Alexandre de Souza Agra Belmonte e, sucessivamente do Ministro
Alberto Luiz Bresciani de Fontan Pereira, suspendeu-se o julgamento do processo.
(254) BRASIL. Tribunal Regional do Trabalho da 1a Região. Processo n. 0101291-19.2018.5.01.0015 (ROT). Recorrente:
Erica Abade Rodrigues. Recorrido: Uber do Brasil Tecnologia Ltda.; rela. Carina Rodrigues Bicalho. 2020.
(255) BRASIL. Tribunal Regional do Trabalho da 11a Região. Processo n. 0000416-06.2020.5.11.0011 (ROT). Recorren-
te: Dennis Neves Dos Santos. Recorrido: Uber do Brasil Tecnologia Ltda; Relatores: Ruth Barbosa Sampaio. 2021.
(256) BRASIL. Tribunal Regional do Trabalho da 4a Região. Processo n. 0020750-38.2020.5.04.0405. (RORSum). Re-
corrente: Marcio Antunes Correa. Recorrido: Uber do Brasil Tecnologia Ltda.; rel. Marcelo José Ferlin D’Ambroso.
8a turma. 2021.
(257) A retirada da sessão de processos que poderiam ser julgados procedentes foi justicada no interesse das
partes que peticionaram de forma conjunta, aliás. Recusar a homologação do acordo ou encaminhamento para
o CEJUSCs dos Tribunais não é também uma posição unânime mesmo entre aqueles magistrados que entendem
ter vínculo empregatício. Até onde vai o poder-dever de realizar o julgamento em face ao art. 764 da CLT? Mais
uma pergunta a ser respondida em futuras pesquisas.
(258) No senso comum, fala-se que os autos foram “baixados” em alusão ao arquivamento, movimento processual
que gera o efeito de fazer com que o processo não gure mais na CEAT.
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Mais de ano depois, em 15.12.2021, após o retorno de vista regimental dos mencio-
nados ministros, suspendeu-se novamente o julgamento do processo em virtude do pedido
de prorrogação de vista regimental do Ministro Alexandre de Souza Agra Belmonte, sendo que,
nessa sessão de julgamento, o Ministro Alberto Luiz Bresciani de Fontan Pereira acompa-
nhou o voto do Ministro Relator. O processo retornou a pauta de julgamento em 06 de abril
de 2022 e, por maioria de votos, foi reconhecido o vínculo de emprego entre o motorista e
a plataforma Uber, cujo acórdão publicado em 11 de abril de 2022(259). O Relator, Ministro
Mauricio Godinho Delgado já havia proferido o seu voto na sessão de 02.12.2020, mas o
término do julgamento só ocorreu em 06.04.2022. Uma pergunta a ser feita e cuja reexão
colabora para se entender o acesso à Justiça via direitos é aquela que questiona quantos pro-
cessos de motoristas plataformizados deixaram de ter um julgamento favorável ao vínculo
de emprego nesse longo período de tempo em razão da ausência de precedente favorável do
TST quanto ao vínculo de emprego?
A despeito desse caso da 3a Turma do TST, não se pode atestar com certeza que a
atuação manipulativa da jurisprudência tenha se encerrado, inclusive no próprio TST.(260)
Novas pesquisas podem vir a demonstrar a continuidade da estratégia ou mesmo a adoção
de novas (celebração de acordos extrajudiciais, v.g.(261)), dado o evidente poder de inuência
das empresas e o fato de a Uber sempre sustentar que os precedentes lhe são favoráveis(262).
(259) BRASIL. Tribunal Superior do Trabalho. Processo n. 100353-02.2017.5.01.0066 (ROT). Recorrente: Elias do Nas-
cimento Santos. Recorrido: Uber do Brasil Tecnologia Ltda.; rel. Min. Mauricio Godinho Delgado. 2022.
(260) Em 08.03.2022, após incluir o processo em pauta e depois retirá-lo de pauta, em audiência de conciliação na
modalidade telepresencial, o ministro Lelio Bentes Corrêa homologou acordo entre a Uber do Brasil Tecnologia
Ltda. e um motorista de Belo Horizonte (MG) para extinguir relação jurídica entre as partes. O vínculo não havia
sido reconhecido pela 46a Vara do Trabalho de Belo Horizonte, que se apoiou em declaração do próprio motorista
de que não tinha horário xo para trabalhar e que “se não quisesse trabalhar determinado dia, não precisava avi-
sar para Uber” e, mesmo assim, a Uber propôs o acordo no valor de 12 mil reais ( RR – 10254-58.2020.5.03.0184).
(261) Sobre o tema: OHARA, João Vitor Calabuig Chapina; CARVALHO, Rafaela Teixeira; CARDOSO, Jair Aparecido.
Caso UBER: A utilização de acordos extrajudiciais como estratégia de litigância na Justiça do Trabalho. Anais do III
Congresso Internacional da Rede Ibero-americana de Pesquisa em Seguridade Social, p. 265-287, nov. 2021. Disponí-
vel em: . Acesso em: 11 ago. 2022.
(262) Por meio de nota via assessoria de imprensa, a Uber arma que não usa técnicas de “manipulação da ju-
risprudência”, pois: “Do total de ações contra a Uber nalizadas até 2020, cerca de 10% resultaram em acordos,
índice que representa menos da metade do que ocorre na Justiça do Trabalho (24%) e também é inferior ao total
de todo o Poder Judiciário no país (13%), de acordo com o mais recente relatório Justiça em Números do Conse-
lho Nacional de Justiça. Nos últimos anos, as diversas instâncias da Justiça do Trabalho vêm construindo sólida
jurisprudência conrmando o fato de não haver relação de emprego entre a Uber e os motoristas parceiros, apon-
tando a inexistência de onerosidade, habitualidade, pessoalidade e subordinação, requisitos que congurariam
o vínculo empregatício. Em todo o país, já são mais de 1.130 decisões de Tribunais Regionais e Varas do Trabalho
neste sentido, sendo que não há nenhuma decisão consolidada que determine o registro de motorista parceiro
como empregado da Uber. Os motoristas parceiros não são empregados e nem prestam serviço à Uber: eles são
prossionais independentes que contratam a tecnologia de intermediação digital oferecida pela empresa por
meio do aplicativo. Os motoristas escolhem livremente os dias e horários de uso do aplicativo, se aceitam ou não
viagens e, mesmo depois disso, ainda existe a possibilidade de cancelamento. Não existem metas a serem cum-
pridas, não se exige número mínimo de viagens, não existe chefe para supervisionar o serviço, não há obrigação
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Pode-se até mesmo cogitar que o resultado alcançado por obstrução do debate jurispru-
dencial, no nascedouro, tenha produzido efeitos permanentes, na medida da vinculação dos
órgãos julgadores aos precedentes já proferidos.(263)
A par dos entraves à litigância individual dos motoristas, também na dimensão da
atuação coletiva o acesso à justiça tem enfrentado vários obstáculos. A seguir, essas dicul-
dades serão apresentadas.
2.4. Do acesso individual ao acesso coletivo
O acesso atomizado à justiça, composto por demandas fragmentárias, ajuizadas por
motoristas individualmente, revelou-se vulnerável às apuradas técnicas de marketing e de
manipulação ideológica dos indivíduos, que muitas vezes nem sequer visualizam a violação
de seus direitos ou perspectivas efetivas de sua reivindicação, além de ser mais suscetível à
litigância manipulativa e poder de inuência discursiva das plataformas em face dos tribunais.
Em demandas individuais, a própria limitação da possibilidade de produção probatória,
relativa a fatos complexos, muitos deles obscurecidos pelo sigilo do conteúdo dos coman-
dos algorítmicos inseridos no aplicativo é um entrave a alcançar-se uma adequada tutela
jurisdicional.
Em razão de o MPT e os Sindicatos serem entes dotados de legitimação ativa ex-
traordinária para demandar em defesa de coletividades conferida ope legis, têm total aptidão
para atuar em favor dos direitos trabalhistas dos motoristas plataformizados em face da
Uber. Os sindicatos e o Ministério Público do Trabalho detêm capilaridade e estrutura,
além do fato de que não poderiam ser coagidos a transacionar e ser alvo desse tipo de estra-
tégia por parte das empresas de plataforma de transporte privado de passageiros. De fato,
somente em processos coletivos poder-se-ia ter presentes as condições mais adequadas para
uma discussão jurisdicional do tema referente à relação de emprego.
de exclusividade na contratação da empresa e não existe determinação de cumprimento de jornada mínima. O
TST já reconheceu, em quatro julgamentos, que não existe vínculo de emprego entre a Uber e os parceiros. No
mais recente, a 5a Turma considerou que o motorista “poderia ligar e desligar o aplicativo na hora que bem qui-
sesse” e “se colocar à disposição, ao mesmo tempo, para quantos aplicativos de viagem desejasse”. Em março, a 4a
Turma decidiu de forma unânime que o uso do aplicativo não congura vínculo pois existe “autonomia ampla do
motorista para escolher dia, horário e forma de trabalhar, podendo desligar o aplicativo a qualquer momento e
pelo tempo que entender necessário, sem nenhuma vinculação a metas determinadas pela Uber”. Entendimento
semelhante já foi adotado em outros dois julgamentos do TST em 2020, em fevereiro e em setembro, e também
pelo Superior Tribunal de Justiça em julgamento de 2019. (PAIVA, Letícia. TRT1 não admite acordo e Uber terá de
registrar e pagar direitos a motorista. Jota, 3 ago. 2021. Disponível em:
sas/trabalho/uber-trt1-acordo-negado-registrar-carteira-03082021>. Acesso em: 02 maio 2022).
(263) Vide os grácos que informam o impacto importante dos precedentes do TST em decisões de instâncias
inferiores contidos na pesquisa acerca das redes de citações de precedentes da pesquisa empírica desenvolvida
pela Clínica de Direito do Trabalho da UFPR. In: MACHADO, Sidnei; ZANONI, Alexandre Pilan (Orgs.). O trabalho
controlado por plataformas digitais: dimensões, pers e direitos. Curitiba: UFPR, Clínica de Direito do Trabalho,
2022. E-book. p. 188.
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Com o advento da pandemia do vírus SARS-CoV-2 no início do ano de 2020, o
debate nas ações coletivas de motoristas plataformizados teve um outro foco: a urgente
necessidade de medidas de proteção sanitária e econômica aos milhões de motoristas que,
em um primeiro momento, tiveram sua fonte de renda quase suspensa ou extremamente
reduzida, ao passo que as corridas feitas se davam em contexto de alto risco de contágio.
Logo que as máscaras de proteção ganharam a ribalta, as máscaras do discurso de mero marke-
ting caíram e os motoristas perceberam, enm, que a festejada parceria entre a empresa e
motoristas, nunca existiu.
Inicialmente, o Ministério Público do Trabalho (MP T) não agiu judicialmente, a m
de garantir a proteção sanitária mínima a esses motoristas.(264) Porém, algumas ações coleti-
vas dos sindicatos começaram a surgir, diante da urgência de providências a serem tomadas,
iniciando-se, assim, o acesso coletivo à Justiça, via Poder Judiciário.
A primeira ação coletiva foi do Sindicato de motoristas do Ceará. A princípio, o sin-
dicato obteve êxito no acesso judicial e conseguiu que fosse dada visibilidade para a atuação
sindical naquela localidade. A ação levou o n. 0000295-13-2020-5-07-0003, distribuída
para a 7a Vara do Trabalho de Fortaleza/CE (Tribunal Regional do Trabalho da 7a Região
– TRT7)(265). Logo após, surgiram demandas coletivas dos sindicatos de Minas Gerais,
São Paulo, Pará, quando, então, percebeu-se que havia um movimento integrado entre os
sindicatos dessas localidades. Assim, foi possível acompanhar o início da integração entre as
entidades sindicais, algumas incipientes, testemunhando a formação de uma federação.(266)
Dessa experiência, pôde-se denir a pesquisa de campo que foi realizada neste trabalho.
Acompanhou-se a atuação das lideranças sindicais de motoristas plataformizados do Brasil,
no período e na forma descrita no capítulo 1.
Em um primeiro momento, sindicatos se mobilizaram para a defesa de direitos
elementares até mesmo de sobrevivência dos motoristas plataformizados, ao se verem em
(264) A título de informação, no início da pandemia, em 13.04.2020, o MPT ajuizou ações civis públicas em face da
Uber Eats, IFood e Rappi, postulando que as plataformas adotassem medidas sanitárias a m de mitigar os riscos
que estavam expostos os trabalhadores na entrega de produtos gerenciados por estas plataformas. Segundo
pronunciamento do órgão ministerial, foram ajuizadas as Ações Civis Públicas (ACP): 1000396-28.2020.5.02.0082,
1000405-68.2020.5.02.0056 e 1000436-37.2020.5.02.0073, todas perante o TRT da 2a Região, diante do local da
sede das empresas mencionadas. (MPT ALERTA para precarização do trabalho em empresas por aplicativos. Portal
Correio, 2 jul. 2020. Disponível em:
-empresas-por-aplicativos/>. Acesso em: 27 jun. 2022).
(265) A análise da ação civil pública proposta pelo Sindaplic, em face das empresas Uber e 99, na qual se pleiteou o
acesso aos equipamentos de proteção básicos para prevenção do contágio contra o novo coronavírus e a garantia
de contraprestação mínima mensal não inferior a 1 (um) salário-mínimo pode ser encontrada em: ORSINI, Adriana
Goulart de Sena; LEME, Ana Carolina Reis Paes. Salário mínimo, máscara e alquingel: acesso ao mínimo ou mínimo
de acesso? Revista Direito UnB, v. 4, n. 2, p. 171-197, maio/ago. 2020. Disponível em: .br/
index.php/revistadedireitounb/article/view/32405/27452#:~:text=O%20Sindicato%20venceu%20a%20a%C3%
A7%C3%A3o,humanos%2Ct%C3%AAm%20direitos%2C%20trabalham!>. Acesso em: 23 abr. 2022.
(266) Observação não participante da autora.
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plena pandemia sem um mínimo de acesso, tanto a direitos trabalhistas, como também a
equipamentos básicos de proteção, como máscaras e álcool em gel. Naquele momento, em
especial, encontravam-se privados da garantia à saúde individual, como também a coletiva,
além de profundamente afetados em sua renda de subsistência.
Em consulta ao sítio eletrônico da Uber, no início da pandemia pelo vírus suprarrefe-
rido (abril de 2020), vericou-se que possuíam uma página especíca em que apontavam
a “atuação no combate à pandemia do coronavírus”, constando entre as medidas o apoio à
saúde pública, com a obrigatoriedade do uso de máscaras dentro dos veículos. Adotaram
a seguinte providência: “para que os motoristas parceiros possam realizar viagens, será
necessário que eles passem por um checklist on-line que inclui uma sele que verica o uso
da máscara”(267). Contudo, a empresa não se comprometeu a fornecer máscaras aos moto-
ristas e, exercendo o seu poder potestativo empregatício, exigiu equipamentos de proteção
dos motoristas, com a total transferência dos custos de tais equipamentos ao motorista
trabalhador. Isso, além de afetar o valor nal de sua remuneração, reduzindo-o, implicou na
obtenção de máscaras de proteção ecaz, as quais vale lembrar, no início da pandemia, eram
de difícil acesso e de alto valor.(268)
A propositura da Ação Civil Pública (ACP) pelo Sindicato dos Motoristas de
Aplicativo de Fortaleza (Sindiaplic), em face das empresas Uber do Brasil e 99 Tecnologia(269),
tinha como causa de pedir o não fornecimento pelas empresas de máscaras e álcool em gel
para os motoristas, postulado o acesso aos equipamentos de proteção básicos para preven-
ção do contágio contra o vírus SARS-CoV-2 e a garantia de contraprestação mensal não
inferior a 1 (um) salário-mínimo, com fundamento na CF/1988, diante da condição de
pessoa humana desses trabalhadores.(270) O Sindicato dos motoristas ajuizou a ação postu-
lando direitos elementares, a m de preservarem as suas vidas.
O mencionado caso concreto leva à indagação se teria ocorrido um retrocesso no
acesso à justiça dos motoristas plataformizados. É que, se mesmo antes da pandemia,
o acesso já era difícil em face a controvérsia jurídica do enquadramento legal como empregado
ou não, no cenário da pandemia, a situação se agravou e os sindicatos tiveram que reivindicar
(267) UBER. Coronavírus. Disponível em: . Acesso em: 18
abr. 2020.
(268) FARMÁCIAS têm falta de máscaras após conrmação de coronavírus no Brasil. CNN Brasil, 27 fev. 2022. Dis-
ponível em:
navirus-no-brasil/>. Acesso em: 26 jul. 2022.
(269) BRASIL. Tribunal Regional do Trabalho da 7a Região. 3a Vara do Trabalho de Fortaleza/CE. Petição inicial do
Sindiaplic na Ação Civil Pública ATSum 0000295-13.2020.5.07.0003, protocolada em 06 abr. 2020.
(270) Essa demanda coletiva foi analisada em: ORSINI, Adriana Goulart de Sena; LEME, Ana Carolina Reis Paes.
Salário mínimo, máscara e alquingel: acesso ao mínimo ou mínimo de acesso? Revista Direito UnB, v. 4, n. 2,
p. 171-197, maio/ago. 2020. Disponível em:
view/32405/27452#:~:text=O%20Sindicato%20venceu%20a%20a%C3%A7%C3%A3o,humanos%2Ct%C3%A
Am%20direitos%2C%20trabalham!>. Acesso em: 23 abr. 2022.
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direitos ainda mais elementares. Pode se questionar se ao ajuizar ação por direitos de
sobrevivência física, não haveria um décit de compreensão, por parte da entidade sindical
dos motoristas, sobre o direito a ter direitos, ou mesmo, rebaixamento de expectativas de
direitos, ao postularem apenas, o mínimo para sobreviverem sicamente.(271)
Em uma primeira dimensão, o acesso à justiça pela via dos Direitos arma a centrali-
dade da informação acerca desses direitos, de um horizonte de expectativa de plausibilidade
de sua realização e de uma socialização que permita o recurso a uma instância ou entidade
à qual se reconheça legitimidade para reparar a injustiça ou violação do direito sofrida.(272)
Nesse contexto, se a ação coletiva do Sindiaplic, que representou a primeira luta
judicial coletiva de organização sindical de motoristas, em face das plataformas de trans-
porte o foi em busca de direitos mínimos de sobrevivência física, é preciso indagar se a
dimensão de direitos a ter direitos não estaria também reduzida ao mínimo do mínimo.
Esse primeiro passo pode levar a uma compreensão mais ampla ao coletivo de trabalhado-
res e suas lideranças sindicais acerca de que os motoristas plataformizados tem direito a ter
direitos. O processo continua em curso e a Uber tem realizado tentativas protelatórias nos
autos e no cumprimento de obrigações, como será visto no capítulo 4.
Foram propostas ações civis públicas pelo Sindicato dos Condutores de Veículos que
utilizam aplicativos de Minas Gerais (Sicovapp), pelo Sindicato dos Trabalhadores com
Aplicativos de Transporte Terrestre Intermunicipal do Estado de São Paulo (Stattesp) e
pelo Sindicato de Motoristas de Transportes por Aplicativo do Estado do Pará (Sindtapp),
em face das empresas Uber do Brasil e 99 Tecnologia , com pedidos relacionados a for-
necimento de equipamentos de proteção básicos voltados a prevenção do contágio pelo
vírus SARS-CoV-2, bem como a assistência nanceira mensal não inferior ao salário-mínimo
mensal. Segundo informações dos entrevistados, nenhuma destas demandas coletivas foi
procedente.(273)
Os dados coletados no campo serão sistematicamente apresentados no capítulo 4.
Contudo, é produtivo fazer referência, já nesse ponto do texto, a um dos relatos que se
(271) Esse questionamento foi explicitado pela doutoranda e sua orientadora no seguinte artigo: ORSINI, Adriana
Goulart de Sena; LEME, Ana Carolina Reis Paes. Salário mínimo, máscara e alquingel: acesso ao mínimo ou mínimo
de acesso? Revista Direito UnB, v. 4, n. 2, p. 171-197, maio/ago. 2020. Disponível em: .br/
index.php/revistadedireitounb/article/view/32405/27452#:~:text=O%20Sindicato%20venceu%20a%20a%C3%
A7%C3%A3o,humanos%2Ct%C3%AAm%20direitos%2C%20trabalham!>. Acesso em: 23 abr. 2022.
(272) AVRITZER, Leonardo; MARONA, Marjorie; GOMES, Lilian (Coords.). Cartograa da Justiça no Brasil. São Paulo:
Saraiva, 2014. p. 17.
(273) Essas demandas coletivas não foram objeto de análise detida na presente pesquisa. A título de informa-
ção, os números dos processos são: 1) ATOrd 0010244-42.2020.5.03.0110 – Covid-19. Sicovapp x 99. Autuado
em: 13 abr. 2020; 2) ATOrd 0010251-37.2020.5.03.0109 – Covid-19. Sicovapp x Uber. Autuado em: 13 abr. 2020; 3)
ACPCiv 1000507-62.2020.5.02.0033 – Covid-19. Stattesp x Uber. Autuado em: 14 maio 2020; 4) ACPCiv 1000523-
47.2020.5.02.0055 – Covid-19. Stattesp x 99. Autuado em: 14 maio 2020; 5) ACPCiv 0000342-30.2020.5.08.0012 –
Covid-19. Sindtapp x 99. Autuado em: 11 maio 2020; 6) ACPCiv 0000325-18.2020.5.08.0004 – Covid-19. Sindtapp
x Uber. Autuado em: 11 maio 2020.
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mostra adequado. O entrevistado 1, assessor jurídico do Sindicato de Minas Gerais, infor-
mou que o Sindicato dos Condutores de Veículos que utilizam aplicativos de Minas Gerais
(Sicovapp) também ajuizou ação civil pública em face da empresa Cabify Agência de Ser-
viços de Transporte de Passageiros Ltda e que o acórdão da Primeira Turma do Tribunal
Regional do Trabalho da 3a Região conrmou a sentença de primeira instância que julgou
os pedidos parcialmente procedentes, condenando a Cabify a cumprir obrigações de fazer
relativas às medidas sanitárias em relação “aos motoristas atuantes na base territorial do
sindicato”.(274) Apesar de a referida decisão ser em face da Cabify, e não se referir às duas
empresas objeto de investigação na presente pesquisa, reputou-se importante informar que
a decisão de 1o grau mencionada reconheceu os direitos mínimos pleiteados à categoria dos
motoristas plataformizados, ainda que restrito àqueles vinculados ao Sindicato de Minas
Gerais.
Com relação à ação coletiva acima mencionada chama a atenção que, no acórdão
regional, foi rechaçada a tese empresária de ilegitimidade sindical por ausência de compro-
vação de registro junto ao órgão do Poder Executivo respectivo. Constou da fundamentação
que eventual questão referente ao registro sindical junto ao órgão do Poder Executivo não
era suciente para invalidar a existência e a legitimidade do Sindicato-autor. Ademais, o
Tribunal Superior do Trabalho, por sua Seção de Dissídios Coletivos, já se posicionou no
sentido de admitir a possibilidade de a entidade sindical comprovar sua legitimidade por
outros meios que não a apresentação do registro no órgão competente do Poder Executivo.
No caso concreto, foram colacionados o estatuto sindical, a ata de fundação e aprovação de
estatuto, eleição e posse da diretoria e do conselho scal, além do registro do Sindicato no
cartório de registro de pessoas jurídicas, inscrição no Cadastro Nacional de Pessoa Jurídica
(CNPJ) e publicações em jornal de grande circulação noticiando a sua criação. Assim, a
legitimidade do Sindicato postulante foi reconhecida para a demanda.(275)
Em 08.11.2021, o Ministério Público do Trabalho ajuizou Ações Civis Públicas em
face das duas empresas pesquisadas, judicializando o pedido de reconhecimento de vínculo
de emprego com abrangência a toda categoria dos motoristas plataformizados do território
nacional. Segundo nota informativa do MPT, foram ajuizadas ações em face das empresas
“99” e “Uber”(276) e também em face de “Rappi” e “Lalamove”. Nelas, foi pleiteado que o
Poder Judiciário reconhecesse o vínculo de emprego com os motoristas e os entregadores
de mercadorias e as plataformas digitais, com a garantia de direitos sociais trabalhistas, se-
curitários e previdenciários. A mesma nota informa que o MPT requereu, ainda, a melhoria
(274) BRASIL. Tribunal Regional do Trabalho da 3a Região. Acórdão da Primeira Turma, proferido em 14 de dezem-
bro de 2020. Sentença proferida pela 26a Vara do Trabalho de Belo Horizonte, proferida em 23 de setembro de
2020. Sicovap x Cabify ATOrd 0010251-49.2020.5.03.010, protocolada em 13 abr. 2020.
(275) Idem.
(276) Essas demandas coletivas não foram objeto de análise na presente pesquisa. A título de informação, o núme-
ro do processo da Ação Civil Pública ajuizada pelo Ministério Público do Trabalho em face da Uber, no âmbito do
TRT da 2a Região é o n. 1001379-33.2021.5.02.0004. Na petição inicial, consta o pedido de “declaração da relação
jurídica entre a Uber e os motoristas que prestam serviço de transporte de passageiros através de seu aplicativo”.
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das condições de saúde e segurança do trabalho nas atividades desenvolvidas por trabalha-
dores contratados por plataformas digitais, de forma a reduzir a precarização das relações
trabalhistas.(277)
O Ministério Público do Trabalho iniciou a investigação via inquérito civil no ano
2016 (I.C. n. 001417.2016.01.000/6) e aguardou até o ano de 2021 para ajuizar a Ação
Civil Pública. Veja-se que, mesmo munido de provas consistentes, constantes dos depoi-
mentos dos ex-empregados da Uber, colhidos no supracitado inquérito civil(278), aguardou
cinco anos para o ajuizamento da ação coletiva.
Apurou-se, na oportunidade, que o MPT não havia proposto, até aquele momento,
ação civil pública em face da Uber, porque o momento não era propício, em face a necessidade
de amadurecimento do debate jurídico sobre o tema.(279)
Uma das possibilidades para buscar o reconhecimento judicial do vínculo de empre-
go no Brasil é a via do incidente de resolução de demandas repetitivas IRDR, previsto nos
arts. 976 a 987 do CPC c/c art. 769 da CLT e na Resolução n. 203 do Tribunal Superior
do Trabalho de 15/3/16. Importante ressaltar que o Desembargador Relator, de ofício ou
mediante requerimento, pode instaurar o IRDR (art. 977, I a III, do Código de Processo
Civil Brasileiro de 2015).
Avalia-se ainda hoje muito arriscada a via do incidente de resolução de demandas re-
petitivas. E tal avaliação xa-se na pesquisa já mencionada que demostra uma ampla predo-
minância de decisões desfavoráveis sobre o tema da relação de emprego entre o trabalhador
(277) MPT requer que 99, Uber, Rappi e Lalamove reconheçam vínculo trabalhista. PRT 2 Website, 2021. Disponível
em: -
ta>. Acesso em: 2 maio 2022.
(278) Os dados referentes às provas contidas no inquérito civil mencionado encontram-se na dissertação de mes-
trado defendida pela autora. Vide, como exemplo, o depoimento do gerente-geral que declarou que "foi contra-
tado pela matriz da Uber, reportando diretamente a eles no início, mais especicamente ao vice-presidente de
operações global; que ao ser contratado foi informado que, apesar da Uber atuar globalmente, ela entendia que
era organizada como um conjunto de várias empresas locais; que, assim, cada cidade teria grande autonomia;
que atuaria, assim, como se fosse um "CEO" da cidade, sendo responsável pela gestão e crescimento do negócio".
O ex-gerente geral da Uber no Brasil informou havia bloqueio de motoristas por inatividade (“desativar quem
trabalhasse pouco”) e suspensões por recusa de corridas solicitadas (“a taxa de aceitação mínima era de 80%
dos pedidos”). Armou que se “lembra de um caso de um motorista que foi excluído por recrutar motoristas da
Uber para outro concorrente” e que o setor de marketing monitorava as horas on-line de todos os motoristas e a
quantidade de pedidos de clientes atendidos. Foi relatado, ainda, que “o gerente de operações poderia colocar
alguns parâmetros no algoritmo que iriam gerar ações automáticas” e que é possível “controlar não somente a
nota, mas também a taxa de aceitação e a taxa de viagens completadas” e, além disso, “com o novo sistema, a re-
jeição do motorista poderia ser automática”. Os fatos declarados pelo ex-gerente geral da Uber do Brasil apontam
com clareza a exigência da não eventualidade e a existência de controle algorítmico equiparado à subordinação.
Vide depoimento dele e dos demais ex-empregados da Uber do Brasil no IC, . 212-214, Anexo A.2 da Dissertação.
Dissertação (Mestrado em Direito) – Programa de pós-graduação em Direito da Faculdade de Direito da UFMG,
2018. Disponível em: . Acesso em: 28 abr. 2020.
(279) CARELLI, Rodrigo. Aula sobre a uberização do trabalho. Canal da Escola Judicial TRT5 – BA. Youtube, 19 maio
2017. Disponível em: . Acesso em: 20 jun. 2018. Minuto 3:07.
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e as plataformas digitais de trabalho(280). Assim, o incidente de resolução de demandas
repetitivas poderia criar um precedente muito prejudicial ao acesso dos motoristas platafor-
mizados aos direitos trabalhistas e até mesmo à Justiça do Trabalho.
Ao reetir acerca do debate em torno do espaço jurídico-laboral, vericou-se que
o que está sendo postulado no Poder Judiciário é a questão do enquadramento jurídico.
Contudo, o campo jurídico não consegue, sozinho, atribuir sentido aos conceitos jurídi-
cos de forma autorreferente. O que se passa de fato nas relações de trabalho a partir das
abrangentes transformações introduzidas pelas plataformas digitais de trabalho é algo que
precisa ser mais que imaginado ou suposto pelos prossionais do Direito na aplicação da lei.
É preciso investigação empírica e diálogo transdisciplinar consistente com outras ciências,
notadamente, no caso, a sociologia, a ciência política, as ciências da tecnologia, a economia,
aplicadas ao campo do trabalho para que o sentido atribuído aos conceitos e, talvez, até
mesmo às relações se dê de uma forma mais dialogada, com maior participação, especial-
mente dos motoristas plataformizados.
No caso da uberização do trabalho dos motoristas de transporte privativo de passa-
geiros, vericou-se que as plataformas atuam em busca da construção de um espaço de “não
enquadramento”, objetivando, na realidade, um desenquadramento jurídico-legal do que
o direito já regulou. Como se o direito posto e os institutos legais existentes não valessem
para o modelo de negócios que divulgam como sendo novidade e, portanto, não alcançável
ao que já se produziu de normatividade laboral. Dessa forma, se esgueiram entre espaços
com o objetivo de repelir a aplicabilidade das normas existentes. Por outro lado, se armam
usando todo seu poder de “rolo compressor”(281) econômico e midiático sobre o que já existe,
buscando colonizar o espaço de regulação do Direito, por meio do seu atuar, seja usando
estratégias de manipulação jurídica eticamente questionáveis, seja por meio de utilização de
estratégias variadas oriundas do seu poderio econômico, sejam aquelas de cunho ideológico,
instrumentalizando juristas, opinião pública, além de capturar a subjetividade dos trabalha-
dores e consumidores.
Nesse cenário de obstrução da via, o acesso aos direitos depende da compreensão da
complexidade do espaço concreto de atuação do Direito, que só pode ser alcançada com o
diálogo rigoroso com outras disciplinas, cujas pesquisas podem permitir ao campo jurídico
uma visão mais crítica em face da manipulação da realidade.
Percebeu-se que fazer chegar ao debate judicial o conhecimento empírico que vem
sendo produzido de modo cada vez mais consistente pelas pesquisas cientícas é, pelo menos
(280) MACHADO, Sidnei; ZANONI, Alexandre Pilan (Orgs.). O trabalho controlado por plataformas digitais:
dimensões, pers e direitos. Curitiba: UFPR, Clínica de Direito do Trabalho, 2022. E-book. p.188.
(281) Expressão utilizada pelo Professor Dr. Antônio Gomes de Vasconcelos, em palestra proferida no evento “Leis
e Letras” de lançamento do Livro “Da máquina à nuvem: caminhos para o acesso à justiça pela via de direitos
dos motoristas da Uber”, em 15.02.2019, no TRT-MG. Disponível em:
VzjSfDvENo&t=2709s>. Acesso em: 30 jul. 2022.
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no Brasil, um dos grandes desaos para romper os obstáculos existentes ao acesso à justiça.
As lutas dos motoristas plataformizados indicam dimensões de injustiça cuja resolução não
se viabiliza apenas pelo acesso a direitos trabalhistas, aqueles assegurados pelo quadro típico
do estado nacional, pois se trata de uma empresa transnacional, inclusive. Daí a necessidade de
se buscar um marco teórico que contemple a justiça, no que se refere ao acesso aos direitos,
de forma cada vez mais alargada no que tange aos campos do conhecimento e, também, em
diálogos de direito comparado.
Traçado até aqui o mapa que contextualiza a saga dos motoristas plataformizados,
é necessário agora, antes de iniciar a viagem, organizar a bagagem que será utilizada pelos
viajantes; no caso, os trabalhadores. O marco teórico que embasa esta pesquisa centra-se no
conceito do acesso à justiça via Direitos que se pretende iluminar com a concepção tridi-
mensional de justiça de Fraser.
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