Os destinos: o trabalho juridicamente protegido, reconhecido, com redistribuição e participação

AutorAna Carolina R. P. Leme
Páginas226-265
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Ana Carolina Reis Paes Leme
Capítulo 5
Os Destinos: O Trabalho
Juridicamente Protegido, Reconhecido,
com Redistribuição e Participação
Seguida a rota, com apoio do mapa, percorreu-se o caminho e as estradas, com o intuito
de chegar aos destinos. O debate crítico, a partir da bagagem teórica desenvolvida e
trazida até aqui, será apresentado neste capítulo nal. A m de guiar o debate crítico sobre
os múltiplos bloqueios no acesso à justiça pela via dos Direitos sob a luz da concepção tridi-
mensional de Fraser, dividiu-se a análise em torno dos seguintes eixos: 1) a indivisibilidade
das categorias redistribuição, reconhecimento e representação; 2) do gênero ao reconhe-
cimento como pessoa; 3) o discurso defensivo quanto ao vínculo de emprego; 4) decisões
judiciais e a alavancagem/desmobilização do movimento sindical. E, após, serão tecidas
considerações acerca da dimensão crítica das críticas ao vínculo de emprego e apontado o
que a empiria tem a dizer à normatividade positivada, para além dos direitos trabalhistas
existentes.
5.1. Considerações críticas sobre os múltiplos bloqueios no acesso à justiça
sob a luz da teoria tridimensional de Fraser
A análise dos dados da pesquisa de campo, realizada no capítulo 4, dedicou-se a
apresentá-los, selecionando, categorizando e ressaltando aspectos pontuais das falas dos
integrantes de organizações sindicais de motoristas plataformizados. Cumprida essa etapa
da análise de dados, incumbe agora fazer a correlação do corpus pesquisado com o marco
teórico desenvolvido nos capítulos 2 e 3, buscando compreender criticamente as demandas
inseridas nos relatos, como demandas por justiça na concepção tridimensional.
Retomando-se os conceitos de Fraser para iluminar o debate crítico em torno da
multiplicidade de bloqueios ao acesso à justiça pela via dos Direitos dos motoristas plata-
formizados, é preciso revisitar injustiças econômicas, culturais e políticas. Como foi visto, o
acesso tridimensional à justiça passa por confrontar para buscar resolver demandas de três
naturezas: redistribuição, reconhecimento e representação.
A injustiça econômica se baseia na estrutura econômico-política da sociedade e seus
exemplos são: exploração, ou seja, ser apropriado do fruto do próprio trabalho em benefício
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de outros; a marginalização econômica, denida como ser obrigado a um trabalho indesejável
e mal pago, como também não ter acesso a trabalho remunerado; e a privação, traduzida em
não ter acesso a um padrão de vida material adequado.
Por sua vez, a injustiça cultural ou simbólica se radica nos padrões sociais de iden-
ticação, interpretação e comunicação, e seus exemplos são a dominação cultural — ser
submetido a padrões de interpretação e comunicação associados a outra cultura, alheios e/ou
hostis à sua própria; o ocultamento — tornar-se invisível por efeito de práticas comunicati-
vas, interpretativas e representacionais autorizadas da própria cultura; e o desrespeito — ser
difamado ou desqualicado rotineiramente nas representações culturais públicas estereoti-
padas e/ou nas interações da vida cotidiana.(470)
Como se viu, com o avanço da trajetória trilhada por Fraser, percebeu-se que uma
visão mais complexa de justiça, baseado em uma dupla dimensão referente à distribuição e
ao reconhecimento, ainda seria insuciente. Assim, a autora acresceu a categoria da repre-
sentação. A representação corresponde à injustiça política, sendo “o palco em que as lutas
por distribuição e reconhecimento são conduzidas”. Há dois tipos de injustiça política:
1) a falsa representação política-comum, quando as regras decisórias funcionam de modo a
negar a algumas pessoas a possibilidade de participar como um par, junto com os demais, na
interação social, e nas arenas políticas; 2) o mau enquadramento, em que decisões políticas
excluem alguns indivíduos, os “não membros”, do universo daqueles a serem considerados
dentro de uma comunidade em questões de distribuição, reconhecimento e representação
política-comum.(471)
Com o intuito de guiar o debate crítico sobre os múltiplos bloqueios no acesso à
justiça pela via dos Direitos sob a luz da concepção tridimensional de Fraser, dividiu-se a
análise em torno dos seguintes eixos: 1) a indivisibilidade das categorias redistribuição,
reconhecimento e representação; 2) do gênero ao reconhecimento como pessoa; 3) o discurso
defensivo quanto ao vínculo de emprego; 4) as decisões judiciais e a alavancagem/desmo-
bilização do movimento sindical. E, após, serão tecidas considerações acerca da dimensão
analítica das críticas ao vínculo de emprego, apontando o que a empiria tem a dizer à nor-
matividade positivada, para além dos direitos trabalhistas normatizados.
5.1.1. Indivisibilidade das categorias: redistribuição, reconhecimento e
representação
Dado que a globalização tem colocado a questão do enquadramento diretamente na
agenda política, Fraser adota a concepção de que “não há redistribuição ou reconhecimento
(470) FRASER, Nancy. Da redistribuição ao reconhecimento? Dilemas da justiça numa era “pós-socialista”. Tradução
de Júlio Assis Simões. Cadernos de Campo (São Paulo – 1991), [S. l.], v. 15, n. 14-15, p. 231-239, 2006. p. 232.
(471) FRASER, Nancy. Reenquadrando a justiça em um mundo globalizado. Lua Nova, São Paulo, n. 77, p. 11-39,
2009. p. 22.
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sem representação.” Por isso, para ela, uma teoria da justiça adequada ao presente tempo
deve ser tridimensional. Considera-se que essa abordagem tríplice permite melhor sig-
nicar os aspectos presentes nas demandas dos motoristas. Vale iniciar revendo o trecho
paradigmático de fala do Presidente do Sindicato do Pará (Entrevistado 3):
“Não tem patrão, mas também não tem direito. O patrão tá lá nos Estados
Unidos e não tá nem aí pra gente, não dá o direito, não faz nada. A gente
pensa que tá empregado, nunca viu o patrão, de repente a gente tá na rua, sem
justicativa e sem direito de se justicar.” (Entrevistado 3, PA, 19.07.2021)
Essa fala ilustra bem o grave problema do décit de representação que afeta esses
trabalhadores. É algo que decorre diretamente do fato de que toda a estratégia de atuação
territorial da plataforma está direcionada à construção de um espaço de ausência de direi-
tos e de regulação clara para o trabalho e os trabalhadores. Tal feito busca situar a própria
plataforma na condição ccional de um ente que, mesmo onipresente na determinação das
condições do espaço territorial e normativo, bem como na apropriação de valor, não está ali
e, portanto, não é alcançável e não é responsabilizável.
A plataforma se diz mera intermediadora do contato entre motorista e usuário; ela
procede à organização, controle e comando direto de toda a atividade mediante comu-
nicações digitais aparentemente automáticas, mascarando a autoria humana das decisões
implementadas; furta-se ao máximo a qualquer espécie de diálogo e atenção às demandas
e reivindicações de motoristas e sindicatos; manipula a jurisprudência e a legislação nacio-
nais, a m de distorcer a seu favor os padrões regulatórios. Mesmo quando se considera a
possibilidade de sua responsabilização, acena então com a ameaça da evasão, usando a sua
mobilidade transnacional: assim os trabalhadores não podem exigir direitos, sob pena de
perderem a fonte de renda. Há um disseminado receio dos trabalhadores de que o próprio
Poder Judiciário não teria condições de confrontar o poder econômico privado transna-
cional. Realidade ou não, isso tudo acarreta, como consequência, própria inviabilização do
“ter direitos”. As plataformas de transportes que são responsáveis pelo adimplemento dos
deveres e obrigações correspondentes a esses direitos acaba por se beneciar de recursos
e do espaço nacional para sua atividade, subtraindo-se à autoridade dos poderes públicos
pelas suas ações, como explicitado no capítulo 2. A própria concepção e compreensão do
“ter direitos” e do “direito a ter direitos” ca ainda mais inviabilizada no caso dos motoristas
plataformizados.
A ausência de arenas políticas adequadas para a discussão e deliberação das demandas
por justiça dos motoristas plataformizados trazem a ela imbrincadas as demandas redis-
tributivas e por reconhecimento, como se verá a seguir. Todos os relatos são marcantes e
de-se recorrer apenas a uma restrita seleção de toda a riqueza do campo, para os objetivos
da presente obra.
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