Os caminhos e as estradas: o diálogo com o campo

AutorAna Carolina R. P. Leme
Páginas176-225
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Ana Carolina Reis Paes Leme
Capítulo 4
Os Caminhos e as Estradas:
O Diálogo com o Campo
O
mapa, representando simbolicamente o contexto global nanceirizado no qual os
motoristas plataformizados atuam, levou ao caminho: a pesquisa de campo em
profundidade. No campo, foram ouvidos os principais líderes sindicais do Brasil e, assim,
entrevistados indicaram sua própria percepção de acesso à justiça. Rumo aos destinos, as
suas vozes são reveladas e categorizadas a partir da bagagem teórica desenvolvida e trazida
até aqui: a teoria tridimensional da justiça de Fraser.
Os dados obtidos nas entrevistas, classicados a partir das categorias estabelecidas na
pesquisa serão apresentados e analisados neste e no próximo capítulo (4 e 5). Logo após a
categorização, será aprofundada a análise do campo, com o enquadramento interpretativo
das lutas que os motoristas por plataforma (Uber e 99) vêm travando por redistribuição,
reconhecimento e representação, e como essas demandas estão intrinsecamente ligadas ao
acesso à justiça.
Como uma forma de organizar o texto, as quatro categorias que foram criadas para
a análise do campo surgiram a partir da averiguação de pontos em comum que se repetiam
nas falas dos entrevistados. Destaca-se a demanda por diálogo, o fato de os motoristas se
sentirem invisibilizados como indivíduos, a sua necessidade de união e organização em enti-
dade coletiva e a conquista de melhores condições de trabalho. Dentro de cada categoria, é
possível identicar demandas por reconhecimento, redistribuição, representação, até porque,
como referido, são dimensões que não se apresentam isoladamente, mas que interagem de
maneira tridimensional. É que, como se viu, apenas a efetivação de uma delas não basta para
que se realizem as demandas por justiça.
Nesta análise será possível perceber que as demandas se repetem, em especial por
diálogo e melhores condições de trabalho, e que, por mais diculdades que os sindicatos
enfrentem para se manterem em funcionamento sem receita pública, sobretudo durante a
pandemia do vírus SARS-CoV-2, a organização do movimento sindical foi e é essencial
para defender e elevar as condições de vida dos trabalhadores. Os vínculos formarem as
redes de proteção.
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4.1. Categorização dos dados obtidos nas entrevistas
As entrevistas, como dados primários, foram categorizadas sob quatro formas. Na
primeira categoria, relativa às condições de trabalho dos dirigentes sindicais e assessores
jurídicos de alguns dos sindicatos entrevistados. Foram examinadas questões como o acúmulo
de funções, as condições sociais, jornada e segurança, aspectos de igualdade e discriminação,
nalizando com as repercussões do uso de algoritmos na organização do trabalho. A segunda
categoria diz respeito à organização coletiva, na qual se pode observar como pontos em comum
a busca por redes de solidariedade, a posição política, social e de gênero, a estruturação e
a mobilização. A terceira categoria diz respeito exclusivamente às demandas por diálogo por
parte dos trabalhadores. O destaque de criação de uma quarta categoria abrange a temá-
tica do acesso à justiça, indicando a dubiedade entre a vontade de estabelecer o vínculo
empregatício e a necessidade de proteção, além dos aspectos transnacionais e do acesso ao
judiciário.
4.1.1. Categoria 1 — Condições de trabalho dos dirigentes sindicais e dos
assessores jurídicos de sindicatos de motoristas plataformizados
Nesta categoria, foi destacada a condição de trabalho dos dirigentes sindicais e dos
assessores jurídicos de alguns dos sindicatos de motoristas plataformizados entrevistados.
4.1.1.1. Acúmulo de função
Todos os dirigentes sindicais entrevistados são motoristas e dirigem para as
plataformas digitais, como forma de sustento próprio e de suas famílias. Ou seja, todos
trabalham dirigindo e necessitam dos ganhos advindos do que eles chamam de “rodagem
para a sobrevivência. Nenhum dos entrevistados relatou receber remuneração pelo exercício
da atividade sindical. Os trechos a seguir, de três presidentes sindicais de diferentes esta-
dos da federação, respectivamente Paraná, Pará e São Paulo, trazem relatos sobre a dupla
condição de trabalho de sindicalista e, ao mesmo tempo, de motorista. Além dos trechos
acima, os entrevistados dos estados de Minas Gerais, Bahia, Rio Grande do Sul, Sergipe,
Brasília, Distrito Federal, Rio Grande do Norte, Ceará e Mato Grosso, também armaram
que, além de exercer atividade de líder sindical, também dirigem para a própria subsistência:
“Sim, dirijo. Todos nós aqui dirigimos, né. Hoje em dia não tem ainda como
nós sobreviver de outra forma, né? Nenhum dirigente recebe nada. Muito pelo
contrário, nós só tiramos do bolso, que tem que pagar a luz, tem que pagar
aluguel, tem que pagar internet, tem que pagar tudo isso.” (Entrevistado 13,
PR, 26.08.2021)
“[...] já que o sindicato não tem receita própria, não dá pra ajudar a manter o
motorista, a diretoria, então a gente meio que liberou, ó, vocês podem ir pra
pista porque todo mundo é motorista, da nossa diretoria. Toda a diretoria é
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motorista. Ninguém recebe remuneração do sindicato. Nada, nada. Tudo
é voluntário aqui. Até mesmo a água quando a gente quer comprar a gente
rateia entre a gente pra comprar água pros motoristas” (Entrevistado 3, PA,
19.07.2021)
“Na diretoria, nós somos em 24, né, 25 comigo. Todos dirigem.” (Entrevistado
6, SP, 21.07.2021)(432)
A entrevistada 2, do Mato Grosso, presidente de sindicato e motorista de plataformas
digitais, enxerga vantagens no fato de os sindicalistas serem também motoristas. Ela relata a
importância de “sentir na pele” o que os motoristas passam e diz que “ninguém recebe nada
pelo desempenho da atividade sindical, mas que esse trabalho é “pela causa dos motoristas
de aplicativo”, incluindo-se nesse grupo de trabalhadores a serem beneciados, mesmo que
não receba remuneração para isso:
“Pra você poder tá de frente dum sindicato, de uma associação, penso eu que
você tem que tá na rua, você tem que saber de fato o que os motoristas sentem.
O que é que pega pro motorista, como é que tá sendo conduzido na rua, os
passageiros, o tratamento, o aplicativo em si, entendeu? Eu não abandono em
hipótese alguma eu dirigir, eu co dois dias na parte da tarde da semana no
sindicato e o resto da semana toda eu tô na rua. É tudo pela causa dos motoristas
de aplicativo, que é melhoria pra mim mesmo também né.” (Entrevistada 2,
MT, 18.07.2021)
Já o relato da entrevistada a seguir, motorista no estado de Minas Gerais e presidente
da federação, é bastante ilustrativo de como o acúmulo de funções e a falta de remuneração
dos dirigentes interfere na condição de trabalho e de exercício da atividade sindical:
“[...] a gente não tem grana, vamos começar por aí, e aí por que que eu tô falando
isso, porque pra gente parar nosso trabalho e dedicar totalmente a isso a gente
precisa ter grana, né? E a gente não tem essa condição, nenhum de nós temos.
E aí a gente tem que, a gente vive assim, faz uma corrida, pára, vai numa reu-
nião, faz outra corrida, pára, vai fazer uma coisa com o motorista, vai, então
isso demora, demanda tempo, é um trabalho de formiguinha [...] Se pelo me-
nos o sindicato tivesse condição de remunerar essas pessoas que trabalham lá,
o sindicato ia crescer, porque ele já tá crescendo sem ter essa dedicação total,
porque a gente cresce de acordo com a necessidade do motorista e o motorista
tem muitas necessidades.” (Entrevistada 5, MG, 21.07.2021)
(432) Todos os grifos em entrevistas foram feitos pela autora deste livro.
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