O constitucionalismo

AutorKildare Gonçalves Carvalho
Ocupação do AutorProfessor licenciado de Direito Constitucional na Faculdade de Direito Milton Campos
Páginas235-253
SUMÁRIO
1. Conceito – 2. Evolução histórica – 3. O neoconstitucionalismo – O constitucionalismo do
futuro – O transconstitucionalismo – 4. O constitucionalismo no Brasil.
1. CONCEITO
O termo constitucionalismo apresenta vários signicados.1 Embora se enquadre numa
perspectiva jurídica, tem alcance sociológico. Em termos jurídicos, reporta-se a um sistema
normativo, enfeixado na Constituição, e que se encontra acima dos detentores do poder;
sociologicamente, representa um movimento social que dá sustentação à limitação do poder,
inviabilizando que os governantes possam fazer prevalecer seus interesses e regras na condu-
ção do Estado. De qualquer modo, o constitucionalismo não pode ser entendido senão in-
tegrado com as correntes losócas, ideológicas, políticas e sociais dos séculos XVIII e XIX.
André Ramos Tavares identica quatro sentidos para o constitucionalismo: “Numa primeira
acepção, emprega-se a referência ao movimento político-social com origens históricas bas-
tante remotas que pretende, em especial, limitar o poder arbitrário. Numa segunda acepção,
é identicado com a imposição de que haja cartas constitucionais escritas. Tem-se utilizado,
numa terceira concepção possível, para indicar os propósitos mais latentes e atuais da função
e posição das constituições nas diversas sociedades. Numa vertente mais restrita, o consti-
tucionalismo é reduzido à evolução histórico-constitucional de um determinado Estado.2
1 Lembra Adhemar Ferreira Maciel que constitucionalismo “é termo recente, embora sua ideia seja prati-
camente tão velha quanto a civilização ocidental. Ainda que Platão pudesse ter a cabeça no céu, tinha
seguramente os pés bem plantados na terra. Foi observando os governos de sua época que idea lizou
um Estado constitucional, factível de implantação. Díon, amigo e discípulo do lósofo, cou entusi-
asmado com as lições do mestre, mais tarde externadas na República. Sonhou em ver seu cunhado,
Dionísio I – o tirano de Siracusa –, transformado em rei-lósofo. Prático, o soberano não cedeu, pois
sabia que seu reino se esfacelaria em diversas Cidades-Estados, ensejando a invasão da horda cartag-
inesa. Contrariado, acabou por entregar Platão ao embaixador de Esparta, que o vendeu como escravo.
Com a morte de Dionísio, subiu ao trono Dionísio II, que contava 30 anos de idade. Díon viu a opor-
tunidade única para que Platão pusesse em prática sua paideia, moldando o caráter do jovem monarca.
Ainda que com certa hesitação, Platão aceitou a empreitada, empreendendo nova viagem à Sicília. Já
era velho, pois beirava os setenta. Como se sabe, a experiência político-pedagógica, que está narrada
na Carta n. VII, foi um fracasso, ou, como rotula o próprio Platão, ‘uma tragédia. Mais tarde, ao es-
crever as Leis, Platão se penitenciou. Passou a ver na ‘lei’, não nos homens, a garantia do governado. A
essa busca político-jurídica pelo primado da lei, sobretudo de uma lex fundamentalis, é que se chama
Constitucionalismo” (MACIEL. Revista de Informação Legislativa, v. 39, p. 13-14).
2
TAVARES. Curso de direito constitucional, p. 1.
O CONSTITUCIONALISMO 7
Book -DIREITO CONSTITUCIONAL- Kildare.indb 235 8/11/17 10:17 AM
KILDARE GONÇALVES CARVALHO DIREITO CONSTITUCIONAL • Volume 1
TEORIA DO ESTADO E DA CONSTITUIÇÃO
236
Canotilho, embora reconheça a existência de vários constitucionalismos (o constitucio-
nalismo inglês, o constitucionalismo americano, o cons titucio nalismo francês), prefere falar
em movimentos constitucionais porque isso permite recortar desde já uma noção básica de
cons titucionalismo. Para ele, constitucionalismo é a teoria (ou ideologia) que ergue o prin-
cípio do governo limitado indispensável à garantia dos direit os em dimensão estrutu rante
da organização político-social de uma comunidade. Neste sentido o constitucionalismo mo-
derno representará uma técnica especíca de limitação do poder com ns garantísticos. É
no fundo uma teoria normativa da política, tal como a teoria da democracia ou a teoria
do liberalismo. Numa outra acepção – histórico-descritiva – fala-se em constitucionalismo
moderno (que pretende opor ao constitucionalismo antigo) para designar o movimento po-
lítico, social e cultural que, sobretudo a partir do século XVIII, questiona nos planos políti-
co, losóco e jurídico os esquemas tradicionais de domínio político, sugerindo, ao mesmo
tempo, a invenção de uma nova forma de ordenação e fundamentação do poder político.3
Consoante Uadi Lammêgo Bulos, o termo constitucionalismo tem dois signicados di-
ferentes: em sentido amplo, signica o fenômeno relacionado ao fato de todo Estado possuir
uma Constituição em qualquer época da humanidade, independentemente do regime polí-
tico adotado ou do perl jurídico que se lhe pretenda atribuir; em sentido estrito, signica
a técnica jurídica de tutela das liberdades, surgida nos ns do século XVIII, que possibilitou
aos cidadãos o exercício, com base em Constituições escritas, dos seus direitos e garantias
fundamentais, sem que o Estado lhes pudesse oprimir pelo uso da força e do arbítrio.4
Assinale-se que, como movimento político-social objetivando limitar o poder político
arbitrário, o constitucionalismo nem sempre se identica com a existência de uma Constitui-
ção escrita, bastando lembrar o constitucio nalismo não escrito da Inglaterra, como antece-
dente imediato das Constituições escritas do século XVIII. Note-se ainda que, como assinala
Karl Loewenstein, organizações políticas anteriores viveram sob governos constitucionais
sem a necessidade de articular limites estabelecidos para o exercício do poder político: tais
limitações se achavam tão enraizadas nas convicções da comunidade política e nos costumes
nacionais que eram respeitadas por governantes e governados.5
O constitucionalismo, todavia, como doutrina, envolve a necessidade de uma Consti-
tuição escrita para limitar o poder e garantir a liberdade, seja porque esta Constituição deve
proclamar os direitos fundamentais do homem e apresentar-se como uma norma imposta
aos detentores do poder estatal, seja porque ela obterá o equilíbrio necessário a que nenhum
deles possa acumular poderes e eliminar a liberdade. Neste sentido, o cons titucionalismo
é dotado de um conjunto de princípios básicos destinados à limitação do poder político
em geral e do domínio sobre os cidadãos em particular. O constitucionalismo é um arran-
jo institucional que assegura a diversicação da autoridade, para a defesa de certos valores
fundamentais, como a liberdade, a igualdade e outros direitos individuais. Como ideologia,
pode-se dizer que o constitucionalismo compreende os vários domínios da vida política,
social e econômica: neste sentido o liberalismo é constitucionalismo.
O constitucionalismo consiste na divisão do poder, para que se evite o arbítrio e a
prepotência, e representa o governo das leis e não dos homens, da racionalidade do direito
e não do mero poder.
3 CANOTILHO. Direito constitucional e teoria da constituição, p. 45/46.
4
BULOS. Constituição federal anotada, p. 7.
5 LOEWENSTEIN. Teoría de la constitución, p. 154.
Book -DIREITO CONSTITUCIONAL- Kildare.indb 236 8/11/17 10:17 AM

Para continuar a ler

PEÇA SUA AVALIAÇÃO

VLEX uses login cookies to provide you with a better browsing experience. If you click on 'Accept' or continue browsing this site we consider that you accept our cookie policy. ACCEPT