Estrutura do Estado

AutorKildare Gonçalves Carvalho
Ocupação do AutorProfessor licenciado de Direito Constitucional na Faculdade de Direito Milton Campos
Páginas65-148
SUMÁRIO
1. Sociedade e Estado – 2. Sociedades pré-estatais, infraestataise supraestatais – 3. Conceito de
Estado – 4. Natureza do Estado – 5. Evolução histórica do Estado – 6. Origem e justicação do Es-
tado – 7. Processos de formação e extinção do Estado – 8. Elementos do Estado – Considerações
iniciais – 9. Personalidade do Estado – 10. Formas de Estado – Conceito – 11. O Estado e a ordem
inter nacional – As organizações internacionais – 12. O Estado e a globalização – 13. Terrorismo
e Estado – 14. A crise do Estado.
1. SOCIEDADE E ESTADO
O Estado, modo especíco de organização política, é a base do Poder. Encarna o prin-
cípio da ordem e da coerência sobre o qual assenta a socie dade. É o Estado que possibilita a
integração e a unicação social.
O Estado compõe a substância e a essência da Constituição. A realidade da Constitui-
ção é inseparável da realidade do Estado. Daí a necessidade de se considerar o Estado como
matéria-objeto da Constituição.
Neste Capítulo são abrangidos temas referentes à Teoria do Estado e ao Direito Consti-
tucional, mas também próprios de uma Teoria da Constituição, por revelar a Constituição a
realidade do Estado, dando-lhe estrutura e conformação jurídicas.
O estudo do Estado pressupõe o conhecimento das formas de relações humanas.
O homem, como ser insuciente, percebe a existência do outro que lhe proporciona
abertura para a convivência e a coexistência, surgindo a sociedade.1
Não há, todavia, unanimidade de pensamento quanto ao conceito de sociedade. Em
seu sentido mais amplo, a sociedade refere-se à totalidade das relações sociais entre os ho-
mens. Mas, a m de evitar a ambiguidade deste conceito lato, que parece equiparar a socie-
dade a qualquer grupo social, tem-se entendido por sociedade o maior dos grupos a que um
indivíduo pertence, ou o grupo dentro do qual os membros compartilham dos elementos e
condições básicas de uma vida comum.
Examinando a formação da sociedade, Dalmo de Abreu Dallari aponta como elemen-
tos necessários para que um grupo humano possa ser reconhecido como sociedade, os se-
guintes: a) nalidade ou valor social; b) manifestações de conjunto ordenadas; c) poder social.
1 A existência humana, na perspectiva de seu dinamismo, projeta-se em seis dimensões básicas, isto é,
seis modos próprios de existir do homem: o econômico, o religioso, o da ciência, o da arte, o moral e
o político, sendo que nenhum deles se manifesta cronologicamente anterior aos demais, porém nas-
cem imediatamente com o homem, desde a sua origem, e durarão enquanto existir a espécie humana
(FREUND. L’essencedu politique, p. 5).
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Para aquele publicista, pode-se inicialmente dizer que, relativamente à nalidade ou valor
social, há os que negam a possibilidade de sua escolha, que são os deterministas, e os que
entendem ser possível a xação da nalidade social, por um ato de vontade – os nalistas –
sendo neste caso o homem sujeito de sua própria história, contribuindo ainda para as trans-
formações sociais. E a nalidade social almejada e livremente escolhida pelo homem é o bem
comum considerado pelo Papa João XXIII como “o conjunto de todas as condições de vida
social que consintam e favoreçam o desenvolvimento integral da personalidade humana”.
As manifestações de conjunto ordenadas, entendidas como ordem social e ordem jurídi-
ca, hão de ser harmônicas, para que se preserve a liberdade de todos. Para atender aos objetivos
a que se acham ligadas, devem atender a três requisitos: reiteração, ordem e adequação.
Necessário que os membros da sociedade se manifestem em conjunto reiteradamente.
Assim, os atos por eles praticados devem ser conjugados e integrados num todo harmônico,
podendo ser simples, se praticados por um só indivíduo, ou complexos, se praticados por
muitos indivíduos ou grupos sociais. Tais atos podem ainda resultar de um conjunto de atos
concomitantes ou sucessivos.
É possível que se dê tratamento cientíco às ações humanas em sociedade, havendo leis
que regem a vida social. Considera-se, no entanto, que há uma diferenciação entre as leis da
natureza, ou do mundo físico, e as leis da ordem humana, ou do mundo ético. Consoante
Kelsen, a ordem da natureza se submete ao princípio da causalidade, ou seja, se ‘A’ (condição)
é – ‘B’ (consequência) é. Assim, vericada a mesma condição, ocorrerá a mesma consequên-
cia, não havendo possibilidade de qualquer interferência que altere a condição. Exemplo: o
aquecimento de um metal (condição) acarreta sempre a sua dilatação (consequência). Já para
a ordem humana aplica-se o princípio da imputação: se ‘A’ (condição) é – ‘B’ (consequência)
deve ser. Neste caso, a condição deve gerar determinada consequência, mas pode não gerar.
Este dever-ser não implica valor moral ou político. Exemplo: aquele que rouba deve ser preso.
Interferindo, no entanto, fator humano ou natural, a consequência pode não se vericar.
A adequação, como terceiro requisito das manifestações de conjunto, signica que cada
indivíduo, cada grupo humano ou a própria sociedade como um todo, devem orientar suas
ações segundo as exigências e as possibilidades da realidade social, objetivando a realização
do bem comum. Devem, ademais, ter em conta as características da realidade social, assim
sintetizadas por Heller: a) não existe qualquer realidade social totalmente desligada da na-
tureza, como não existe natureza onde existir sociedade humana não submetida a fatores
histórico-culturais; b) a realidade social é um todo complexo, que resulta de fatores históri-
cos, inerentes à natureza dos indivíduos, e de fatores ocasionados pela atividade voluntária
do homem.
Finalmente, de considerar que o poder social sempre existiu em qualquer sociedade
humana. Consiste na faculdade de alguém, ou um grupo social, de impor sua vontade a
outrem ou a outro grupo social, limitando-lhes as alternativas de comportamento. O poder
é fenômeno social e de bilateralidade.2
Os fundamentos da sociedade podem ser reduzidos a duas teorias: a teo ria orgânica e
a teoria mecânica.
Para os organicistas, o homem, como ser eminentemente social, não pode viver fora da
sociedade. A sociedade é, assim, um organismo composto de várias partes, com funções dis-
2 DALLARI. Elementos de teoria geral do Estado, p. 16-38. O poder social e o poder político serão exa-
minados adiante, ao tratarmos dos elementos constitutivos do Estado.
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tintas, mas que concorrem para a vida do todo. São organicistas, dentre outros, Aristóteles,
Platão, Comte, Bluntschli, Savigny.
Os mecanicistas armam que a base da sociedade é o consentimento e não o princípio
da autoridade. A vontade livre e autônoma do indivíduo constitui um valor que a sociedade
deve legitimar. Os mecanicistas partem da existência de um estado de natureza (apenas ló-
gico e não histórico) anterior ao estado de sociedade, para explicar o seu fundamento com
base na vontade livre dos indivíduos (Locke e Rousseau).
Ao se relacionar com o outro, o homem trava relações sociais que podem revestir-se de
várias modalidades.
Num primeiro grupo estão as relações sociais espontâneas e organizadas, que dão ori-
gem à comunidade e à sociedade.
Comunidade e sociedade são categorias sociológicas puras relacionadas com a convi-
vência social. Foram formuladas pelo sociólogo alemão F. Tönnies (1855-1936).
A base de distinção entre comunidade e sociedade é psicológica e parte de uma oposi-
ção entre dois tipos de vontade – a vontade natural e a vontade reexiva.
A distinção entre as duas vontades leva às duas maneiras pelas quais os homens for-
mam grupos sociais: comunidade (gemeinscha), baseada na vontade orgânica, e sociedade
(gesellscha), baseada na vontade reexiva.
A comunidade atende às necessidades da vida orgânica e tem suas raízes no estado
primitivo e natural do indivíduo, no agrupamento da sua vida elementar: as relações entre
mãe e lho, homem e mulher, irmãos e irmãs.
Essas relações originárias se traduzem na vida comum, na convivência, na reciprocida-
de ou solidariedade pelo mútuo auxílio de vontades. No seio dessas relações orgânico-cor-
porais há uma ternura instintiva e espontânea do forte para com o mais fraco, um prazer de
ajudar e proteger intimamente relacionado com o prazer de possuir ou com a satisfação que
causa o poder próprio. A comunidade de sangue, como unidade de essência, se desenvolve
e especializa na comunidade de lugar, que tem sua imediata expressão na convivência local,
que, a seu turno, passa para a do espírito.
A comunidade de lugar tem por vínculo a vida sedentária, enquanto que a de espírito
é aquela propriamente humana, o tipo mais elevado de comu nidade. Há, portanto, três tipos
de comunidade: a) de sangue; b) de lugar ou local de vizinhança; c) de espírito ou de ami-
zade. Esta última surge de ações e concepções coincidentes. As relações de amizade e com-
panheirismo se estendem em sua forma espiritual pelo fato de se pertencer a uma mesma
localidade, cidade ou assembleia, e se fundam em relações de caráter orgânico e necessário.
A sociedade, ao contrário, é, por natureza, articial. Nela, as relações sociais funda-
mentam-se no cálculo e na representação. É dominada pela razão abstrata.
O reexivo prevalece sobre o espontâneo, o articial sobre o orgânico e natural. Baseia-
-se quase sempre em convenções contratuais.
As formas de relações sociais não se esgotam na distinção entre comunidade e socieda-
de. Dão origem a outras classicações de sociedades:
a) sociedades necessárias, em que ocorrem vinculações que se impõem aos indivídu-
os, como fundamentais e imprescindíveis – sociedade familiar, sociedade religiosa
e sociedade política;
b) sociedades contingentes, em que ocorrem relações meramente acidentais e circuns-
tanciais que aprimoram e facilitam o convívio humano – socie dades esportivas, so-
ciedades econômicas, sociedades lantrópicas, etc.;
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