Teoria dos direitos fundamentais

AutorKildare Gonçalves Carvalho
Ocupação do AutorProfessor licenciado de Direito Constitucional na Faculdade de Direito Milton Campos
Páginas621-675
SUMÁRIO
1. Histórico e concepções teórico-jurídicas – as gerações de direitos fundamentais – 2. Valor
jurídico das declarações de direitos – 3. Classicação – 4. Limites e funções dos direitos funda-
mentais – 5. Direitos fundamentais e relações jurídicas entre particulares – 6. Direitos republica-
nos – 7. As necessidades humanas e os novos direitos fundamentais – 8. Direito de resistência – a
desobediência civil – 9. Direitos e garantias individuais e os direitos sociais e econômicos: inten-
sidade normativa – 10. Direitos fundamentais atípicos e análogos – 11. Tratados internacionais
de direitos humanos e sua ecácia no direito interno – 12. Três declarações: 1776, 1789, 1948.
1. HISTÓRICO E CONCEPÇÕES TEÓRICO-JURÍDICAS
– AS GERAÇÕES DE DIREITOS FUNDAMENTAIS
Os direitos fundamentais constituem tema estudado pela Filosoa do Direito, pela Te-
oria do Estado, pelo Direito Constitucional e pelo Direito Internacional.
Iniciamos o estudo de uma teoria dos direitos fundamentais com uma abordagem
histórica, que consideramos de singular importância para a exposição do seu processo
evolutivo, por informar o sistema de valores e a concepção de mundo em torno da qual
ocorre a sua mutação. Não se pode, contudo, deixar de assinalar a natureza jurídico-po-
lítica desses direitos. No terreno da elaboração dogmática inerente à Ciência do Direito,
Jorge Miranda nos oferece o que denomina de “algumas sínteses, sistemas de cristaliza-
ção dos direitos fundamentais, teorias jurídicas ou pré-compreen sões dos direitos funda-
mentais”, advertindo que nenhuma delas vale autonomamente ou se impõe à margem do
Direito Positivo, nem se substitui ao esforço do jurista ou fornece soluções práticas, mas
é apenas auxílio de interpretação, construção e sistematização jurídica. São em número
de sete as principais teorias: a liberal, a insti tucionalista, a conservadora, a dos valores, a
democrática, a social e a socialista marxista. Diz-se então que: “a) a teoria liberal tende
a reconduzir os direitos fundamentais a direitos de autonomia e de defesa, individuais
e fortemente subjectivados; b) a teoria institucionalista tende a reconduzi-las ou a inse-
ri-las em instituições, em enquadramentos objectivos e funcionais; c) a teoria conser-
vadora tende a subordinar a liberdade individual à autoridade e à tradição, bem como
a realçar a integração do indivíduo em corpos intermediários, com funções especícas;
d) a teoria dos valores tende a identicá-los com valores, com princípios éticos difundidos
na comunidade política e a que ca subordinada a acção individual; e) a teoria democráti-
ca tende a identicá-los com direitos de participação, ligados à realização da democracia e
à conformação por ela da vida colectiva; f) a teoria social tende a armar a dimensão social
e positiva de todos os direitos, inclusive as liberdades, e a salientar a natureza de direitos
subjectivos dos direitos sociais; g) a teoria socia lista marxista tende a realçar a dimensão
TEORIA DOS
DIREITOS FUNDAMENTAIS 15
Book -DIREITO CONSTITUCIONAL- Kildare.indb 621 8/11/17 10:17 AM
KILDARE GONÇALVES CARVALHO DIREITO CONSTITUCIONAL • Volume 1
TEORIA DO ESTADO E DA CONSTITUIÇÃO
622
econômica e concreta de todos os direitos, a dependência das condições materiais do seu
exercício e a sua necessária adstrição à estrutura da sociedade.1
Entre as teorias de justicação dos direitos humanos, destaca-se o procedi mentalismo
discursivo de Habermas, para quem os direitos não têm um fundamento subjetivo nem ob-
jetivo, mas intersubjetivo resultante das interações que se dão com o uso das liberdades co-
municativas pelos cidadãos, e decorrem da força do melhor argumento. O parâmetro de
legitimidade do Direito e do Estado como Democrático de Direito leva à concepção dos
direitos fundamentais universais, que se dividem em cinco categorias: a) os direitos deriva-
dos da conguração politicamente autônoma à maior medida possível de iguais liberdades
subjetivas de ação; b) os direitos ligados ao status de um membro numa associação volun-
tária de parceiros do direito; c) os direitos que resultam imediatamente da possibilidade de
postulação judicial de direitos e da conguração politicamente autônoma da proteção jurídi-
ca individual ; são direitos que se sustentam na pretensão de uma justiça independente e im-
parcial nos seus julgamentos, de forma a protegê-los por meio do poder de sanção do Estado;
d) os direitos de participação nos processos de formação da opinião e da vontade, nos quais
os civis exercitam sua autonomia política e através dos quais eles criam direto legítimo; e)
os direitos que se ligam às condições de vida garantidas social, técnica e ecologicamente, na
medida em que isso for necessário para um aproveitamento, em igualdade de chances, dos
direitos acima elencados.2
Os direitos individuais, entendidos como inerentes ao homem e oponíveis ao Estado,
surgiram em ns do século XVIII, com as declarações de direitos na França e nos Estados
Unidos.3 A origem dos direitos individuais do homem, para Alexandre de Moraes, “pode ser
apontada no antigo Egito e Mesopotâmia, no terceiro milênio a.C., onde já eram previstos
alguns mecanismos para proteção individual em relação ao Estado. O Código de Hammu-
rabi (1690 a.C.) talvez seja a primeira codicação a consagrar um rol de direitos comuns a
todos os homens, tais como a vida, a propriedade, a honra, a dignidade, a família, prevendo,
igualmente, a supremacia das leis em relação aos governantes”.4
Não existiram na Antiguidade grega e romana, não obstante a referência estoicista às
ideias de dignidade e igualdade. A polis grega e a civitas romana absorviam o homem na
sua dimensão individual, não se manifestando a liberdade como direito autônomo: livre era
1 MIRANDA. Manual de direito constitucional, t. 4, p. 46-48.
2 HABERMAS. Direito e democracia. Entre facticidade e validade, v. I, p. 159-160. Cf. ainda SAMPAIO.
Direitos fundamentais, p. 59-133, em que aborda, de forma ampla e exaustiva, as teorias de justicação
dos direitos humanos.
3 Os direitos individuais, acima mencionados, como se examinará neste Capítulo, não esgotam os
direitos do homem na sua historicidade. Com efeito, “os direitos não nascem todos de uma vez.
Nascem quando devem ou podem nascer. Nascem quando o aumento do poder do homem sobre
o homem – que acompanha inevitavelmente o progresso técnico, isto é, o progresso da capacidade
do homem de dominar a natureza e os outros homens – ou cria novas ameaças à liberdade do
indivíduo, ou permite novos remédios para as suas indigências” (BOBBIO. A era dos direitos, p. 6).
De qualquer perspectiva que se lhes considere, os direitos do homem são universais, mantendo,
contudo, seu caráter de temporalidade, pelo que se revelam na história em gerações o u dimen-
sões, relacionadas com o seu alargamento objetivo e subjetivo. Afasta-se, nessa concepção, a
inerência dos direitos fundamentais, como se fossem um DNA da pessoa.
4 MORAES. Direitos humanos fundamentais, p. 6.
Book -DIREITO CONSTITUCIONAL- Kildare.indb 622 8/11/17 10:17 AM
TEORIA DOS DIREITOS FUNDAMENTAIS
DIREITO CONSTITUCIONAL • Volume 1
TEORIA DO ESTADO E DA CONSTITUIÇÃO
623
o cidadão que gozava de capacidade para se integrar no Estado, participando das decisões
políticas. Mesmo nas Artes e na Religião, não se concebia o homem na sua individualidade,
já que era absorvido pelo todo, como dimensão da comunidade política. Nada obstante,
destaque-se a importância da Lei das XII Tábuas, redigida no período republicano de Roma,
como norma escrita consagradora das liberdades individuais, da propriedade e da proteção
dos cidadãos contra o Estado, e que resultou da luta por igualdade encabeçada pela classe
mais oprimida, a dos plebeus.
O cristianismo é apontado como marco inicial dos direitos fundamentais, manifesta-
dos nas parábolas de Jesus sobre o reino dos céus: a César o que é de César e a Deus o que é
de Deus. “Os direitos fundamentais do ho mem foram pregados por Jesus”, é o que, em livro
dedicado ao tema, fala João de Oliveira Filho.5 Nesse sentido, observa ainda José Carlos Viei-
ra de Andrade que, “no seguimento da tradição cristã, o poder temporal deixa de submeter
o poder espiritual (pelo contrário, haveria de defender-se a sua ordinação a este último),
tornando-se um poderio limitado, em contraposição ao totalitarismo da polis”.6
Na Inglaterra medieval, os direitos fundamentais foram marcados pelo pragma-
tismo e significaram concessões ou privilégios para a Igreja, nobreza, corporações,
não se reconhecendo direitos universais, mas concretos, em relação aos que os subs-
creviam: a Magna Carta Libertatum, de João Sem-Terra, se obrigava a respeitar alguns
direitos, como o direito à vida, a administração da justiça, garantias do processo cri-
minal,7 a Petition of Rights, de 1628,8 assinada por Carlos I, o Habeas Corpus Amend-
5 OLIVEIRA FILHO. Origem cristã dos direitos fundamentais, p. 12.
6 ANDRADE. Os direitos fundamentais na constituição portuguesa de 1976, p. 13.
7 Magna Carta Libertatum: “1. A Igreja da Inglaterra será livre e manterá os seus direitos íntegros e as suas
liberdades intocadas; e é nossa vontade que assim seja observada; o que é evidente pelo fato de que, antes de
principiar a atual querela entre nós e nossos barões, nós, voluntária e espontaneamente, garantimos e pela
nossa carta conrmamos a liberdade de escolha (dos superiores eclesiásticos), a qual é reconhecida como
da maior importância e verdadeiramente essencial para a Igreja inglesa (omissis). 12. Nenhuma taxa de isen-
ção do serviço militar (scutagium) nem contribuição alguma será criada em nosso reino, salvo mediante o
consentimento do conselho comum do reino, a não ser para resposta da nossa pessoa, para armar cavaleiro
o nosso lho mais velho e para celebrar, uma única vez, o casamento de nossa lha mais velha; e para isto,
tão somente, uma contribuição razoável será lançada. 39. Nenhum homem livre será detido ou preso, nem
privado de seus bens (disseisiatur), nem banido (utlagetur) ou, de algum modo, prejudicado (destruatur),
nem agiremos ou mandaremos agir contra ele, senão mediante um juízo legal de seus pares ou segundo a lei
da terra (nisi per legale iudicium parium suorum vel per legem terre).” – Texto traduzido por Fábio Konder
Comparato, que, sobre a graa da Magna Carta observa: o vocábulo, oriundo da língua grega, era grafado
no latim clássico com ch, mas foi usado, durante toda a Idade Média, sem h (COMPARATO. A armação
histórica dos direitos humanos, p. 67, 79-81).
A Magna Carta Libertatum foi conrmada seis vezes por Henrique III; três vezes por Eduardo I; ca-
torze vezes por Eduardo III; seis vezes por Ricardo II; seis vezes por Henrique IV; uma vez por Hen-
rique V, e uma vez por Henrique VI (MIRANDA. Textos históricos do direito constitucional, p. 13).
8 APetition of Rigths, na linha da Magna Carta , exige o respeito ao princípio do consentimento na tribu-
tação, no do julgamento pelos pares para a privação da liberdade, ou da propriedade, na proibição de
detenções arbitrárias, entre outros direitos e garantias.
Book -DIREITO CONSTITUCIONAL- Kildare.indb 623 8/11/17 10:17 AM

Para continuar a ler

PEÇA SUA AVALIAÇÃO

VLEX uses login cookies to provide you with a better browsing experience. If you click on 'Accept' or continue browsing this site we consider that you accept our cookie policy. ACCEPT