Direito constitucional e teoria da constituição

AutorKildare Gonçalves Carvalho
Ocupação do AutorProfessor licenciado de Direito Constitucional na Faculdade de Direito Milton Campos
Páginas1-63
SUMÁRIO
1. Direito Constitucional – Conceito, objeto e conteúdo cientíco – 2. Direito Constitucional –
Teoria Geral do Estado e Ciência Política – Sociologia Política e Constitucional – História Cons-
titucional – 3. Relações do Direito Constitucional com outros ramos do Direito – 4. Metodologia
do Direito Constitucional – 5. Fontes do Direito Constitucional – 6. Sistemas Constitucionais – 7.
A Teoria da Constituição – Signicado, genealogia e objeto.
1. DIREITO CONSTITUCIONAL – CONCEITO,
OBJETO E CONTEÚDO CIENTÍFICO
O Direito Constitucional refere-se à estruturação do poder político, seus contornos
jurídicos, limites de sua atuação, e aos direitos humanos fundamentais.
O Direito Constitucional não existe sem o poder, pressuposto da existência do político.
Trata-se, contudo, do poder juridicamente vinculado ao Direito o que dá sentido e constitui
objeto do Direito Constitucional. Por isso é que o estudo do Direito Constitucional envolve
o conhecimento do Estado Democrático de Direi to, seus paradigmas e problemas.
Consoante Canotilho, o Direito Constitucional é um intertexto aberto, ou seja, deve
muito a “experiências constitucionais, nacionais e estrangeiras; no seu ‘espírito’ transporta
ideias de lósofos, pensadores e políticos; os seus ‘mitos’ pressupõem as profundidades dos
arquétipos enraizados dos povos”. O Direito Constitucional, no entanto, não se dissolve na
história, é um direito vigente e vivo e como tal deve ser ensinado.1
São características do Direito Constitucional, ou traços distintivos que permitem singu-
larizá-lo no contexto mais vasto do Direito em que se integra: a) supremacia, pois o Direito
Constitucional se localiza no cume da hierarquia da ordem jurídica, supremacia que deve ser
entendida como hierárquico-normativa, não se falando da problemática do Direito Supraposi-
tivo, que se considera acima do próprio Direito Constitucional; b) transversalidade, no sentido
de que o posicionamento do Direito Constitucional no ápice do ordenamento jurídico implica
numa preocupação de traçar as grandes opções da comunidade política, relacionando-se com
múltiplos temas relevantes à convivência coletiva; c) politicidade, já que tem por objeto o es-
tatuto do poder político, e que impõe, muitas vezes, aceitar que algumas decisões possam ser
livremente determinadas por critérios políticos, não controláveis juridicamente ao nível dos
respectivos parâmetros próprios; d) estadualidade, porquanto o Direito Constitucional é, a um
passo, sujeito e objeto do próprio Estado, embora não se desconheça que o Direito não tenha
uma origem necessariamente estatal, valorizando-se, nos dias que correm, as preocupações
pluralistas, seja no domínio das fontes, seja no das entidades que se submetem ao Direito; e)
1 CANOTILHO. Direito constitucional e teoria da constituição, p. 15.
DIREITO CONSTITUCIONAL
E TEORIA DA CONSTITUIÇÃO 1
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KILDARE GONÇALVES CARVALHO DIREITO CONSTITUCIONAL • Volume 1
TEORIA DO ESTADO E DA CONSTITUIÇÃO
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legalismo, pois, ao nível das fontes do Direito, o Direito Constitucional expressa uma especíca
tendência no modo como sublinha importância de uma delas na produção de normas e princí-
pios constitucionais, inuenciado por uma concepção legalista; f) fragmentaris mo, eis que, em
razão de sua função ordenadora, o Direito Constitucional se apresenta fragmentário, no senti-
do de que raramente lhe cabe efetuar uma normatização completa das matérias de que cuida,
mas deixa muitos de seus elementos a outros níveis regulatórios; g) juventude, à consideração
de que o Direito Constitucional, ao lado de alguns ramos do Direito Público, como o Direito
Administrativo e o Direito Internacional Público, comunga de uma mesma juventude, pelo
pouco tempo que medeia entre a sua criação e a atua lidade; h) abertura, estando muito longe
de ser um sistema normativo fechado, que decorre também do seu próprio caráter fragmen-
tário. Por outras palavras, o Direito Constitucional aceita complementari dades e recepções de
outros ordenamentos, internacionais e internos, mantendo com eles relações intersistemáticas,
sobretudo no âmbito dos direitos fundamentais.2
O Direito Constitucional estuda a Constituição. Considerando a dico tomia do Direito
em Público e Privado, o Direito Constitucional é o ramo por excelência do Direito Público.
A divisão do Direito em Público e Privado prende-se à utilidade e à necessidade, so-
bretudo didáticas, pois, do ponto de vista da ciência jurídica, têm sido falhos, insucientes e
obscuros os critérios distintivos. Não são poucos esses critérios. Analisando-os, destaca-se
inicialmente o critério do interesse ou da utilidade contido no Direito Romano: o Direito
Público versa sobre o modo de ser do Estado; o Privado, sobre o interesse dos particulares.
Com efeito, algumas coisas são úteis publicamente, outras privadamente. É falho esse crité-
rio, porque não há como separar o interesse individual do público, já que ambos se inter-
penetram. Assim, a norma jurídica não visa apenas ao interesse do Estado ou do particular.
Tome-se como exemplo o Direito de Família, cujas normas, notadamente as que se referem
ao casamento, interessam tanto ao indivíduo quanto ao Estado, quando se trata da estabili-
dade familiar. Também o ensino privado, que, não obstante situar-se no âmbito do Direito
Privado, interessa igualmente ao Direito Público.
Buscou-se então o fundamento da distinção no interesse predominante. Se a norma
objetiva garantir diretamente o interesse privado e indiretamente o da sociedade, trata-se
de Direito Privado; na hipótese contrária, estaría mos diante de norma de Direito Público. A
mesma diculdade antes apontada, qual seja, a de assinalar o interesse predominante numa
determinada norma jurídica, pela interpenetração do interesse público e individual, impede
a aceitação desse critério.
Outros autores fundamentam a divisão na qualidade dos sujeitos (critério subjetivo)
mostrando que, no Direito Público, o titular de direitos é o Estado, dotado de império ou
poder de supremacia, e, no Privado, titulares são as pessoas físicas ou jurídicas (particula-
res). Não satisfaz também essa distinção, pois o Estado comparece, e até com frequência, em
contratos de locação, compra e venda, situando-se no mesmo nível do particular, sem aquela
posição de supremacia.3
2 GOUVEIA. Manual de direito constitucional, v. 2, p. 39-45.
3 A própria supremacia do interesse público sobre o interesse privado, como um paradigma do Direito
Administrativo, tem sido objeto de releitura e revisão, após o advento da Constituição de 1988, em es-
pecial se considerarmos que elementos privados se acham inseridos nos próprios ns do Estado, como
no preâmbulo e nos direitos fundamentais. Ademais, um princípio administrativo não pode apresen-
tar-se como regra de preferência. Como o texto constitucional de 1988 é orientado pelo princípio da
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Finalmente, mencione-se o critério formal, baseado na forma externa das relações
jurídicas, vale dizer, será privada a norma que tratar de relação jurídica de coordenação
(contratos de compra e venda), com igualdade das partes na relação jurídica, e será pública
a que versar relação jurídica de subordinação, protegendo interesses preponderantemente
públicos. Tal critério é questionável, pois deixaria à margem o Direito Internacional Público,
que regula relações de coordenação com igualdade jurídica dos Estados que têm interesses
de igual valor no âmbito das relações internacionais.
Além desses critérios distintivos, Dimitri Dimoulis acrescenta: a) a politicidade, cri-
tério pelo qual o caráter político é decisivo para informar a relação jurídica, o que faz com
que os assuntos de relevância política são regidos pelo Direito Público e os demais pelo Di-
reito Privado; e, b) a imperatividade, que considera de direito público todas as normas que
têm caráter imperativo, ou seja, são obrigatórias para todos, e constitui um ius cogens, e de
direito privado as que têm feição de ius dispositivum, compondo um direito exível, que se
aplicará somente se os interessados não decidirem de forma diferente. Apesar de considerar
este critério plausível, o autor esclarece que um exame mais cuidadoso do direito positivo
indica que muitos assuntos de interesse particular são regulamentados por normas que não
permitem exceção nem negociação, e de forma inversa, a aplicação de regras de Direito Pú-
blico depende da vontade dos particulares, como a necessidade de ação penal privada, para
a punição de delitos tipicados no direito penal.4
Para Tercio Sampaio as grandes dicotomias no direito, como direito público e direito
privado, são topoi, pois não se pode classicar as normas segundo uma tipologia rigorosa.
Segundo o autor, “a profusão de normas não permite sua organização teórica na forma de
uma denição genérica que se especica lógica e rigorosamente em seus tipos. As diversas
classicações e seus critérios surgem ao sabor dos problemas que a dogmática enfrenta na
decidibilidade, os quais exigem distinções sobre as distinções. Os critérios mencionados são
então topoi, isto é, lugares comuns, pontos de vista comumente aceitos que permitem classi-
cações regionais e provisórias, sem alcançar uma sistematicidade abrangente.5
O campo das relações públicas, a esfera do público ou o público dene-se a partir do
conjunto das relações imperativas de mando e obediência, de cuja dialética resulta a ordem
política. E em contraposição ao público, o conjunto de relações no seio de uma comunidade
que refoge à esfera do mando e da obediência, compõe o campo das relações privadas. Des-
se modo, não há como denir, “senão por exclusão, a esfera do privado, pois as fronteiras
entre ambos são extremamente variáveis: mudam conforme a época, o regime político e os
condicionamentos da realidade social. Como tudo em política, os limites entre o público e o
privado também sujeitam-se à divergência de opiniões e a conitos, tratando-se de mais uma
área alcançada pela sua natureza polêmica. A xação dessas fronteiras depende, portanto, de
dignidade da pessoa humana, há a necessidade de que se proteja o interesse do indivíduo quando ame-
açado face aos interesses gerais da coletividade. Arma-se ainda que as relações de prevalência entre
interesses públicos e privados não comportam determinação a priori, em abstrato, devendo ser busca-
das, em cada caso concreto, com a utilização do postulado da proporcionalidade (Cf.: BINENBOJM.
Uma teoria do direito administrativo: direitos fundamentais, democracia e constitucionalização. ÁVI-
LA. Repensando o “Princípio da supremacia do interesse público sobre o particular.” In: WOLFGANG
(ORG.). O direito público em tempos de crise: Estudos em homenagem a Ruy Ruben Ruschel).
4 DIMOULIS. Manual de introdução ao estudo do direito: denição e conceitos básicos; norma jurídica;
fontes, interpretação e ramos do direito; sujeito de direito e fatos jurídicos; relações entre direito, jus-
tiça, moral e política; direito e linguagem, p. 275-276.
5 FERRAZ JUNIOR. Introdução ao estudo do direito, p.132.
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