Constituições brasileiras

AutorKildare Gonçalves Carvalho
Ocupação do AutorProfessor licenciado de Direito Constitucional na Faculdade de Direito Milton Campos
Páginas583-619
SUMÁRIO
1. Antecedentes – 2. A independência e a Constituição de 1824 – 3. A Constituição de 1891:
república e federação – 4. A revolução de 1930 e a Constituição de 1934: uma constituição de
transição – 5. A Constituição de 1937: eclipse do constitucionalismo – 6. A redemocratização na
Constituição de 1946 – 7. O golpe militar, os atos institucionais e a Constituição de 1967/1969 –
8. A Constituição de 1988: uma constituição de princípios, de direitos fundamentais e de justiça
social – 9. Revisão e emendas à Constituição de 1988.
1. ANTECEDENTES
Após seu descobrimento, o Brasil, como colônia de Portugal, passou por várias estru-
turas de administração e de governo.
No século XVI, em que o país se connava na faixa litorânea, surgiram as feitorias, onde
não havia nenhum regime jurídico de organização: dominava a vontade do feitor. Segundo
Afonso Arinos, a despeito de ser o estudo das feitorias ponto obscuro da nossa historiograa,
o pouco que se sabe a respeito delas permite-nos assentar algumas noções gerais, como a de
que as feitorias, no Brasil, eram muito diferentes daquelas sediadas em cidades civilizadas.
As daqui constituíam apenas abrigos para reuniões e proteção das diferentes mercadorias à
espera de transporte. Seriam instalações muito primitivas, espécies de galpões, cercados por
muralhas defensivas de pau a pique, ao jeito dos índios, e destinadas a defender os brancos
que aqui viviam.1
Para preservar a posse da conquista americana, envia o Rei a armada de Martim Afon-
so de Sousa (1530-1533), que tinha como objetivo patrulhar a costa, estabelecer uma colônia
através da concessão não hereditária de terra aos povoadores que trazia (São Vicente, 1532),
e explorar a terra para sua efetiva ocupação.
O período das capitanias donatárias ou hereditárias (1534-1549) sucedeu à expedição
de Martim Afonso e durou até a instalação do Governo-Geral. Os donatários recebiam uma
doação da Coroa (denominavam-se “Cartas de Doação” os títulos de concessão), pela qual se
tornavam possuidores, mas não proprietários da terra. A posse dava aos donatários extensos
poderes na esfera econômica e na administrativa. Os donatários, além de deter competência,
dentre outras, para arrecadar tributos, tinham o monopólio da justiça, autorização para fundar
vilas, doar sesmarias, alistar colonos para ns militares e formar milícias sob seu comando.2
1 FRANCO. Desenvolvimento da civilização material no Brasil, p. 40.
2 Assinala Boris Fausto que as “capitanias foram sendo retomadas pela Coroa, ao longo dos anos, através de
compra e subsistiram como unidade administrativa, mas mudaram de caráter, por passarem a pertencer
ao Estado. Entre 1752 e 1754, o Marquês de Pombal completou praticamente o processo de passagem das
capitanias do domínio privado para o público” (História do Brasil, p. 45-46).
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À exceção das Capitanias de São Vicente e Pernambuco, as demais fracassaram, seja
por falta de recursos, seja por inexperiência, seja pelos ataques dos índios, passando a Co-
roa portuguesa a estabelecer os governos-gerais (1549-1572). Foi enviado ao Brasil Tomé
de Sousa, primeiro governador-geral, vindo com ele os primeiros jesuítas. Suas atribuições,
independentemente dos privilégios concedidos aos donatários nos limites de suas capitanias,
foram xadas no “Regimento do Governo-Geral”, de 1548, que fazia referência à criação de
uma nova cidade (foi construída São Salvador, capital do Brasil até 1763).
O “Regimento do Governo-Geral” é documento tido por certos autores como a primei-
ra “Constituição” do Brasil.
Os esforços dispersos no âmbito das Capitanias donatárias eram agora superados pela
centralização dos recursos mais amplos da Coroa. Foram criados os cargos de ouvidor, a
quem cabia administrar a justiça, o de capitão-mor, responsável pela vigilância da costa, e
o de provedor-mor, encarregado do controle e crescimento da arrecadação. O Senado da
Câmara exercia, nas cidades e vilas, a administração local, com inuência, portanto, na vida
política da Capitania.
Em 1640 é provido o primeiro vice-reinado do Brasil, cuja estrutura político-admi-
nistrativa era regida pelas Ordenações Filipinas. Nesse período, não ocorreram substanciais
modicações na estrutura político-administrativa do Brasil. Mudou-se apenas o nome de
governador-geral para vice-rei, de capitão-mor para governador e capitão-general de capi-
tania. A despeito da existência de um vice-rei, os governadores e os capitães-generais das
capitanias entendiam-se diretamente com o governo da Metrópole, sendo as relações com o
vice-rei apenas cerimoniosas.
No Brasil-colônia, as leis profusas e confusas, na expressão do historiador João Francis-
co Lisboa, facilitavam a corrupção e o patronato. Não havia um sistema jurídico organizado.
A legislação colonial “era um emaranhado de normas. As mais importantes estavam contidas
nas consolidações, como foram as Ordenações Afonsinas, vigentes no início do século XVI,
as Ordenações Manuelinas, que vigoraram até 1603, e as Ordenações Filipinas, dessa data
em diante. Além das Ordenações, vigiam no Brasil colonial as normas do direito canônico,
do direito romano (subsidiariamente nas decisões judiciais), a jurisprudência metropolitana
e colonial, e os costumes. Administrativamente, as autoridades coloniais orientavam-se por
vários documentos, entre os quais os ‘regimentos’, instruções dadas a pessoas e instituições
para o desempenho de suas funções. Outros atos legais e administrativos moviam a em-
perrada máquina estatal, como as leis ordinárias editadas pelo rei, os alvarás (que xavam
determinações em geral válidas por um ano), as cartas régias (forma de comunicação com
as autoridades subalternas para a execução de ordens especícas), os decretos (quase sempre
determinações a juízes e tribunais), provisões e consultas (decisões de órgãos colegiados),
portarias (determinações reais a outras autoridades, referentes a despachos em processos e
passaportes)”.3
A administração colonial funcionou em quatro planos distintos, embora interdepen-
dentes: o governo metropolitano, a administração central colonial, as administrações regio-
nais e a administração local.4
De qualquer modo, no período colonial, não houve uma cultura brasileira construída
no dia a dia das relações sociais, “no embate sadio e construtivo das posições e pensamentos
3 WEHLING et al. Formação do Brasil colonial, p. 313.
4 WEHLING et al. Formação do Brasil colonial, p. 313- 314.
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divergentes, do jogo de forças entre os diversos segmentos formadores do conjunto social.
Com a devida precaução, salvo exceções que conrmam a regra, foi a vontade monolítica
imposta que formou as bases culturais e jurídicas do Brasil colonial. A colonização foi um
projeto totalizante, cujo objetivo era ocupar o novo chão, explorar os seus bens e submeter
os nativos ao seu império pela força, sempre que necessário. O mesmo se deu com os negros,
trazidos aqui na condição de escravos. A construção de uma cultura e identidade nacionais,
por conseguinte, nunca foi uma empreitada levada a sério no Brasil”.5 É a experiência portu-
guesa do Estado patrimonial, entendido como aquele que, sob o governo monárquico, tem
o rei como senhor de toda a riqueza territorial, do comércio e empreendimentos, cercado
por servidores que a ele se prendem por uma relação de signicativa dependência. Além
do rei como único proprietário, há a presença de um estamento (quadro administrativo),
que se apropria dos poderes de mando e das oportunidades econômicas.6 Por isso mesmo é
que “como resultado de nossa estruturação sob a inuência do patrimonialismo português,
falta-nos, ainda hoje, um Estado racional e despersonalizado, decorrendo daí, de um lado,
a distinção precária entre o público e o privado, com a apropriação dos cargos e funções
públicas (tomadas como coisa particular) pelos seus respectivos detentores, e, de outro, a
precariedade da segurança do indivíduo perante as possibilidades da atuação estatal”.7
A crise da colonização portuguesa no Brasil vericou-se no nal do século XVIII e
início do século XIX. Na Europa ocidental, “traço político importante da nova época foi
o constitucionalismo. Em lugar do que lhes parecia (aos liberais e democratas) a anarquia
político-administrativa e legal do Antigo Regime, propunham uma vida social e política
planejada e organizada através da constituição. Os políticos e intelectuais iluministas aspi-
ravam trazer para as relações sociais a ordem e o equilíbrio que viam na natureza. Criaram,
durante e Revolução, constituições excessivamente idealistas, num exercício de engenharia
social que acabou por se distanciar da realidade, ainda mais quando foi exportado para ou-
tros contextos históricos, como aconteceu com a Constituição de Cádiz (1812) e com os
projetos das constituições latino-americanas, inclusive no Brasil. A crise da colonização e a
própria independência do Brasil se explicam por este choque entre, de um lado, um mundo
que se transformava e invadia a Colônia, com seus produtos, suas ideias e seus interesses e,
de outro, a velha ordem de um império decadente”.8 O esgotamento da sociedade tradicional
e pré-industrial se deu num quadro histórico, econômico e social, em que surge a Revolução
Industrial (na Inglaterra), as revoluções agrária e demográca, e a substituição de uma socie-
dade de ordens por uma sociedade de classes.
No período do Reino Unido (1808-1822), ocorreram transformações radicais na es-
trutura administrativa do Brasil que, de administração secundária, passou a ser a sede do
Governo; de Colônia se transforma em Metrópole. Chegando ao Brasil com uma Corte, em
28 de janeiro de 1808, o príncipe-regente D. João promulgou, a 10 de março, um ato criando
três Secretarias de Estado. Logo depois, criou o Conselho de Estado. Quando da passagem
pela Bahia, assinou a Carta Régia, de 28 de janeiro de 1808, que extinguiu o monopólio
português sobre o nosso comércio e abriu os portos ao tráco internacional. Posteriormen-
5 CRISTIANI. O direito no Brasil colonial. In: Fundamentos de história do direito, p. 296-297.
6 Cf. FAORO. Os donos do poder: formação do patronato brasileiro, 2 vols.
7 KOZIMA. Instituições, retórica e o bacharelismo no Brasil. In: Fundamentos de história do direito, p.
315-316.
8 WEHLING et al. Formação do Brasil colonial, p. 327.
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