Constituição e normas constitucionais

AutorKildare Gonçalves Carvalho
Ocupação do AutorProfessor licenciado de Direito Constitucional na Faculdade de Direito Milton Campos
Páginas271-315
SUMÁRIO
1. Constituição – Conceito – 2. Concepções doutrinárias sobre a Constituição – 3. Classi-
cação das Constituições – 4. Elementos da Constituição – 5. Funções da Constituição – 6.
Bloco de constitucionalidade – 7. Normas constitucionais: Natureza, classicação e ecácia
– 8. Lacunas da Constituição – 9. Aplicação das normas constitucionais no tempo – 10. Apli-
cação das normas constitucionais no espaço.
1. CONSTITUIÇÃO – CONCEITO
A palavra Constituição vem do verbo latino constituere, signicando: estabelecer de-
nitivamente. Embora não apresente na sua origem a ideia de lei fundamental, o publicis-
ta Pablo Lucas Verdú adverte que a expressão latina rem publicam constituere denota ideia
semelhante à divulgada nos Estados Unidos e na Europa do século XVIII, qual seja, ato de
instituir um Estado, que se apoia num estatuto jurídico fundamental.1
A Constituição, para Aristóteles, tinha o sentido de princípio último da unidade e do
ordenamento social do Estado. Deste modo, toda sociedade política é constituída de uma
forma ou de outra, ela tem a sua maneira de ser, isto é, a sua constituição.
Com o sentido de lei fundamental do Estado, o termo constituição começou a ser em-
pregado depois da independência das colônias inglesas na América (1776) – que, em 1787
formaram os Estados Unidos – e da Revolução Francesa de 1789. Adotava-se até então a
expressão leis fundamentais que, no entanto, estabeleciam a ideia de uma superlegalidade,
xavam os princípios básicos da estruturação do poder e asseguravam alguns direitos fun-
damentais dos indivíduos e dos agrupamentos sociais.
Com o advento do regime constitucional moderno, que tem origem na revolução fran-
cesa e no direito anglo-saxônico, o conceito de constituição transpõe a ideia de imperium
para se xar no plano de organização democrática da sociedade. A constituição passa a ser o
resultado da vontade criadora do povo.
Interessa-nos, pois, analisar o termo Constituição não no seu sentido geral, ou insti-
tucional, qual seja, estrutura essencial de um ente ou de um organismo, conceito acolhido
também pelas ciências naturais, com o signicado de status, ordem, conformação, estrutura
essencial de um ente ou de um orga nismo em geral (constituição do corpo humano, por
exemplo), mas no seu sentido político e jurídico, relacionado com a organização fundamen-
tal do Estado.
José Afonso da Silva formula o seguinte conceito de Constituição: “A Constituição do
Estado, considerada sua lei fundamental, seria, então, a organização dos seus elementos es-
1 VERDÚ. Curso de derecho político, v. 2, p. 417.
CONSTITUIÇÃO E
NORMAS CONSTITUCIONAIS 9
Book -DIREITO CONSTITUCIONAL- Kildare.indb 271 8/11/17 10:17 AM
KILDARE GONÇALVES CARVALHO DIREITO CONSTITUCIONAL • Volume 1
TEORIA DO ESTADO E DA CONSTITUIÇÃO
272
senciais: um sistema de normas jurídicas, escritas ou costumeiras, que regula a forma do Es-
tado, a forma de seu governo, o modo de aquisição e o exercício do poder, o estabelecimento
de seus órgãos e os limites de sua ação.2
Carl Schmitt, para quem a essência da Constituição está no conjunto de decisões políticas
fundamentais do poder constituinte, que reetem a realidade do povo, como mencionamos
neste trabalho, no tópico dedicado à Teoria da Constituição, distingue quatro conceitos básicos
de Constituição: “o conceito absoluto (a Constituição como um todo unitário), o conceito re-
lativo (a Constituição como uma pluralidade de leis particulares), o conceito positivo (a Cons-
tituição como decisão de conjunto sobre o modo e a forma da unidade política), e o conceito
ideal (a Constituição assim chamada em sentido distintivo e com certo conteúdo).3
O termo “Constituição, como lei fundamental do Estado, consoante resenha feita por
José Pedro Galvão de Sousa, reportando-se a Carl Schmitt, tem vários sentidos: 1) norma
absolutamente inviolável e não suscetível de reforma; 2) norma relativamente invulnerável,
que pode ser reformada mediante processo extraordinário; 3) princípio último da unidade
política e do orde namento social do Estado. Toda s ociedade tem sua maneira de ser, isto é, a
sua constituição; 4) alguns princípios particulares da organização do Estado, por exemplo, os
direitos fundamentais, a divisão de poderes, o princípio repres entativo; 5) a mais alta norma
num sistema de imputações nor mativas – a lei das leis. As demais leis devem ser referidas a
esta norma, que estabelece a unidade da ordem jurídica; 6) certa regulamentação orgânica
de competência e procedimento para as atividades estatais de maior importância. No Estado
Federal, a discriminação das competências da União em relação aos Estados-Membros; 7)
toda delimitação das faculdades ou atividades estatais; 8) constituição em sentido positivo:
ato do poder constituinte, originário de uma decisão política unilateral do detentor do po-
der, ou resultante de acordo de alguns de seus detentores.4
Não são, contudo, unânimes os autores ao conceituarem Constituição, eis que alguns
dão ênfase ao elemento político, outros ao jurídico, não faltando nem mesmo o componente
losóco ou valorativo na formulação da ideia.
Jose Korzeniak reduz os diversos sentidos de Constituição aos seguintes conceitos: a)
valorativo; b) sociológico; c) jurídico.5
O conceito valorativo tem base ideológica ou política. Assim, para os autores que uti-
lizam esse critério, só há Constituição nos Estados que consagram determinados valores
políticos, ideológicos ou institucionais, sendo expressivo, neste aspecto, o artigo 16 da Decla-
ração dos Direitos do Homem e do Cidadão, proclamada na França em 1789, no sentido de
que “toda socie dade em que a garantia dos direi tos não esteja assegurada, nem a separação
dos poderes determinada, não tem Constituição”.
Para o comunitarismo, a Constituição é concebida como uma estrutura normativa que
envolve um conjunto de valores. Há uma conexão de sentido entre os valores compartilha-
dos por uma determinada sociedade política e a ordenação fundamental e suprema repre-
sentada pela Constituição, cujo sentido só pode ser apreciado em relação à totalidade da
vida coletiva. Nessa linha de pensamento, entende-se que a tarefa da Constituição não é a
2 SILVA. Curso de direito constitucional positivo, p. 37.
3 SCHMITT. Teoría de la constitución, p. 3-47.
4 SOUSA; GARCIA; CARVALHO. Dicionário de política, p. 125.
5 KORZENIAK. Derecho constitucional, p. 20.
Book -DIREITO CONSTITUCIONAL- Kildare.indb 272 8/11/17 10:17 AM
CONSTITUIÇÃO E NORMAS CONSTITUCIONAIS
DIREITO CONSTITUCIONAL • Volume 1
TEORIA DO ESTADO E DA CONSTITUIÇÃO
273
defesa da autonomia dos indivíduos contra o poder público, através de um sistema fechado
de garantias da vida privada, mas a defesa e a realização de valores inseridos num ambiente
sociocultural da comunidade, por meio da abertura cons titucional. O constitucionalismo
comunitário funda-se, portanto, no binômio dignidade humana e solidariedade social, e
ultrapassa a concepção de direitos subjetivos, para dar lugar às liberdades positivas. Os co-
munitaristas “rejeitam o Estado Liberal neutro, mínimo, garantidor de liber dades e limitador
negativo do arbítrio estatal. A contrário, enfocam prioritariamente uma noção de ‘soberania
pública’ que, ao garantir direitos positivos do Welfare State, ponderariam os direitos indi-
viduais em face das responsabilidades sociais. Afastam a visão contratualista da sociedade,
numa visão neoaristotélica de uma associação natural dos homens. Assim, cobram do Es-
tado não apenas a tutela dos direitos individuais, mas especialmente um conjunto de ações
armativas de todos os poderes estatais, em favor da proteção de valores familiares, econô-
micos e culturais de uma dada comunidade”.6
Já o conceito sociológico ou realista situa a Constituição não como conjunto de nor-
mas ou estatuto jurídico, mas como a maneira real de se combinarem os distintos fatores
que compõem o Estado, sendo expressiva a concepção de Ferdinand Lassalle, para quem a
Constituição é a soma dos fatores reais do poder, que podem variar segundo as époc as. Esse
conceito se contrapõe ao conceito jurídico de Constituição escrita, que corresponde a uma
simples “folha de papel”, expressão da verdadeira Constituição, que consiste na soma dos
fatores reais do poder.
O fundo sociológico do conceito de Constituição também é destacado por Maurice
Hauriou, que a concebe como o conjunto de regras relativas ao Governo e à vida da comuni-
dade estatal, encaradas sob o ponto de vista fundamental de sua existência.7
Do ponto de vista jurídico, a Constituição é concebida como um conjunto de normas,
um estatuto onde se acham reunidas as normas de organização do Estado.
O conceito jurídico de Constituição, para Kelsen, designa a organização jurídica funda-
mental. A Constituição é o conjunto de normas positivas que regem a produção do Direito,
o qual é congurado como ordem normativa, cuja unidade se assenta numa norma funda-
mental, já que o fundamento de validade de uma norma apenas pode ser a validade de outra
norma, de uma norma superior. Portanto, no sentido jurídico-positivo, a Constituição re-
presenta o escalão de Direito positivo mais elevado. Kelsen atribui ainda à Constituição um
sentido lógico-jurídico, em que a norma fundamental é hipotética, pois como norma mais
elevada, tem de ser pressuposta, não pode ser posta por uma autoridade, cuja competência
teria de se fundar numa norma ainda mais elevada.
José Adércio Leite Sampaio acentua a polissemia da palavra Constituição. Após men-
cionar aquilo que denomina de macroconceitos de Constituição de Carl Schmitt, de que
cuidamos acima, passa a recolher alguns estudos do signicado do termo, aduzindo: “Agesta,
por volta de 1943, diferenciava, ao lado do sentido moderno clássico de Constituição formal,
um outro material e daquele complementar, apresentado em três diferentes concepções: a)
normativista – consiste na Constituição-norma que confere unidade ao ordenamento jurí-
dico, a partir de um pressuposto de validade de qualquer conteúdo que venha a conter essa
Constituição e a ordem por ela instituída. Resgata-se a ideia de Grundnorm kelseniana; b)
outra decisionista – a Constituição não vale porque vale ou porque uma norma hipotética diz
6 CRUZ. Jurisdição constitucional, p. 155.
7 HAURIOU. Précis de droit constitutionnel, p. 268.
Book -DIREITO CONSTITUCIONAL- Kildare.indb 273 8/11/17 10:17 AM

Para continuar a ler

PEÇA SUA AVALIAÇÃO

VLEX uses login cookies to provide you with a better browsing experience. If you click on 'Accept' or continue browsing this site we consider that you accept our cookie policy. ACCEPT