Desjudicialização de procedimentos para os cartórios extrajudiciais

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DESJUDICIALIZAÇÃO DE
PROCEDIMENTOS PARA OS
CARTÓRIOS EXTRAJUDICIAIS
5.1 A DIFERENÇA ENTRE DESJUDICIALIZAÇÃO E
EXTRAJUDICIALIZAÇÃO DE CONFLITOS
Os cartórios surgem como alternativa adequada de acesso à justiça para o
melhor desenvolvimento de eventual relação jurídica notarial-registral-civil-
-constitucional, somando-se à crise do Poder Judiciário – em razão das demandas
que aumentam anualmente.1 A construção desse ramo da ciência (direito notarial
e registral) seguiu à margem de sua autonomia em relação ao Poder Judiciário.2
Houve um distanciamento inicial entre os dois institutos. Atualmente, a
reaproximação entre ambos não compromete ambas as ciências, pelo contrário,
as aprimora em prol do acesso à justiça.
1. Acesso à Justiça– De acordo com a Justiça em Números 2014, em cinco anos, o número de processos
pendentes passou de 58,9 milhões em 2009 para 66,8 milhões em 2013. Na comparação com 2012, o
dado de 2013 representa aumento de 4,2%. CONSELHO NACIONAL DE JUSTIÇA, Disponível em:
http://www.cnj.jus.br/noticias/cnj/79579-justica-em-numeros-permite-gestao-estrategica-da-justica-
-ha-10-anos. Acesso em: 26. jun. 2021.
2. Paralelo a essa cultura do litígio, observa-se também que o Poder Judiciário sempre se manteve muito
centralizador, chamando para si toda responsabilidade pelas lides da sociedade. Já foi falado que o
Poder Judiciário tem sua relevância nesse contexto social e disso não há que se duvidar. Entretanto, nos
moldes atuais, com o crescimento da população, com o advento da globalização, as relações interpessoais
tornaram-se por demais complexas, de sorte que os problemas vividos nas décadas passadas não são
mais os mesmos enfrentados pela sociedade pós-moderna. Diante dessa constatação o Poder Judiciário
deve abrir mão de sua centralização e começar o diálogo com outros meios extrajudiciais que visem
ajudá-lo no seu mister. E se não bastasse a cultura do litígio e a centralização do Poder Judiciário, ainda
existe a falta de vontade para criação de políticas públicas que visem disseminar e ajudar no desenvol-
vimento do procedimento arbitral. Todas as iniciativas apontadas na presente dissertação são apenas
o início de uma nova caminhada, o começo de um novo tempo que se anuncia como alvíssaras para a
população como um todo e para o cidadão individualmente. As políticas públicas aqui apontadas são
apenas o pontapé inicial. Outras políticas surgirão normalmente com o desenvolvimento das práticas
voltadas a divulgação e disseminação dos meios extrajudiciais. SILVA, Adonias Osias da. Arbitragem
como meio extrajudicial de resolução de conitos nas sociedades empresárias familiares. Dissertação de
Mestrado pela Escola Paulista de Direito, 2016, p. 124-125.
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Em uma relação notarial ou registral, o método de trabalho estabelecido pelas
partes, pelas normas das corregedorias estaduais e pelo legislador deve oferecer
oportunidade de ampla participação e garantias constitucionais3 de modo que
seja instrumento útil e ético de concretização de direitos materiais à semelhança
do que ocorreu entre o Direito Processual Civil e o Direito Civil.4
É necessário reaproximar tanto o direito material dos cartórios, quanto os
cartórios do Poder Judiciário. Existe uma relação de complementaridade entre
eles. Para que os notários sejam úteis, faz-se necessário efetivar-se o direito subs-
tancial e a maior ecácia dos atos por eles praticados.
O formalismo excessivo corresponde ao exacerbado rigor inútil do uso da
forma, que por sua vez, é prescindível para a organização e a estruturação interna
do Estado na condução da controvérsia dos sujeitos. Não se visa estimular o apego
pela forma, mas diversas outras questões não presentes na completa liberalidade
tal como perenidade dos documentos, fácil publicidade, imparcialidade, acesso
à justiça, segurança jurídica e ecácia.
Toda forma visa tutelar um direito fundamental intrínseco, como, por exem-
plo, a dignidade da pessoa humana (artigo 1º, inciso III), a igualdade (artigo 5º,
caput), o contraditório, a ampla defesa e o devido processo legal (artigo 5º, inciso
LV) e a liberdade negocial (artigo 5º, inciso II), todos previstos na Constituição
3. A Constituição de 1988 apesar de conhecida como uma das mais satisfatórias do mundo no quesito
de garantias individuais é de certa forma letra-morta, pois não há o seu devido cumprimento, ela trata
de organização do Estado a direitos e garantias fundamentais, passando por questões tributárias e
trabalhistas, assuntos que estariam melhor em normas infraconstitucionais, até mesmo no caso de
direitos e garantias fundamentais que deveriam e estão na carta magna se determinou um sobrepeso
nanceiro gigante ao Estado para fazer cumprir uma série de serviços e contribuições econômicas à
sociedade que torna totalmente inecaz a possibilidade de efetividade das normas constitucionais, sem
contar, como é evidente, o mal uso do dinheiro público, além da corrupção exercida entre os setores
públicos e privados, que hoje é de longe o maior obstáculo ao desenvolvimento social e a efetivação de
políticas públicas de qualidade”. RÊGO, Carolina Noura de Moraes. O estado de coisas inconstitucional:
entre o constitucionalismo e o estado de exceção. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2020, p. 189-190.
4. Encerrada a fase puramente cientíca e técnica da ciência processual no Brasil, iniciou-se o que
autorizada doutrina identica como visão instrumentalista do processo. É a conscientização de que
a importância do mecanismo estatal de solução de controvérsias está diretamente relacionada aos
resultados por ele produzidos. Daí por que considero importante para a compreensão do fenômeno
processual a ideia de método de trabalho estabelecido pelo legislador, para possibilitar a eliminação
das crises de direito material pela função jurisdicional do Estado. Esse método corresponde ao mo-
delo previsto em lei e informado por diversas técnicas, em tese as mais adequadas à eliminação, com
segurança e celeridade, da crise de cooperação vericada no plano das relações reguladas pelo direito
material. Para alcançar o resultado pretendido, portanto, esse método de trabalho deve assegurar aos
interessados na solução do litígio ampla possibilidade de participação, a m de que possam inuir na
convicção do juiz. Por outro lado, é necessário seja ele concluído em tempo razoável, sob pena de a
tutela jurisdicional tornar-se inútil a quem faz jus a ela. Segurança e celeridade, eis as palavras-chave
para explicar o método ideal de solução de controvérsias. BEDAQUE, José Roberto dos Santos. Direito
e processo: inuência do direito material sobre o processo. 6. ed. São Paulo: Malheiros, 2011, p. 20.
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5 • DESJuDICIALIZAÇÃO DE PROCEDImENTOS PARA OS CARTÓRIOS EXTRAJuDICIAIS
Federal de 1988. Evita-se, assim, o arbítrio estatal. É uma forma de controle em
face do Estado.
Diante disso, é necessário aplicar adequadamente5 as técnicas para a reso-
lução desjudiciais de controvérsias. Os conitos que podem ter como objetos
transacionáveis os direitos patrimoniais disponíveis de caráter privado (artigo
841,6 do Código Civil), denominado de direito material objetivo.
Já o sujeito diz respeito à aferição da capacidade civil contratual plena (ar-
tigo 104 do Código Civil). Atualmente, estando presentes estes dois requisitos
(direito patrimonial e sujeito capaz) os cartórios são instrumentos alternativos
e adequados de acesso à justiça, o que ocorre através da mediação e conciliação.
No notariado latino e no sistema da common law a mediação e a conciliação
também são formas alternativas de resolução adequada de resolução de conitos.
Por ter natureza jurídica mais próxima de cláusula contratual paritária ou contra-
to atípico paritário, aquele que desrespeitar a vontade manifestada no contrato
incorrerá em abuso do direito ao se socorrer do Poder Judiciário com o intuito
revisional de uma pactuação sob o manto do princípio do pacta sunt servanda a
que voluntariamente aceitou se submeter, salvo, evidentemente, se fosse o caso
de agrante ilegalidade por parte dos membros da mediação e da conciliação.
Isso porque, embora este ato não impeça o exercício do direito de ação, viola
a boa-fé objetiva, na gura correlata da vedação ao comportamento contraditó-
rio. Ora, se foi aceita à submissão à mediação e a conciliação, o questionamento
judicial da parte não é uma conduta leal e condizente com as expectativas de
ambas as partes quando pactuado a resolução desjudicial.
Parece um caso claro de comportamento contraditório, que agride profunda-
mente as legítimas expectativas que a contraparte depositou no contrato e no seu
cumprimento, em relação ao método de solução de controvérsias e sua ecácia.
5. Faço aqui um alerta: a terminologia tradicional, que se reporta a “meios alternativos” parece estar
sob ataque, na medida em que uma visão mais moderna do tema aponta meios adequados (ou mais
adequados) de solução de litígios, não necessariamente alternativos. Em boa lógica (e tendo em conta
o grau de civilidade que a maior parte das sociedades atingiu neste terceiro milênio), é razoável pen-
sar que as controvérsias tendam a ser resolvidas, num primeiro momento, diretamente pelas partes
interessadas (negociação, mediação, conciliação); em caso de fracasso deste diálogo primário (mé-
todo autocompositivo), recorrerão os conitantes às fórmulas heterocompositivas (processo estatal,
processo arbitral). Sob este enfoque, os métodos verdadeiramente alternativos de solução de contro-
vérsias seriam os heterocompositivos (o processo, seja estatal, seja arbitral), não os autocompositivos
(negociação, mediação, conciliação). Para evitar esta contradição, soa correta a referência a métodos
adequados de solução de litígios, não a métodos alternativos. Um sistema multiportas de resolução
de disputas, em resumo, oferecerá aos litigantes diversos métodos, sendo necessário que o operador
saiba escolher aquele mais adequado ao caso concreto. CARMONA, Carlos Alberto. Arbitragem e
processo: um comentário à Lei n. 9.307/96. 3. ed. São Paulo: Atlas, 2009, p. 32-33.
6. Art. 841. Só quanto a direitos patrimoniais de caráter privado se permite a transação.
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