Discricionariedade, racionalidade e Estado de Direito

AutorJoão Marcelo da Costa e Silva Lima
Ocupação do AutorBacharel em Direito, FGV Direito Rio
Páginas249-274
discricionAriedAde, rAcionAlidAde e
estAdo de direito1
João Marcelo da Costa e Silva Lima2
1. introdução
Alguns doutrinadores da geração passada do Direito administrativo, como
Hely Lopes Meirelles, explicavam que a discricionariedade seria “(...) o [po-
der] que o Direito concede à Administração, de modo explícito ou implí-
cito, para a prática de atos administrativos com liberdade ampla de esco-
lha de sua conveniência, oportunidade e conteúdo” (MEIRELLES, 2013, p.
126), e que o instituto se aplica a “[t]odos aqueles casos em que a lei não
tenha disciplinado de forma vinculada, atuando, dessa forma, no espaço
livre da lei” (GUERRA, 2010, p. 8). Além disso, os autores menos recentes
do direito administrativo atribuíam à discricionariedade a característica de
“vinculação negativa”, ou “fraca”, à lei. Para eles, a discricionariedade seria,
portanto, uma permissão para o Administrador agir “diante da abertura le-
gislativa” por meio da “integração de conceitos jurídicos indeterminados”
(GUERRA, 2010, p. 9). Por isso – seguia o argumento desses juristas –, o
controle judicial de decisões discricionárias tomadas por membros da Ad-
ministração Pública deveria ser menos intenso, e em geral restrito a vícios
formais do processo de tomada de decisão (ausência de competência, por
exemplo).3
1 O autor agradece os valiosos comentários e sugestões de Fernando Leal, Eduar-
do Jordão, José Vicente de Mendonça, Thiago Araújo e João André Lima a versões
anteriores deste trabalho.
2 Bacharel em Direito, FGV Direito Rio; Mestrando em Direito da Regulação, FGV
Direito Rio. Advogado.
3 A rigor, a discussão sobre a intensidade do controle de decisões vinculadas ou
discricionárias é distinta da discussão sobre quais são os espaços em que o adminis-
trador deve agir com ampla margem de liberdade (decidindo discricionariamente).
Neste texto, os dois assuntos serão analisados conjuntamente. A razão para tanto
Transformações do direiTo adminisTraTivo: ConsequenCialismo e esTraTégias
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Referindo-se a essa geração de administrativistas, Binenbojm nota
que “durante muito tempo – sem que isso provocasse maior polêmica – a
discricionariedadeeradenidacomoumamargemdeliberdadedecisória
dos gestores públicos, sem qualquer remissão ou alusão aos princípios
constitucionais” (BINENBOJM, 2008, p. 3). Mas as polêmicas polêmicas
nalmentechegaram.Surgiramperguntascomo:(i)sea discricionarieda-
de se manifesta no “espaço livre” da lei, ela se manifesta necessariamente
fora do Estado de Direito e, no limite, fora do próprio Direito?;4 (ii) o ato de
decidir discricionariamente pressupõe decidir sem vinculação a regras?; e,
se concluirmos que decidir discricionariamente signica decidir sem vincu-
lação a regras, (iii) só existe Estado de Direito (um emaranhado de ideários
por vezes aparentemente incompatíveis, como veremos adiante) se toma-
das de decisão forem guiadas por regras?
De certo modo endereçando essas perguntas, doutrinadores como
Celso Antônio Bandeira de Mello, por exemplo, passaram a entender a
discricionariedade como “a margem de liberdade conferida pela lei ao ad-
ministradora mde queeste cumprao dever deintegrar comsua von-
tade ou juízo a norma jurídica, diante do caso concreto, segundo critérios
subjetivospróprios,amdedar satisfaçãoaosobjetivosconsagradosno
sistema legal” (BANDEIRA DE MELLO, 2013, p. 436).
Aindamaisrecentemente, JustenFilhodeniu discricionariedadede
maneira similar, i.e., como “(...) o modo de disciplina normativa da ativi-
dade administrativa que se caracteriza pela atribuição do dever-poder
de decidir segundo a avaliação da melhor solução para o caso concreto,
respeitados os limites impostos pelo ordenamento jurídico” (JUSTEN FI-
LHO, 2011, p. 206). Outra evidência atual dessa tendência de valorização
de um conceito de discricionariedade “regulado” pelo Direito (embora não
necessariamente por regras) é a observação de Binenbojm sobre a trans-
formação do instituto a partir de sua “constitucionalização”. Nas palavras
do autor, “a discricionariedade deixa de ser um espaço de livre escolha
do administrador para se convolar em um resíduo de legitimidade, a ser
é que, a nosso ver, um dos fatores que determina a intensidade do controle judicial
(talvez o principal) é justamente se a decisão é tomada discricionariamente (quan-
do o tomador de decisão não age com ampla liberdade) ou de maneira vinculada
(quando o tomador de não age com ampla liberdade).
4 Binenbojm comenta que: “Aliás, a discricionariedade representou, também, um
movimento contraditório do direito administrativo em relação à própria legalidade,
sobretudo a partir de quando esta passa a ser entendida como vinculação positiva
à lei. De fato, no contexto de uma teoria que pretendia, em essência, a submissão
integral da atividade administrativa à vontade do legislador, a discricionariedade
pode ser vista como uma insubmissão ou, pelo menos, uma não submissão. Todavia,
contradição mais contundente que a mera existência dos atos discricionários é a
constatação de que estes representam a grande maioria dos atos administrativos,
dada a multiplicidade de situações que reclamam a atuação do Poder Público” (grifo
no original) (BINENBOJM, 2008, p. 3).

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