Do conceito de Washington Luis ao consenso de Washington DC: surgimento, consolidação e decadência do Direito do Trabalho no Brasil

AutorValdete Souto Severo
Ocupação do AutorJuíza do Trabalho, Mestre em Direitos Fundamentais pela PUC/RS, professora e vice-diretora na FEMARGS/RS
Páginas27-41

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Introdução

O presente artigo se destina a apresentar um panorama da evolução histórica do Direito do Trabalho no Brasil desde o seu surgimento, na segunda metade do século XIX, até os dias atuais. A pesquisa se desenvolverá em torno da noção de questão social, abordando suas causas, características e formas de tratamento durante a evolução do pensamento juslaboralista brasileiro.

Considerada como “uma série de fenômenos que rodeiam o processo de industrialização e, particularmente, a generalização de condições extremamente penosas e até mesmo miseráveis de vida e trabalho”51, a questão social pode ser traduzida (nos limites do presente trabalho) como as condições de vida e o tratamento destinados à classe operária no Brasil. O artigo apresenta-se dividido em três seções:

Na primeira, será abordado o surgimento do Direito do Trabalho no Brasil, procurando demonstrar o estreito vínculo existente entre esse surgimento e a própria formação da classe operária no território nacional, bem como a forma opressora com que os primeiros movimentos sociais foram combatidos pelo Estado até a década de 1930.

A segunda seção tratará da consolidação do Direito do Trabalho no Brasil, período que coincide com a publicação da Consolidação das Leis do Trabalho, de

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1943. Serão abordadas, aqui, especialmente, as circunstâncias sociais, políticas e econômicas que propiciaram a edição da Consolidação, ou seja, suas fontes materiais, bem como suas principais características. Por fim, a terceira seção versará sobre o atual momento histórico da evolução do pensamento juslaboralista, tecendo algumas considerações sobre o fenômeno da flexibilização da legislação trabalhista e sua ideologia justificadora (o neoliberalismo), verificando as suas causas e as principais consequências no âmbito das relações de trabalho no Brasil.

O trabalho será concluído com algumas considerações pessoais acerca do presente e do futuro do Direito do Trabalho brasileiro. Em que pese a proposta seja tratar do desenvolvimento histórico do ramo juslaboralista no Brasil, destaca- -se, de antemão, não ser aceitável, nem mesmo possível, por um lado, o estudo isolado de qualquer campo científico particular, sem se dar conta de suas recíprocas implicações com o conhecimento como um todo, e por outro, um olhar fechado para as particularidades nacionais, sem atentar para as crescentes interferências ditadas pelo contexto internacional.

1. A formação da classe operária e o surgimento de um novo direito no Brasil

O surgimento do Direito do Trabalho no Brasil, assim como nos demais países, se confunde com a própria formação da classe operária. Como produto do sistema capitalista que é, esse ramo jurídico somente teve condições de se formar com o implemento de determinadas condições sociais, econômicas, políticas e culturais resultantes de uma nova forma de produção que, por sua vez, decorreu do surgimento e desenvolvimento do setor industriário.

No Brasil, o surgimento das primeiras indústrias e, por consequência, a formação da classe proletária, teve início somente na segunda metade do século XIX, como parte de um processo de transformação social decorrente especialmente da evolução da economia cafeeira nos estados do Rio de Janeiro, Minas Gerais e São Paulo52.

Com desenvolvimento ainda modesto no final do século XIX, a industrialização no Brasil acelera rapidamente na primeira metade do século XX: dados estatísticos demonstram que durante a década de 1920, o produto agrícola representava, em média, 58% do PIB nacional; ao passo que a indústria, tão somente 23%; já na década de 1940, agricultura e indústria competiam de igual para igual, com uma média de 36% do PIB para cada um desses setores53.

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Com as transformações sociais, econômicas e culturais decorrentes da crescente industrialização surgem e se consolidam, com interesses contraditórios e antagônicos entre si, as novas classes sociais: burguesia e proletariado. A primeira, formada pelos patrões — proprietários das máquinas, capital, matérias-primas, enfim, dos meios de produção —, aufere lucro e se desenvolve a partir da exploração da força de trabalho (mais-valia) da segunda que, formada por operários de fábricas e trabalhadores de outros tantos setores, resta expropriada dos meios de produção e, para preservar sua sobrevivência, se veem obrigados a “vender”, no mercado capitalista, uma das únicas coisas que ainda possuem, a sua força de trabalho.

Embora não mais submetidos (oficialmente) ao sistema escravocrata, as condições de vida e de trabalho desses primeiros operários brasileiros permanecem tão cruéis quanto outrora. Na maioria das vezes, nem sequer existe um contrato de trabalho formal, ocorrendo as “admissões” e “despedidas” ao bel-prazer dos detentores do capital, que não são obrigados a pagar qualquer tipo de indenização aos trabalhadores expropriados de seu posto de trabalho. Não existe ainda nenhuma forma de cobertura quanto a acidentes ou doenças decorrentes do trabalho que, aliás, são extremamente comuns, sendo frequentes perdas de dedos, mãos, membros e até mesmo da própria vida. No interior das fábricas, os trabalhadores estão sujeitos à mais rigorosa disciplina e coerção que pode se realizar na forma de ameaças, imposição de multas e até mesmo castigos corporais. Após exaustivas jornadas de trabalho, que podem chegar a 12, 14 e até 15 horas por dia, sem direito a intervalos maiores do que uns poucos minutos necessários para uma rápida alimentação, voltam para suas casas (minúsculos cortiços em terrenos desprovidos de qualquer infraestrutura), que geralmente se concentram nas proximidades das fábricas, isolando-os de empregados de outros setores da classe, a fim de manter o controle social e ideológico da empresa. Não há repouso semanal, respeitando-se apenas alguns poucos feriados considerados de muita importância para a sociedade cristã (da época), tais como Natal e Paixão de Cristo. Para completar, como se já não fosse bastante a exploração de homens adultos, os baixos salários, insuficientes para sustentar a família do trabalhador, fazem com que mulheres e crianças também tenham de se submeter às mesmas condições, sempre, porém, com salários ainda menores do que os pagos aos homens54.

Naturalmente, a classe operária começa a se organizar e a lutar pela melhoria de suas condições de vida e de trabalho. As principais reivindicações são a diminuição da jornada de trabalho para 08 horas, repouso semanal, regulamentação do trabalho

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da mulher e do menor e aumento salarial. A principal arma de luta do proletariado foi e continua sendo o movimento grevista. Esparsas até fins do século XIX, as greves começam a aumentar em número e importância nas primeiras décadas do século XX55.

O Estado, em nítida oposição às aspirações operárias, reafirma a sua não intervenção nas relações (individuais) de trabalho, por considerá-la “prejudicial e atentatória à livre circulação de mercadorias e a compra e venda da força de trabalho”56, mantendo, assim, o ideário liberal ortodoxo preconizado pela Constituição de 1891 que em seu art. 72, § 24, na seção que trata da “Declaração de Direitos”, se limita a assegurar “o livre exercício de qualquer profissão moral, intelectual e industrial”57, não reservando nenhum outro direito aos trabalhadores. O absenteísmo estatal no que diz respeito à proteção do trabalhador contra a exploração do capital é contraposto, entretanto, pela forte intervenção do mesmo Estado no sentido de reprimir os movimentos operários que lutam pela conquista de melhores condições de vida e de trabalho, chegando mesmo a considerar tais movimentos como crimes passíveis de prisão e multa58. É atribuída ao último presidente da República Velha, Washington Luis, a frase que talvez nunca tenha dito, mas que, com toda certeza, representava bem a postura do Estado e o pensamento da elite liberal dominante da época frente aos movimentos sociais: “A questão social é uma questão de polícia!59. Inobstante as severas repressões, a luta

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se mostra frutífera. Após esse período, o Brasil passará por grandes transformações econômicas, políticas e sociais que, em seu conjunto, ocasionarão o surgimento de uma série de leis esparsas e o desenvolvimento de um “novo direito”, o qual se consolidará finalmente em 1943, com a edição do Decreto-lei n. 5.452, de 1º de maio (Dia Mundial do Trabalhador), conhecido justamente como Consolidação das Leis do Trabalho.

2. A consolidação do direito do trabalho no Brasil: a CLT

A fase de consolidação do Direito do Trabalho no Brasil inicia no ano de 1930, quando, após a derrocada da hegemonia do segmento agroexportador de café, característico da primeira República brasileira, Getúlio Vargas assume o poder. Na década de trinta, grande parte da população brasileira ainda estava na área rural. Às vésperas da revolução que colocaria Getúlio no poder, a produção cafeeira representava quase 60% do valor adicionado da agricultura e quase 25% do valor adicionado do país. Das receitas de exportação obtidas no Brasil, o café participara com 72,5% no período entre 1924 e 192860.

O projeto de Vargas era claro: suplantar de vez a economia cafeeira que subsidiava a alternância de poder entre os políticos dos Estados de São Paulo e Minas Gerais61, substituindo-a pela atividade industrial, a fim de sustentar o seu próprio poder político62. Um dos primeiros programas políticos estratégicos nesse sentido foi o de transformar radicalmente a atuação do Estado que, de liberal abstencionista, passou a exercer forte intervenção, inclusive no que diz respeito à questão social.

É necessário destacar, entretanto, que o intervencionismo estatal — a par de...

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