A legitimidade da tomadora dos serviços para responder à execução trabalhista

AutorValdete Souto Severo
Ocupação do AutorJuíza do Trabalho, Mestre em Direitos Fundamentais pela PUC/RS, professora e vice-diretora na FEMARGS/RS
Páginas195-211

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Introdução

A terceirização, apesar de admitida pelo ordenamento jurídico brasileiro apenas em hipóteses específicas, tal como a do trabalho temporário, vem sendo amplamente praticada, com a chancela do Poder Judiciário Trabalhista. O TST, que inicialmente deu resposta adequada à onda de interposição de terceiros na relação de trabalho, mediante edição da Súmula n. 256316, acabou capitulando. Em 2003, substituiu aquele verbete pela Súmula n. 331, cujo teor, atualmente, é o que segue:

CONTRATO DE PRESTAÇÃO DE SERVIÇOS. LEGALIDADE.

I — A contratação de trabalhadores por empresa interposta é ilegal, formando-se o vínculo diretamente com o tomador dos serviços, salvo no caso de trabalho temporário (Lei n. 6.019, de 3.1.1974).

II — A contratação irregular de trabalhador, mediante empresa interposta, não gera vínculo de emprego com os órgãos da Administração Pública direta, indireta ou fundacional (art. 37, II, da CF/1988).

III — Não forma vínculo de emprego com o tomador a contratação de serviços de vigilância (Lei n. 7.102, de 20.6.1983) e de conservação e limpeza, bem como a de serviços especializados ligados à atividade-meio do tomador, desde que inexistente a pessoalidade e a subordinação direta.

IV — O inadimplemento das obrigações trabalhistas, por parte do empregador, implica a responsabilidade subsidiária do tomador dos serviços quanto àquelas obrigações,

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desde que haja participado da relação processual e conste também do título executivo judicial.

V — Os entes integrantes da Administração Pública direta e indireta respondem subsidiariamente, nas mesmas condições do item IV, caso evidenciada a sua conduta culposa no cumprimento das obrigações da Lei n. 8.666, de 21.6.1993, especialmente na fiscalização do cumprimento das obrigações contratuais e legais da prestadora de serviço como empregadora. A aludida responsabilidade não decorre de mero inadimplemento das obrigações trabalhistas assumidas pela empresa regularmente contratada. VI — A responsabilidade subsidiária do tomador de serviços abrange todas as verbas decorrentes da condenação referentes ao período da prestação laboral.

O presente artigo se limitará à análise do item IV do verbete, precisamente em relação à exigência de que a tomadora conste no polo passivo da demanda de conhecimento, para que possa sofrer atos de execução. A importância do tema reside no fato de que a disposição contida na súmula por vezes inviabiliza o acesso à justiça e a satisfação dos créditos de natureza alimentar.

Interessante observar que os precedentes que constam na página do TST, relativos a esse inciso, são todos posteriores à edição da súmula e nenhum deles justifica, com fundamentos jurídicos, a utilização da expressão “responsabilidade subsidiária” ou a razão pela qual exige a presença da tomadora no polo da ação trabalhista desde a fase de conhecimento.

Já tratamos desse mesmo assunto em artigo publicado em 2005 e a realidade, de lá pra cá, infelizmente não se alterou. O trabalhador que não puder ajuizar a demanda trabalhista também contra a tomadora estará impedido, por força de um entendimento jurisprudencial, de buscar seus créditos junto a essa responsável. As circunstâncias pelas quais o trabalhador opta por não ajuizar a reclamatória também contra a tomadora são de várias ordens. Muitas vezes, o trabalho continua sendo realizado no mesmo ambiente, na sede da tomadora, por intermédio de outra prestadora de serviços. Outras vezes, o trabalhador teme a não obtenção de novo emprego na mesma área.

O fato é que essa limitação de acesso à justiça imposta pela Súmula n. 331 não tem apoio no ordenamento jurídico brasileiro. É exatamente isso que tentaremos demonstrar neste artigo.

1. A responsabilidade da tomadora em relação ao contrato de trabalho

A existência de responsabilidade por parte da tomadora dos serviços, no âmbito da relação de trabalho, é admitida pela orientação jurisprudencial em exame. É importante, porém, sinalar que as tomadoras de serviço não são consideradas responsáveis porque há uma súmula dizendo isso, mas sim porque a legislação expressamente prevê tal responsabilidade. Súmulas não criam (ou não deveriam

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criar) institutos jurídicos novos. São interpretações jurisprudenciais reiteradas sobre determinada matéria. Logo, encontram seu limite no ordenamento jurídico.

A terceirização, como se sabe, não tem previsão expressa no ordenamento jurídico brasileiro, senão em hipóteses específicas317. Logo, as disposições da súmula decorrem da compreensão das normas jurídicas, nessas hipóteses isoladas, já que não se pode supor, repita-se, que uma súmula crie regras inexistentes.

Uma delas é a prevista na lei do trabalho temporário. Essa espécie de trabalho, com prazo certo, destinada a atender necessidades excepcionais318, pode ser realizada diretamente entre o empregado e a empresa que usufruirá da mão de obra. Pode, porém, ser também realizada mediante contrato entre a empresa prestadora de serviços e a tomadora319. Em tal caso, há situação em que três pessoas se envolvem na relação de trabalho: o empregado, a empregadora e a tomadora dos serviços. A lei prevê identidade de remuneração entre os empregados da prestadora e os da tomadora (art. 12) e responsabilidade solidária de ambas:

Art. 16. No caso de falência da empresa de trabalho temporário, a empresa tomadora ou cliente é solidariamente responsável pelo recolhimento das contribuições previdenciárias, no tocante ao tempo em que o trabalhador esteve sob suas ordens, assim como em referência ao mesmo período, pela remuneração e indenização previstas nesta Lei.

Outra hipótese legalmente prevista está no art. 455 da CLT, que trata dos contratos de subempreitada. Esse dispositivo garante aos empregados o direito de reclamar tanto do subempreiteiro quanto do empreiteiro principal320. Trata-se, também aqui, de hipótese de responsabilidade solidária321.

Apesar de existir norma trabalhista passível de ser utilizada por analogia, prevendo responsabilidade solidária nas hipóteses já disciplinadas de relação

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triangular de exploração do trabalho pelo capital, a jurisprudência majoritária, e bem assim a doutrina, costumam socorrer-se das disposições contidas no Código Civil. Lá, onde se pressupõe igualdade material, a regra geral acerca da responsabilidade encontra-se nos arts. 186 e 187. O primeiro estabelece as hipóteses de responsabilidade por culpa, enquanto o art. 187 dispõe que “também comete ato ilícito o titular de um direito que, ao exercê-lo, excede manifestamente os limites impostos pelo seu fim econômico ou social, pela boa-fé ou pelos bons costumes”.

Essa regra é de fundamental importância porque inaugura uma visão diferenciada acerca da responsabilidade. O ato é reconhecido como ilícito porque seu titular o exerce excedendo limites que se impõem pelo fim econômico ou social. Trata-se de dispositivo que vem ao encontro do projeto constitucional instituído em 1988 no Brasil, segundo o qual mesmo a ordem econômica deve promover justiça social322, tendo entre seus objetivos a busca do pleno emprego e a redução das desigualdades.

A inversão clara de paradigma, passando do individualismo para o solidarismo, é o parâmetro em que se assenta a regra do art. 187 do Código Civil, que em nada confronta o princípio da proteção que informa o Direito do Trabalho, sendo, pois, com ele plenamente compatível.

Parece mesmo tranquilo afirmar que o fim social da empresa, compatível com a consolidação de justiça social no âmbito de um Estado capitalista, inclusive pela dicção expressa do art. 170 da Constituição, é empregar323. E empregar ou reconhecer como empregado é contratar diretamente, sem a interposição de terceiros nessa relação. O art. 170 reforça, portanto, o direito fundamental consagrado no inc. I do art. 7º da Constituição, que antes mencionamos.

Ao terceirizar a empresa se omite dessa obrigação e, com isso, deixa de contribuir para a busca do pleno emprego. Além disso, promove a desigualdade, que necessariamente se instala entre os empregados por ela diretamente contratados, e aqueles “terceirizados”. Descumpre, portanto, também a finalidade de redução das desigualdades sociais. Em resumo, age excedendo manifestamente sua finalidade econômica e social. Note-se que nem sequer se discute, em tal caso, a licitude do ato de terceirizar. É certo que, diante da clareza da norma constitucional, não faltam argumentos a apontar a inconstitucionalidade de qualquer forma de interposição de terceiros na relação de trabalho.

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A inconstitucionalidade da terceirização, porém, não é objeto de estudo no presente artigo e, o que é mais importante, não compromete a tese de aplicabilidade do art. 187 do Código Civil, quando do exame da responsabilidade da tomadora diante do contrato. Em outras palavras, mesmo pressupondo-se terceirização regular, não há como escapar da circunstância de que, ao fazer sua opção administrativa pela terceirização, a tomadora age excedendo manifestamente sua finalidade econômica e social, sendo, pois, responsável pela integralidade do dano que daí decorre. Comete, portanto, ato ilícito, cujas consequências extravasam o âmbito civil, atingindo diretamente a esfera trabalhista.

O Código Civil, ao tratar especificamente da responsabilidade, dispõe que quem comete ato ilícito tem obrigação de repará-lo (art. 927). No parágrafo único do art. 927, estabelece que “haverá obrigação de reparar o dano, independentemente de culpa, nos casos especificados em lei, ou quando a atividade normalmente desenvolvida pelo autor do dano implicar, por sua natureza, risco...

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