Liberdade Sindical: uma análise do direito brasileiro frente à Convenção n. 87 da Organização Internacional do Trabalho

AutorValdete Souto Severo
Ocupação do AutorJuíza do Trabalho, Mestre em Direitos Fundamentais pela PUC/RS, professora e vice-diretora na FEMARGS/RS
Páginas77-89

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Introdução

Este artigo se destina a apresentar uma análise do princípio da liberdade sindical no direito brasileiro a partir de um estudo comparativo com as normas previstas na Convenção n. 87 da OIT. O trabalho é estruturado em cinco partes.

Após essa breve introdução, serão apresentadas algumas considerações sobre a importância da ideia de liberdade sindical no Direito do Trabalho, sua significação histórica e o destaque que lhe atribui a Organização Internacional do Trabalho. Em seguida, far-se-á uma breve apresentação da Convenção n. 87, apontando os seus principais dispositivos. Só então passaremos a realizar propriamente uma análise crítica dos institutos atinentes à liberdade sindical no direito brasileiro, à luz das determinações contidas na Convenção. O trabalho será encerrado com a apresentação sucinta do posicionamento do autor sobre o tema.

Ainda a título introdutório, é preciso advertir que, muito embora o Brasil reconheça e assegure a liberdade sindical no art. 8º da Constituição Federal, esta liberdade sofre graves restrições tanto na própria Constituição quanto na legislação infraconstitucional. Com efeito, o caput do referido artigo estabelece ser “livre a associação profissional ou sindical” e logo após uma vírgula (sempre o problema do que vem após a vírgula) continua “observado o seguinte:” e elenca, como se verá, sérias restrições ao direito que pretende regular. São justamente essas restrições e os problemas que elas trazem para o Direito do Trabalho como um todo o conteúdo principal do presente artigo.

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1. A importância da liberdade sindical no direito do trabalho

Se é certo que o Direito do Trabalho está fundado no princípio da proteção ao trabalhador, que, de certa forma, lhe retira parcela de sua autonomia, é igualmente correto afirmar que ele surge historicamente a partir do movimento coletivo operário calcado na ideia de liberdade sindical.

Foram as lutas dos trabalhadores por diminuição de jornada, aumento de salário e melhores condições de trabalho que deram origem às primeiras leis trabalhistas. Nesse sentido é possível afirmar, inclusive, que o Direito do Trabalho é um Direito essencialmente coletivo.

Já no Estado Liberal Clássico se tinha plena noção disso. Tanto que uma das primeiras, e talvez a mais importante, leis aprovadas após a Revolução Francesa de 1789 foi a que levou o nome de seu redator, Le Chapelier, aprovada em 14 de junho de 1791. Um verdadeiro ataque à liberdade sindical, a lei é considerada por Barbagelata como “la principal, más notable y más influyente respuesta de la legislación en el ámbito de las relaciones colectivas [...]167. O mesmo autor apresenta, ainda, o juízo que Karl Marx faz acerca da lei ao qualificá-la como “golpe de estado de la burguesia168.

Percebe-se aqui a crueldade paradoxal do Estado Liberal burguês que se mostra abstencionista e, portanto, efetivamente liberal, quanto às relações individuais de trabalho — em relação às quais, buscando inspiração na clássica fórmula de Vicent Gournay169, entende que “o que é contratual é justo” — e, ao mesmo tempo, severamente intervencionista nas relações coletivas, ao impedir o exercício da liberdade por parte dos trabalhadores quando tentam se organizar enquanto classe, na busca de melhores condições de vida.

Essa ideologia liberal pôde ser claramente percebida no Brasil, até os primeiros anos do Governo ditatorial de Getúlio Vargas (e, de certa forma, permanece ainda hoje em alguns institutos, como se verá). O desrespeito à liberdade sindical fez com que a organização da classe operária e a sua luta por melhores condições de vida fosse travada não apenas contra a classe que a explorava, mas também contra o Estado que, impregnado dessa ideologia burguesa, considerava a questão social como “uma questão de polícia”170.

Somente com a conquista de espaços de atuação pelos sindicatos, que se deu pela luta do próprio movimento operário, é que foi possível verificar alguma melhora

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nas condições sociais dos trabalhadores. O movimento sindical foi e pode continuar sendo a principal fonte de melhoria das condições de vida dos trabalhadores, seja por meio de negociações coletivas que levem à realização de normas autônomas, seja pela pressão que tem condição de fazer, inclusive para mudanças na legislação heterônoma.

Tal é a importância da liberdade sindical que a Organização Internacional do Trabalho a ela faz referência já no preâmbulo de sua Constituição, nos seguintes termos:

Considerando que existem condições de trabalho que implicam, para grande parte das pessoas, a injustiça, a miséria e as privações, o que gera um descontentamento tal que a paz e a harmonia universais são postas em risco, e considerando que é urgente melhorar essas condições: por exemplo, relativamente [...] à afirmação do princípio da liberdade sindical; [o destaque é nosso]

Na declaração relativa aos seus fins e objetivos (Declaração da Filadélfia, anexa à Constituição), a Organização Internacional do Trabalho faz referência expressa à noção de liberdade sindical, considerando-a, ao lado da afirmação (sempre necessária) de que o trabalho não é uma mercadoria, um dos princípios fundamentais que devem inspirar a política de seus membros:

A Conferência afirma novamente os princípios fundamentais sobre os quais se funda a Organização, isto é:

  1. o trabalho não é uma mercadoria;
    b) a liberdade de expressão e de associação é uma condição indispensável para um progresso constante;

Verifica-se, pois, a importância que o tema da liberdade sindical goza no cenário do Direito do Trabalho e o reconhecimento que lhe atribui a Organização Internacional do Trabalho. Especificamente sobre o tema, foi aprovada a Convenção
n. 87 da OIT — Convenção sobre a Liberdade Sindical e a Protecção do Direito Sindical, 1948 —, cuja apresentação se passa a fazer brevemente.

2. A convenção n 87 da OIT: uma breve apresentação

A Convenção sobre a liberdade sindical e a proteção do direito sindical foi aprovada em 17 de junho de 1948 pela Conferência Geral da Organização Internacional do Trabalho, convocada em São Francisco pelo conselho de administração do Secretariado Internacional do Trabalho, na sua trigésima primeira sessão171.

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A Convenção é composta por 21 artigos que se encontram em quatro seções: a primeira, dos arts. 1º a 10, dispõe sobre liberdade sindical; a segunda composta apenas pelo art. 11, trata da proteção do direito sindical; a terceira apresenta medidas diversas relacionadas a própria implementação das disposições precedentes, nos arts. 12 e 13; os demais artigos apresentam disposições finais.

Considerando que o art. 1º apenas apresenta o diploma, as principais normas encontram-se nos arts. 2º a 11. Dentre estes, destacam-se o art. 2º, que assegura aos trabalhadores e às entidades patronais, sem distinção de qualquer espécie, o direito de constituírem organizações da sua escolha, assim como o de se filiarem nessas organizações, com a única condição de se conformarem com os estatutos destas últimas, sem a exigência de autorização prévia; o artigo 3º que prevê o direito de as entidades elaborarem os seus estatutos e regulamentos administrativos, de elegerem livremente os seus representantes e organizarem a sua gestão e atividade, sem qualquer intervenção por parte das autoridades públicas; o art. 4º que assegura às organizações de trabalhadores e de entidades patronais a impossibilidade de dissolução ou suspensão por via administrativa; o art. 5º que estabelece o direito de tais entidades constituírem federações e confederações, assim como o de nelas se filiarem; bem como o direito de as organizações, federações e confederações se filiarem em organizações internacionais de trabalhadores e de entidades patronais; o art. 7º que assegura às entidades a aquisição de personalidade jurídica sem que tal direito esteja sujeito a condições suscetíveis de afastar os direitos assegurados nos artigos 2º, 3º e 4º da Convenção; o art. 8º, que em seu segundo item explicita (o que infelizmente se mostra realmente necessário) que legislação nacional não deverá prejudicar — nem ser aplicada de modo a prejudicar — as garantias previstas na Convenção; e, por fim, o art. 10 que define o termo “organização” como toda e qualquer organização de trabalhadores ou de entidades patronais que tenha por fim promover e defender os interesses dos trabalhadores ou do patronato. Visando assegurar a sua aplicação, a Convenção estabelece, ainda, expressamente, em seu art. 11, que os Membros da Organização Internacional do Trabalho para os quais a Convenção esteja em vigor devem se comprometer a tomar todas as medidas necessárias e apropriadas para assegurar aos trabalhadores e às entidades patronais o livre exercício do direito sindical.

Como se sabe, a Convenção ainda não foi ratificada pelo Brasil, e seus direitos não são integralmente observados. Não obstante, é importante notar que se trata de uma das oito Convenções Fundamentais da OIT — a única que o Brasil ainda não ratificou —, o que implica a obrigatoriedade de sua aplicação independentemente de ratificação, existindo, inclusive, mecanismos jurídicos internacionais para garantir o seu cumprimento172.

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A seguir, passa-se a apresentar uma breve análise do Ordenamento Jurídico brasileiro acerca da liberdade sindical, em comparação com os preceitos básicos da Convenção n. 87, aqui expostos.

3. Análise comparativa do ordenamento jurídico brasileiro com a convenção n 87 da OIT

A doutrina tradicional costuma classificar a liberdade sindical em três classes, que podem ser consideradas como três dimensões distintas de um mesmo fenômeno: sindicalização livre, pluralidade sindical e autonomia sindical.

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