A responsabilidade patronal nos acidentes de trabalho: elementos para uma teoria trabalhista

AutorValdete Souto Severo
Ocupação do AutorJuíza do Trabalho, Mestre em Direitos Fundamentais pela PUC/RS, professora e vice-diretora na FEMARGS/RS
Páginas121-133

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Introdução

Nas páginas que se seguem serão lançadas algumas ideias acerca da responsabilidade do empregador nos casos de acidentes de trabalho sob a luz das particularidades do Direito do Trabalho e dos direitos humanos trabalhistas. O texto está dividido em duas seções. Na primeira, pretendemos demonstrar a insuficiência da tradicional teoria civilista acerca da responsabilidade civil, ainda utilizada para a reparação dos danos decorrentes de acidentes de trabalho.

Em seguida, apontaremos algumas particularidades do Direito do Trabalho que têm de ser levadas em consideração para uma solução mais adequada à questão da reparação dos danos decorrentes de acidentes de trabalho.

Sabe-se que nenhuma disciplina jurídica se desenvolve de forma isolada, sem a comunicação dos demais ramos do Direito. Com o Direito do Trabalho não é diferente. Em sentido contrário, inclusive, no estudo do Direito do Trabalho, é até mais clara a percepção da estreita vinculação que o Direito mantém com as demais áreas humanas, tais como a história, a sociologia e a filosofia.

Sem desconsiderar a interconexão entre os diferentes objetos do conhecimento, há de se dar atenção às particularidades que o Direito do Trabalho possui e, a partir daí, procurar as soluções que sejam mais adequadas às exigências dos direitos humanos tipicamente trabalhistas.

1. Da insuficiência da tradicional teoria civilista: a evolução legislativa da responsabilidade patronal nos acidentes de trabalho

Conta-se que, certa vez, no Brasil, por falta de uma legislação específica que tratasse da matéria, um homem escapou de morrer no cárcere recorrendo à lei de

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defesa dos animais. O ocorrido foi tema da tese de doutorado, defendida, em 2005, na Universidad Del Museo Social Argentino, em Buenos Aires, pelo advogado paulista Olavo Aparecido Arruda D’Câmara, e, pelo inusitado, merece maiores detalhes.

O fato ocorreu no ano de 1937, quando, após ser preso e severamente torturado, o político alemão Harry Berger foi encarcerado em uma cela sem luz e cujas proporções não lhe permitiam ficar de pé, dormindo sobre pedras, sem as mínimas condições de higiene por mais de ano. Ao tomar conhecimento do processo e das condições a que estava submetido o político alemão, o advogado carioca Heráclito Fontoura Sobral Pinto notou que faltavam no arcabouço jurídico brasileiro, àquela altura, fundamentos jurídicos adequados para basear sua petição. Encontrou a brecha na decisão do juiz paranaense Antonio Leopoldo dos Santos, que condenara João Mansur Karan a 17 dias de prisão e multa “por ter morto a pancadas um cavalo de sua propriedade”. Na ausência de uma tese mais adequada para sustentar a causa, Sobral Pinto utilizou o Decreto de Proteção e Defesa dos Animais, que havia sido recentemente promulgado, extraindo dele os argumentos do habeas-corpus.

Relembrando a pena de prisão e multa aplicadas ao cidadão que concorrera para a morte de um cavalo, Sobral Pinto convenceu o juiz Raul Machado a proporcionar condições mais adequadas ao prisioneiro.

Eis parte da argumentação lançada pelo advogado:

Num País que se rege por uma tal legislação, que os magistrados timbram em aplicar, para, deste modo, resguardarem os próprios animais irracionais dos maus-tratos até de seus donos, não é possível que Harry Berger permaneça, como até agora, meses e meses a fio, com a anuência do Tribunal de Segurança Nacional, dentro de um socavão de escada.238

Infelizmente, o mesmo raciocínio pode ser aplicado, ainda hoje, no que diz respeito aos acidentes de trabalho. Falta na atual dogmática juslaboralista brasileira uma teoria adequada sobre a responsabilidade do empregador em tais casos. Enquanto os operadores do direito do trabalho ainda discutem a necessidade da “culpa patronal” para a configuração do dever de indenizar o trabalhador mutilado, é tranquila, na doutrina e jurisprudência nacional, a aplicação da teoria da responsabilidade objetiva na modalidade do risco integral para a proteção dos animais239.

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A necessidade da “culpa patronal” para a configuração de responsabilidade nos casos de acidentes de trabalho, por sua vez, decorre de uma leitura restritiva da Constituição que, no inc. XXVIII do art. 7º, assegura aos trabalhadores “seguro contra acidentes de trabalho, a cargo do empregador, sem excluir a indenização a que este está obrigado, quando incorrer em dolo ou culpa;”.

Com efeito, uma interpretação literal e isolada do inc. XXVIII leva a crer que apenas o benefício previdenciário seria assegurado ao trabalhador independentemente da existência de culpa patronal, ficando a responsabilidade do empregador reservada aos casos de dolo ou culpa.

Esquece-se, entretanto, que o referido dispositivo constitucional insere-se em um contexto normativo cuja evolução histórica motivou, inclusive, a transformação da própria teoria civilista da responsabilidade que atualmente já garante a indenização independentemente de culpa sempre que “a atividade normalmente desenvolvida pelo autor do dano implicar, por sua natureza, risco para os direitos de outrem”240.

A história legislativa da reparação dos danos decorrentes de acidentes de trabalho no Brasil remonta ao ano de 1919, quando o Decreto-Lei n. 3.724, adotando a teoria do risco profissional, passou a estabelecer a responsabilidade objetiva do empregador, excetuando “apenas os casos de força maior ou dolo da propria victima ou de estranhos” (art. 2º).

Tratando da referida lei, Octavio Bueno Magano fundamentava a responsabilidade patronal nos seguintes termos:

A produção industrial, expondo o trabalhador a certos riscos, impõe àquele que dela se beneficia, isto é, ao patrão, a obrigação de indenizar a vítima, em caso de sinistro, fazendo-se abstração da questão de saber se praticou falta capaz de acarretar sua responsabilidade.241

Em sentido, ainda mais abrangente, já no ano de 1919, Evaristo de Moares ponderava sobre as formas de responsabilidade patronal:

Na theoria do risco profissional cabem todas as hypotheses: a negligencia ou imprudencia do patrão, os vícios ignorados do machinismo, os casos

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de origem completamente desconhecida, e, até mesmo, os oriundos de imprudência do operário.242 [destaques no original]

Saudado como um avanço na legislação infortunística, o Decreto n. 24.637, de 1934, impunha ao empregador a realização de depósitos em instituições financeiras ou a realização de um seguro contra acidentes de trabalho, a fim de garantir o pagamento das indenizações que fixava. Mantinha-se, entretanto, tanto a responsabilidade objetiva do empregador quanto o seu fundamento na teoria do risco.

Não obstante o visível avanço, percebeu-se logo que as indenizações previamente fixadas pelo Decreto eram muitas vezes menores do que os danos efetivamente ocorridos. Buscando reparar esse equívoco, o Decreto-lei n. 7.036, de 1944, passa a prever a acumulação de “outra indenização de direito comum”, no caso de dolo do empregador ou de seus prepostos (art. 31)243.

Coube, então, à jurisprudência avançar na matéria. Assim, em 1963, o Supremo Tribunal Federal edita a Súmula n. 229 sedimentando o entendimento de que “a indenização acidentária não exclui a do direito comum, em caso de dolo ou culpa grave do empregador.” Com isso, a indenização a cargo do empregador, que somente era devida no caso de dolo do empregador, passa a ser devida também nos casos de culpa grave.

Com a promulgação da Constituição, em 1988, ampliam-se ainda mais as hipóteses de responsabilidade do empregador, que passam a abranger também os casos de culpa em qualquer grau, conforme dispõe o inc. XXVIII do art. 7º, acima transcrito.

A interpretação do dispositivo constitucional em questão requer, entretanto, para a sua adequada compreensão, a consideração de dois vetores hermenêuticos: em primeiro lugar, a evolução histórica da legislação atinente à matéria, que denota o seu caráter protetivo e emancipatório; em segundo, a sistematicidade do Direito, que exige que o dispositivo seja interpretado no contexto normativo em que se insere.

Quanto ao primeiro, a evolução histórica sobre a matéria que precede a edição da Constituição de 1988, acima exposta sumariamente, evidencia uma tendência de ampliação à tutela da integridade do trabalhador, com o aumento dos casos de responsabilidade do empregador. Resultado do reconhecimento da repercussão social que envolve os acidentes de trabalho, fenômeno que transcende interesses privados regulados pelo direito comum.

No que concerne ao caráter sistemático do ordenamento jurídico, tem de se ter em mente que o inciso em questão, não é uma garantia limitativa da responsabilidade

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do empregador, mas um direito fundamental do trabalhador, assim como todos os demais direitos dispostos nos 34 incisos do art. 7º da Constituição. Seguindo o preceito de que o Direito não se interpreta em tiras, é preciso atentar que o caput do dispositivo constitucional em que o inciso está inserido dispõe expressamente que os direitos ali previstos não impedem a aplicação de outros, que visem à melhoria das condições sociais dos trabalhadores.

Na mesma linha evolutiva, acolhida pela Constituição de 1988 — como se pode perceber pela extensão das hipóteses de responsabilidade patronal decorrente de sua promulgação e pelo próprio texto aberto do art. 7º —, a noção de responsabilidade objetiva é...

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