Um breve estudo sobre a terceirização

AutorValdete Souto Severo
Ocupação do AutorJuíza do Trabalho, Mestre em Direitos Fundamentais pela PUC/RS, professora e vice-diretora na FEMARGS/RS
Páginas147-162

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Introdução

A terceirização é um procedimento de administração empresarial que visa a diminuir os custos da produção, em evidente compromisso com uma visão econômica do direito. Caracteriza-se pelo repasse de parte do empreendimento264, a terceiras pessoas, com o objetivo de enxugar a ‘máquina administrativa’ e, assim, obter maior lucro. Têm servido à fragilização e à supressão de direitos fundamentais trabalhistas. É definida como “técnica administrativa, efeito do modelo de produção pós-fordista, que requer o enxugamento da empresa, transferindo parte dos serviços da empresa para outras empresas”265.

O Ministro Mauricio Godinho Delgado a define como “fenômeno pelo qual se dissocia a relação econômica de trabalho da relação juslaborista que lhe seria correspondente”266. Provoca “uma relação trilateral em face da contratação de força de trabalho no mercado capitalista: o obreiro, o prestador de serviços, que realiza suas atividades materiais e intelectuais junto à empresa tomadora de serviços; a empresa terceirizante, que contrata este obreiro, firmando com ele os vínculos jurídicos trabalhistas pertinentes; a empresa tomadora de serviços, que recebe a prestação do labor, mas não assume a posição clássica de empregadora desse trabalhador envolvido”267.

Apesar de amplamente aceita e praticada, a terceirização não está regulada no ordenamento jurídico brasileiro, senão em duas hipóteses específicas que referiremos no próximo tópico. No Uruguai, há lei tratando especificamente da possibilidade

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de terceirizar. As consequências desse “fenômeno social” são sentidas de modo semelhante nos dois países e, de resto, em praticamente todo o mundo ocidental.

1. A terceirização na legislação trabalhista brasileira e uruguaia

A terceirização não está regulada no Brasil, senão por leis esparsas que tratam da possibilidade de uma relação de trabalho “interposta” por empresa de serviços temporários (Lei n. 6.019/74)268 ou de uma relação de trabalho de vigilância, em que a empresa coloca trabalhadores a exercerem suas tarefas de proteção ao patrimônio na sede de seus clientes (Lei n. 7.102/83)269.

Há um projeto de lei em tramitação (PL n. 4330), buscando regulamentar esse processo de precarização das relações de trabalho, cuja aprovação vem sendo adiada em razão da mobilização dos trabalhadores270.

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A Constituição brasileira de 1988 garante, em seu artigo sétimo, o direito dos trabalhadores à relação de emprego (inc. I), sem qualquer referência a possibilidade de intervenção de terceiros nessa relação271. A CLT opta por definir as figuras de empregado e empregador, em lugar de conter uma definição do que seja relação de emprego272. Deixa claro, porém, se tratar de um vínculo entre dois sujeitos (e não três). Nem sequer precisaria dizê-lo, já que decorre da dinâmica da exploração capitalista do trabalho humano que a produção de mercadorias ou a prestação de serviços seja realizada por seres humanos, cuja força de trabalho é empregada com a finalidade de tornar viável o empreendimento. Desse modo, quem emprega trabalho humano será necessariamente o empregador e, por consequência, o responsável direto pela satisfação e pelo respeito aos direitos fundamentais desse indivíduo.

Apesar disso, a terceirização vem sendo amplamente praticada no Brasil, com a chancela do Poder Judiciário, que inicialmente, editou, em 1986, a Súmula
n. 256, cujo teor era: “Salvo os casos de trabalho temporário e de serviço de vigilância, previstos nas Leis ns. 6.019, de 3 de janeiro de 1974, e 7.102, de 20 de junho de 1983, é ilegal a contratação de trabalhadores por empresa interposta, formando-se o vínculo empregatício diretamente com o tomador dos serviços”.

O verbete, porém, foi cancelado em 2003, após a Constituição de 1988, e substituído pela Súmula n. 331 do TST, cuja redação atual é:

CONTRATO DE PRESTAÇÃO DE SERVIÇOS. LEGALIDADE (nova redação do item IV e inseridos os itens V e VI à redação) — Res. 174/2011, DEJT divulgado em 27, 30 e 31.05.2011
I — A contratação de trabalhadores por empresa interposta é ilegal, formando-se o vínculo diretamente com o tomador dos serviços, salvo no caso de trabalho temporário (Lei n. 6.019, de 03.01.1974).

II — A contratação irregular de trabalhador, mediante empresa interposta, não gera vínculo de emprego com os órgãos da Administração Pública direta, indireta ou fundacional (art. 37, II, da CF/1988).

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III — Não forma vínculo de emprego com o tomador a contratação de serviços de vigilância (Lei n. 7.102, de 20.06.1983) e de conservação e limpeza, bem como a de serviços especializados ligados à atividade-meio do tomador, desde que inexistente a pessoalidade e a subordinação direta.

IV — O inadimplemento das obrigações trabalhistas, por parte do empregador, implica a responsabilidade subsidiária do tomador dos serviços quanto àquelas obrigações, desde que haja participado da relação processual e conste também do título executivo judicial.

V — Os entes integrantes da Administração Pública direta e indireta respondem subsidiariamente, nas mesmas condições do item IV, caso evidenciada a sua conduta culposa no cumprimento das obrigações da Lei n. 8.666, de 21.06.1993, especial-mente na fiscalização do cumprimento das obrigações contratuais e legais da presta-dora de serviço como empregadora. A aludida responsabilidade não decorre de mero inadimplemento das obrigações trabalhistas assumidas pela empresa regularmente contratada.

VI — A responsabilidade subsidiária do tomador de serviços abrange todas as verbas decorrentes da condenação referentes ao período da prestação laboral.

Não é difícil perceber a grave crise de instituições que se instaura hoje no Brasil, pois a Súmula n. 331 constitui verdadeira norma que procura disciplinar matéria não regulada pelo legislador. O Poder Judiciário, portanto, extrapolando suas funções, editou regras que permitem terceirização em atividades de limpeza ou “atividades-meio”, criando conceitos que não estão consolidados na jurisprudência nem previstos em norma legal. Essa atitude pró-ativa (em sentido flagrantemente negativo, já que a terceirização constitui medida de evidente precarização/ flexibilização nas relações de trabalho), adotada pelo Poder Judiciário trabalhista, revela a magnitude do problema que resolvemos abordar.

No Brasil, portanto, a terceirização é, como regra, ilícita, sendo legalmente permitida apenas nas hipóteses já referidas. Nada obstante, na prática trabalhista tem sido amplamente praticada, com a chancela do Poder Judiciário, que “regula” a matéria por meio de súmula que, como adiante poderemos observar, acaba por constituir o fundamento das decisões proferidas sobre a matéria.

Importante pontuar que a inexistência de previsão expressa da possibilidade de terceirizar não impede a declaração da responsabilidade da tomadora dos serviços, seja quando a intermediação da mão de obra é considerada ilícita, seja quando é tolerada como prática regular, pela Justiça do Trabalho no Brasil.

A responsabilidade da tomadora dos serviços, pelos créditos trabalhistas, deve ser fundamentada na lei civil, justamente em razão da ausência de legislação própria. Na Consolidação das Leis do Trabalho temos apenas regras que podem ser invocadas, por analogia, tal como a que estabelece solidariedade na relação entre trabalhador, pequeno empreiteiro e subempreiteiro273.

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No Código Civil, por sua vez, estão as regras gerais acerca da responsabilidade, cuja aplicação se revela absolutamente compatível com os princípios que instruem o Direito do Trabalho. O art. 927 do Código Civil, regra geral acerca da teoria da responsabilidade nas relações privadas no Brasil, dispõe que “aquele que, por ato ilícito, causar dano a outrem, fica obrigado a repará-lo”. O parágrafo único desse dispositivo acrescenta que “haverá obrigação de reparar o dano, independentemente de culpa, nos casos especificados em lei, ou quando a atividade normalmente desenvolvida pelo autor do dano implicar, por sua natureza, risco para os direitos de outrem”.

Trata-se do que a doutrina denomina teoria do risco, em que a responsabilidade é identificada não em razão de culpa ou dolo, mas em face da simples assunção do risco do resultado lesivo. Na parte geral do mesmo Código Civil, o art. 187 refere que responde pelo dano quem exerce seus direitos “excedendo manifestamente os limites impostos pelo seu fim econômico ou social”.

Esse constitui outro dispositivo de grande valia ao Direito do Trabalho, pois fixa a responsabilidade para além da culpa, pelo simples fato de exceder o fim social que, no caso da empresa, é em última análise a finalidade de “dar emprego”.

Temos, ainda, no direito brasileiro, o art. 932 do Código Civil, segundo o qual são também responsáveis pela reparação civil: “III — o empregador ou comitente, por seus empregados, serviçais e prepostos, no exercício do trabalho que lhes competir, ou em razão dele”. O tomador de serviços qualifica-se, aqui, como comitente, em caso de reconhecimento da licitude da terceirização.

Por fim, o art. 942, também do Código Civil, refere que os bens do responsável pela ofensa ou violação do direito “ficam sujeitos à reparação do dano causado; e, se a ofensa tiver mais de um autor, todos responderão solidariamente pela reparação”. E diz claramente, em seu parágrafo único, que “são solidariamente responsáveis com os autores os coautores e as pessoas designadas no art. 932”.

No Brasil, portanto, a responsabilidade da tomadora dos serviços pelos créditos do trabalhador é solidária. A responsabilidade subsidiária não existe como instituto próprio. É mera criação da Súmula n. 331 do TST, que na qualidade de orientação jurisprudencial, não pode legislar ou prevalecer sobre comando legal vigente. Em realidade, a única hipótese de subsidiariedade, denominada ‘benefício de ordem’ prevista na ordem jurídica...

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