A especificidade da prova no processo do trabalho: a questão dos deveres do empregador

AutorValdete Souto Severo
Ocupação do AutorJuíza do Trabalho, Mestre em Direitos Fundamentais pela PUC/RS, professora e vice-diretora na FEMARGS/RS
Páginas213-224

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Introdução

O processo, tal como o compreendemos e aplicamos atualmente, está impregnado de concepções próprias da era moderna. O cientificismo, a determinar a necessidade de prova dos fatos346, até então concebidos inclusive a partir dos sentidos, nos faz compreender a importância que até hoje se atribui à descoberta da verdade.

A questão da prova se inscreve nesse contexto. A prova é o meio de que as partes dispõem para convencer o juízo, aproximá-lo da sua versão da verdade. Em razão do âmbito deste artigo, não nos deteremos na questão da verdade e na necessidade de sua superação e de resgate do processo como diálogo hermenêutico, sujeito a inúmeras versões, todas dotadas de uma carga significativa desse estranho conceito que é a verdade.

Retomamos aqui a noção moderna de processo, apenas para justificar ou fazer compreender a importância que o tema da produção de provas possui, ainda hoje, entre os intérpretes aplicadores do Direito.

Muitos são os estudos que se dedicam ao tema. É eloquente, porém, o silêncio acerca da especificidade do processo trabalhista, em relação aos demais ramos do direito. Embora boa parte dos autores admita a incidência do princípio da proteção no âmbito processual (matéria que, por incrível que pareça, segue controvertida na doutrina), parece mesmo invisível o principal caráter distintivo que daí decorre: a

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existência de um conjunto de deveres fundamentais do empregador, que modificam, radicalmente, o exame da prova no âmbito do processo trabalhista.

É sobre esse conjunto de deveres e sua consequência, para o exame da prova no processo trabalhista, que falaremos brevemente neste estudo. O tema tem amplitude que não se coaduna com o âmbito do artigo, razão pela qual algumas questões precisarão ser pressupostas.

Trata-se de um acordo necessário, para que a abordagem, dentro do espaço aqui delimitado, atinja seu objetivo. Partiremos, pois, da premissa de que o processo do trabalho se diferencia dos demais ramos da denominada ciência processual exatamente em razão do direito material que tutela. O que o identifica é, pois, o princípio da proteção, exatamente como ocorre no espectro material do Direito do Trabalho.

Esse fato determina que a visão do Juiz do Trabalho seja radicalmente diversa daquela de outros juízes, de outros ramos do direito. A noção de proteção ao trabalho humano, dever do empregador e do Estado (Legislador — Administrador — Juiz) impregna a relação processual, misturando — propositadamente — aspectos materiais e processuais numa mesma regra.

Essa concepção, talvez intuitiva, mas muito clara na redação da CLT, é provavelmente o maior avanço por ela propiciado em termos de função do EstadoJuiz (e, portanto, do processo) na realização do direito material.

A afirmação que fizemos torna necessária uma observação. Em realidade, outra questão a ser pressuposta neste artigo: direito material e processual constituem âmbitos de uma mesma coisa. Não se dissociam.

Não há mais, portanto, como tratar regras de direito material sem se preocupar com a forma como o Estado-Juiz impõe sua observância. Tampouco é possível tratar de processo descurando regras de direito material que, em última análise, o justificam.

O exame da prova no processo do trabalho deve superar essa falsa dicotomia, sob pena de não compreendermos o dever de produção prévia de prova documental contido em vários dispositivos inscritos em nossa ordem jurídica desde 1943, e sua imbricação com a questão do ônus da prova.

É a partir desses pressupostos que analisaremos, brevemente, a especificidade da prova no processo trabalhista, em razão do conjunto de deveres fundamentais que gravam a figura do empregador e cuja incidência em âmbito processual precisa ser urgentemente resgatada.

1. Dever de produção prévia da prova documental: característica fundamental do processo do trabalho

A CLT traz em sua gênese, ainda que de forma intuitiva, a superação da dicotomia entre os âmbitos material e processual, quando — ao tratar do contrato

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de trabalho em regras de direito material — estabelece deveres prévios de produção de prova documental. E o faz em pontos cruciais da relação entre capital e trabalho.

Determina que o contrato seja registrado na CTPS do trabalhador (art. 29), que a jornada seja devidamente anotada (art. 74), que o salário seja pago mediante recibo (art. 464). Determina, ainda, que seja escrito o “pedido” de demissão e o termo de quitação das verbas resilitórias, ambos com assistência do sindicato, sempre que se tratar de contrato com mais de um ano de vigência (art. 477).

Devemos questionar, fugindo do senso comum que nos anestesia e impede o pensamento crítico, a razão dessas regras, que habitam o campo do direito material do trabalho. Por que exigir do empregador que pague salário sempre mediante recibo ou que proporcione o registro idôneo da jornada de seus empregados? Qual a razão para uma regra dessa natureza, que não a prévia produção de prova acerca de fatos que, de outro modo, dificilmente poderiam ser demonstrados em um eventual futuro processo trabalhista?

Note-se que a CLT, nesse aspecto, promoveu um avanço que, apesar de revolucionário em termos de ciência processual, passou despercebido ao longo de várias décadas e está sendo desrespeitado pelo retrocesso injustificável promovido pela Súmula n. 338 do TST347. O avanço consiste justamente em superar a questão do ônus da prova, em favor de um sistema de deveres que oneram a parte reconhecida como a mais apta à produção de documentos durante o desenrolar da relação material.

Algumas decisões se referem à aptidão para a produção da prova, mas a analisam sob o aspecto da distribuição do ônus entre os litigantes. O que propomos é diverso. Não se trata de perquirir ônus (seja pelo critério da melhor aptidão, seja pelo critério da distribuição especificada, seja ainda pelo equivocado critério da inversão, previsto no CDC), mas sim, de assumir uma postura comprometida com o sistema de deveres inscrito na CLT para, apenas quando superadas as questões relativas aos deveres do empregador, passar-se ao exame do ônus da prova.

O sistema diferenciado concebido pela CLT não se limita às disposições materiais acerca de um dever de documentação cujo objetivo certamente tem estreita relação com o âmbito processual. O art. 818, que trata expressamente do ônus da prova, reforça a convicção de que houve uma ruptura significativa com a ideia geral de que a prova deve ser produzida a partir do ônus que se atribui ao litigante, para a compreensão de que esse ônus só deve ser investigado, quando superada a questão do dever fundamental atribuído ao empregador.

O dispositivo estabelece que a “prova das alegações incumbe à parte que as fizer”. Sua simplicidade e exatidão causaram tamanha perplexidade entre os

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doutrinadores, que se multiplicam os defensores da tese segundo a qual ele precisa ser integrado, complementado, pela redação do art. 333 do CPC348, também relativo à distribuição do ônus da prova.

O que não se quer perceber, e recordamos aqui as lições de Ovídio Baptista, quando se refere à “astúcia da razão conservadora” e à “cegueira propositada do discurso dominante”349, é que o art. 818 é suficiente em si. Sua redação é simples justamente porque no processo do trabalho, ao contrário do que ocorre no processo civil, o ônus (que sempre caberá a quem alegar) só será perquirido após superadas as questões relativas aos deveres de produção de prova, que recaem sobre a figura do empregador350.

Note-se: quando a CLT determina, por exemplo, a obrigação de manutenção de registro escrito da jornada, está fixando um dever diretamente relacionado ao processo e, com isso, determinando que a prova acerca da jornada, sempre que preenchido o requisito legal — mais de dez empregados —, será necessariamente documental e adequada à determinação do art. 74. Caso contrário, não haverá prova a ser feita. Aqui, o texto da CLT pressupõe a noção geral acerca da distinção entre ônus e dever, e suas decorrências.

Quem tem o dever de agir e não age está sujeito à coerção. De outra parte, quem tem ônus poderá permanecer inerte e daí não advirá coerção alguma. Arcará, porém, com as consequências do seu agir. Essa diferença não impede a intersecção dos dois conceitos. Como observa Pontes de Miranda, “não existe o dever de contestar, nem de provar”, já que o dever habita o campo do direito material. Entretanto, “em algumas espécies de sanção não reparativa, há sanção à infração de dever”351.

Para compreender o sistema de exame da prova estabelecido na CLT, em razão da proteção que informa o Direito do Trabalho, precisamos relembrar o conceito de dever, a fim de diferenciá-lo e de reconhecê-lo nas regras materiais antes referidas.

1.2. Os Deveres e suas Consequências

Estamos acostumados a...

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