Entre o ordenamento jurídico e o costume: o problema da quitação no acordo trabalhista

AutorValdete Souto Severo
Ocupação do AutorJuíza do Trabalho, Mestre em Direitos Fundamentais pela PUC/RS, professora e vice-diretora na FEMARGS/RS
Páginas179-193

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Introdução

Lidar com o Direito do Trabalho é tarefa árdua, porque já pressupõe, de saída, o reconhecimento de suas características paradoxais: é fruto do sistema capitalista mas é por ele diariamente combatido; é resultado do movimento organizado dos trabalhadores mas também da necessidade do enfrentamento de crises típicas da economia liberal (para mantê-la firme e forte); é direito positivado e garantido pelo Estado mas é também direito construído, com dor e sofrimento, pelas partes. Essas e tantas outras aparentes incoerências forjam uma disciplina jurídica e social que teima em desafiar conceitos clássicos, que se renova constantemente e cujo papel principal, ao contrário de disciplinador, revela-se a cada dia mais transformador.

Nesse ambiente, dentre tantas questões relevantes, pinçamos aquela relativa à quitação no âmbito de um acordo trabalhista. Já escrevemos sobre o tema, mas não é demais insistir no assunto. Sua importância torna-se evidente, quando percebemos que o ordenamento jurídico veda expressamente uma prática adotada e cultuada por Juízes e Advogados, e que os argumentos “científicos” que tanto impressionam os intérpretes/aplicadores do direito, são aqui simplesmente ignorados em nome de uma suposta necessidade de conciliar.

O processo do trabalho é o ambiente em que o Direito do Trabalho tem condições de se tornar efetivo. E essa constatação já revela a insuficiência do discurso constitucional, para ingressar de vez nas relações de trabalho e fazer prevalecer a lógica de observância dos direitos fundamentais. Sabemos o quão longe estamos de tornar os direitos trabalhistas uma realidade social espontânea. Em alguns âmbitos da vida — nas estéticas, na construção civil, em nossas casas — parece mesmo

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estranho falar de vínculo de emprego, de direito à limitação da jornada, de regras de proteção à saúde do trabalhador.

Esse déficit de efetividade se reflete nas demandas que chegam ao Poder Judiciário Trabalhista. E é justamente ali que o Estado tem condições de “dar o recado”, recompondo o dano e imprimindo à decisão um caráter pedagógico. Vale dizer: demonstrando à sociedade que é melhor, em todos os sentidos, observar espontaneamente o direito posto.

Ninguém mais discute essa “função” processual. Ao contrário, a ideia de colaboração no processo, de boa-fé objetiva, de fortalecimento das decisões do Juiz de primeiro grau (mediante institutos como a antecipação de tutela, por exemplo) permeiam as obras jurídicas e a jurisprudência contemporânea. Mas há também, é preciso reconhecer, ao lado desse discurso em prol da efetividade, uma grande preocupação com o que se convencionou chamar “política judiciária”. Em nome da celeridade da prestação jurisdicional, conciliar (noção desde sempre presente e implícita à natureza mesma do processo trabalhista) tornou-se ordem do dia.

Nesse cenário, a discussão acerca dos limites da quitação em um acordo trabalhista adquire importância ainda maior. Conciliar pode ser legal, como apregoa o CNJ, mas só será efetivamente válido, dentro da lógica constitucional em que nos situamos, se observar os limites necessários para evitar a vedação do acesso à jurisdição, bem como a renúncia prévia e genérica de direitos que o texto constitucional reconhece como irrenunciáveis.

Este artigo, portanto, enfrentará a questão do acordo no processo trabalhista, sob a perspectiva de um Estado Social e Democrático de Direito, atento às disposições jurídicas vigentes e à necessidade de consolidação de uma lógica solidária, dentro da qual a irrenunciabilidade dos direitos sociais trabalhistas tem importância especial.

1. A conciliação: um objetivo louvável

A conciliação tem sido alvo de vigorosas campanhas publicitárias. O Conselho Nacional de Justiça instituiu a semana nacional da conciliação, em que Juízes do Trabalho são convocados a promover, com afinco, mediante esse instrumento, a pacificação dos litígios que lhes são submetidos. É verdade, conciliar é legal, como afirma a campanha publicitária. Conciliar é um dos objetivos da Justiça do Trabalho desde sua criação, porque promover a pacificação do conflito de forma a atender aos interesses das duas partes é um ideal que sem dúvida deve ser perseguido.

A conciliação, porém, tem seus limites. O limite diz justamente com o conflito submetido ao Poder Judiciário. E o papel do Juiz do Trabalho, diante da intenção pacificadora das partes, é justamente demonstrar esse limite, impedindo falsas conciliações que, em realidade, se caracterizam como renúncia genérica e futura de créditos trabalhistas, cuja natureza alimentar a Constituição reconhece, em seu

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art. 100299. Do contrário, bastaria um documento assinado pelas partes, observando que o trabalhador, ao receber mil reais, abre mão de qualquer outra verba que decorra do contrato de trabalho que firmou com determinada empresa.

Para obter a chancela do Poder Judiciário trabalhista, esse ajuste não pode ser genérico ou inespecífico. Por isso mesmo, o Código Civil e a CLT estabelecem que a quitação deve conter os valores e a espécie das verbas que contempla, e deverá ser interpretada de modo restritivo. Esse é o limite da conciliação. Esse é o papel do Juiz do Trabalho: permitir a verdadeira resolução do conflito mediante acordo em que ambas as partes saiam ganhando (ainda que parcialmente) e no qual estejam contempladas verbas efetivamente submetidas a sua apreciação. Um acordo em que, em suma, não haja renúncia a crédito alimentar, sob pena de violação do art. 100 da Constituição, do art. 1.707 do Código Civil300 e do art. 9º da CLT301.

É preciso, pois, pontuar desde logo o limite que se instala entre conciliar e renunciar. Em seguida, precisamos identificar o papel do Juiz nesse “momento processual”, especialmente para compreender o que está à disposição das partes e o que exatamente compõe a função jurisdicional, durante a conciliação.

2. O ordenamento jurídico vigente: conciliar ou quitar não são conceitos à disposição do intérprete ou dos litigantes

O conceito de “transação” está positivado. Depreende-se do art. 840 do Código Civil que a transação pressupõe um litígio (presente ou futuro)302. Assim, somente poder-se-ia admitir a transação do “contrato de trabalho”, ou da “extinta relação de emprego”, caso se entendesse juridicamente possível, igualmente, um litígio em que o autor da ação postulasse “as parcelas decorrentes do ‘contrato de trabalho’ ou da ‘extinta relação de emprego’” também de forma genérica. Em tal caso, caberia à parte ré e ao Juiz identificar todas as parcelas compreendidas nesse pedido. A postulação de forma tão genérica é quase tão absurda quanto uma quitação com tal generalidade!

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A petição inicial, no processo do trabalho, ainda que tenha requisitos simplificados, exige a breve exposição dos fatos que originam o litígio, cabendo ao Juiz extrair o direito que desses fatos decorrem. Deve, porém, contar com pedido certo e determinado, sob pena de inépcia303.

O Código Civil, ao disciplinar o que seja a transação, refere também que ela só pode ocorrer em relação a direitos patrimoniais de caráter privado (art. 841) e que “a transação interpreta-se restritivamente, e por ela não se transmitem, apenas se declaram ou reconhecem direitos” (art. 843). Transação é, portanto, o ato jurídico pelo qual as partes, fazendo concessões recíprocas, extinguem obrigações litigiosas ou duvidosas. São litigiosas as obrigações discutidas na lide, ou seja, deduzidas na demanda trabalhista. Por sua vez, são duvidosas as obrigações em relação às quais não houve confissão ou admissão (de forma expressa ou tácita). O termo concessões mútuas impõe a ideia de vantagens e perdas equitativas, para as duas partes envolvidas no litígio304. A disposição, presente no Código Civil, que parte de um pressuposto de igualdade material, deve ser examinada com ainda maior restrição no âmbito de um processo trabalhista, que reconhece a desigualdade material entre os litigantes.

Portanto, a transação no âmbito do direito do trabalho deve ser examinada com ainda mais cuidado, pois embora diante de direitos patrimoniais de caráter privado, estaremos, sempre, diante de direitos com relevância pública. Relevância que o assento constitucional às normas trabalhistas não permite questionar. Por isso mesmo, embora seja louvável e mesmo desejável a composição amigável do litígio trabalhista, mediante transação, não podemos — justamente no âmbito do direito informado pela ideia de proteção ao trabalho humano — descurar os limites dentro dos quais isso é juridicamente possível.

Assim como a transação, a quitação é conceito jurídico previsto no Código Civil, segundo o qual ela deverá conter “o valor e a espécie da dívida quitada, o nome do devedor, ou quem por este pagou, o tempo e o lugar do pagamento, com a assinatura do credor, ou do seu representante” (art. 320). O ordenamento jurídico ainda determina que “quando o pagamento for em quotas periódicas, a quitação da última estabelece, até prova em contrário, a presunção de estarem solvidas as anteriores” (art. 322); que “sendo a quitação do capital sem reserva dos juros, estes presumem-se pagos” (art. 323) e que a “entrega do título ao devedor firma a presunção do pagamento” (art. 324).

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Quitação é, portanto, resultado de pagamento. Quitam-se valores, e não direitos. Os direitos podem ser transacionados ou renunciados. O direito trabalhista é irrenunciável e, por consequência, também o crédito que dele decorre, sua expressão monetária305.

Na CLT, a única referência jurídica à...

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