Globalização: unidade na diversidade. Uma nova hipótese global

AutorCarla Maria Santos Carneiro - Germano Campos Silva - Lila de Fátima Carvalho Ramos
Páginas29-45

Page 29

Chamada, então, à presença do rei e desafiada publicamente a indicar o direito com base no qual agira daquela maneira, desobedecendo ao edito real, Antígona afirmou ter tomado a decisão com base num direito muito mais antigo do que o rei e a própria sociedade, um direito cujo nascimento se perde na origem dos tempos — o direito à dignidade. (DALLARI et al. apud CARVALHO, 2004, p. 25-6)

Muito se fala sobre globalização. Para alguns é o que há de melhor, para outros é causa de perdição. É que, enquanto sinônimo de união, a globalização representa o que há de melhor, ou seja, comunhão. Mas, enquanto sinónimo de modernização, a globalização representa o que há de pior, qual seja, divisão. Eis a contradição: comunhão e divisão.

Para Bauman (1999), a globalização é a nova ordem do dia. Uma palavra que se tornou moda, lema, encantação mágica, senha capaz de abrir portas e desvendar mistérios presentes e futuros.

De acordo com o autor, a globalização tanto pode ser motivo de felicidade como de infelicidade e, para todos, ela é o destino irremediável do mundo, num processo irreversível. É algo que divide e une; divide enquanto une e cujas causas de divisão são idênticas às que promovem a uniformidade do globo, sobrenatural e ao mesmo tempo material (BAUMAN, 1999).

Ainda segundo Bauman (1999), se antes os muros eram construídos em volta de uma cidade visando proteger todos os seus habitantes, agora esses mesmos muros entrecruzam a própria cidade em várias direções e individualizam todos os seus habitantes.

Page 30

Estratégias de sobrevivência que não o são, visto que a globalização deveria significar comunhão e não separação. A respeito dessa contradição, Rui Costa afirma que:

A globalização é um daqueles contraditórios fenómenos da pós--modernidade de que falamos anteriormente. Contraditório não só por trazer em seu bojo um imenso arsenal de possibilidades positivas e instigantes junto a outras tantas imensamente problemáticas, como também por conviver, dentro do cenário pluralista de nossa época, com tendências diametralmente opostas. (COSTA, 1998 apud ROCHA, 1998, p. 51)

É certo que a globalização na forma como vivida no mundo contemporâneo é um processo contraditório, mas isso não significa que essa contradição deva ser mantida. Transcendência é a ordem do dia. Caminhar em direção ao sol, buscar a luz, entrever novos horizontes, empreender novas relações humanas é possível. Refletir sobre o dever — ser da globalização e apontar novas direções é o objetivo maior do presente estudo.

Globalizados e excluídos

Se comungar é compartilhar, unir, identificar, ligar e comunicar, e globalizar é integrar, unir, difundir, interagir, aproximar e interligar, é lícito concluir que comunhão e globalização são palavras sinónimas. Não obstante, não é isso que está ocorrendo no mundo contemporâneo. Segundo Alves (2013), a globalização incontrolada não está unificando, mas sim criando divisões acentuadas na esfera social e cultural.

De acordo com o autor, o fenómeno mais perceptível da globalização incontrolada tem sido a emergência de duas classes distintas que extrapolam os limites territoriais: os globalizados, assim considerados aqueles que são abarcados positivamente pela globalização, e os excluídos, assim considerados os integrantes de mais de três quartos da humanidade (ALVES, 2013).

Classes opostas, aspirações contrárias. Segundo o autor, os globalizados aspiram padrões de consumo do Primeiro Mundo, enquanto que os excluídos (da globalização e do mercado) aspiram tão somente condições mínimas de sobrevivência, as quais, por não atingidas, tornam-se responsáveis pela sua mais completa marginalização da sociedade (ALVES, 2013).

Marginalização essa já prevista por Arendt (2013) que, ao refletir sobre os efeitos dos regimes totalitários, não teve dúvidas em declarar que seria bastante concebível que numa economia automatizada de um futuro não muito distante,

Page 31

os homens poderiam exterminar todos aqueles cujo quociente de inteligência estivesse abaixo de determinado nível.

Previsão confirmada. Para Alves (2013), a volatilidade dos capitais financeiros e a busca incansável por mão de obra barata e por incentivo fiscal é responsável por colocar as pessoas excluídas (da globalização e do mercado) abaixo da linha da pobreza.

Volatilidade e cumplicidade

O capital se tornou leve, líquido e volátil. Para Bauman (2014), o seu nível de mobilidade espacial é suficiente para fazer com que os Estados se curvem ao seu poder. De acordo com o autor, isso significa baixos impostos, menos regras e maior flexibilidade. O Estado se afasta, a proteção social se esvai e a população se torna mercê de um capitalismo brutal e desconcertante. Pois, num mundo onde prevalece o desemprego estrutural, ninguém pode se sentir verdadeiramente seguro. Flexibilidade é a palavra do dia (BAUMAN, 2014).

Essa é a famigerada modernidade líquida. E, de acordo com o autor, observar essa miséria humana e concluir que não há alternativa implica em cumplicidade (BAUMAN, 2014).

Sobre essa cumplicidade, Arendt reflete:

No Terceiro Reich, o Mal perdera a qualidade pela qual a maior parte das pessoas o reconhece — a qualidade da tentação. Muitos alemães e muitos nazistas, provavelmente a esmagadora maioria deles, deve ter sido tentada a não matar, a não roubar, a não deixar seus vizinhos partirem para a destruição (pois eles sabiam que os judeus estavam sendo transportados para a destruição, é claro, embora muitos possam não ter sabido dos detalhes terríveis), e a não se tornarem cúmplices de todos esses crimes tirando proveito deles. Mas Deus sabe como eles tinham aprendido a resistir à tentação. (ARENDT, 2013, p. 167)

Arendt (2013) preconizou ainda que a partir do momento em que o regime nazista declarou que o povo alemão não só não permitiria que os judeus permanecessem na Alemanha, mas que faria com que desaparecessem da face da terra foi criado um novo crime. O crime contra a humanidade. Ou melhor, um crime contra o status humano.

Dignidade: universalidade dos direitos humanos

Proclamada pela Assembleia Geral das Nações Unidas, em Paris, no dia 10 de dezembro de 1948, por meio da Resolução n. 217 (III), a Declaração Universal

Page 32

dos Direitos Humanos é descrita por Mazzuoli (2010) como paradigma e referencial ético para toda a comunidade internacional no que tange à proteção internacional do meio ambiente como um direito humano fundamental a todos, estabelecendo desde o seu art. 1º que "Todos os seres humanos nascem livres e iguais em dignidade e em direitos. Dotados de razão e de consciência, devem agir uns para com os outros em espírito de fraternidade" (DECLARAÇÃO UNIVERSAL..., 2005).

Por sua vez, Dallari et al. afirmam que foi justamente o Primeiro Artigo da Declaração Universal dos Direitos Humanos que delineou a sociedade que se queria implantar fundada, sobretudo, na afirmação do valor essencial da pessoa humana. "Ao falar de direitos humanos", explicam Dallari et al.:

[...] refiro-me aos direitos fundamentais da pessoa humana. Eles são ditos fundamentais porque é necessário reconhecê-los, protegê-los e promovê-los quando se pretende preservar a dignidade humana e oferecer possibilidades de desenvolvimento. Eles equivalem às necessidades humanas fundamentais. (DALLARI et al. apud CARVALHO, 2004, p. 25) E refletem:

Como surgiu essa ideia de que a pessoa humana tem direitos essenciais, isto é, que nascem com ela? Uma das primeiras referências históricas pode ser encontrada em uma obra de teatro grego clássico: trata-se de Antígona, de Sófocles. O irmão da personagem que dá nome àquela tragédia tinha participado de uma conspiração, sendo, por isso, preso e condenado à morte. O rei que o condenara estabeleceu também que o corpo do rapaz não poderia ser enterrado. Para que aquela condenação servisse de exemplo a todos, o corpo teria de ficar exposto para sempre, em contínua putrefação. Antígona, porém, contrariou aquela determinação e deu sepultura ao cadáver. Chamada, então, à presença do rei e desafiada publicamente a indicar o direito com base no qual agira daquela maneira, desobedecendo ao edito real, Antígona afirmou ter tomado a decisão com base num direito muito mais antigo do que o rei e a própria sociedade, um direito cujo nascimento se perde na origem dos tempos — o direito à dignidade. (DALLARI et al. apud CARVALHO, 2004 p. 25-6)

Para esses autores,

Essa é a base da organização que será considerada justa, isto é, aquela que reconhece na prática a afirmação dos direitos inerentes à condição humana. Deve-se destacar particularmente a afirmação — até

Page 33

então inédita — da dignidade humana como valor fundamental. A dignidade é postulada como essencial aos seres humanos. Eles não podem, pois, ser submetidos a situações em que essa dignidade não seja reconhecida e respeitada. (DALLARI et al. apud CARVALHO, 2004, p. 37-8)

Concluem dizendo que em sequência ao momento histórico advindo da Declaração Universal dos Direitos Humanos, a própria Organização das Nações Unidas (ONU), em 1966, promulgou dois tratados denominados: "Pacto Internacional de Direitos Civis e Políticos" e "Pacto dos Direitos Económicos, Sociais e Culturais", sendo que esse último contempla como um dos direitos fundamentais, o direito ao trabalho em condições dignas e justas, pacto esse que entrou em vigor na ordem internacional no dia 3 de janeiro de 1976 e foi ratificado pelo Brasil apenas no ano de 1992.

No plano do Direito interno brasileiro, a dignidade da pessoa humana e os valores sociais do trabalho e da livre-iniciativa são...

Para continuar a ler

PEÇA SUA AVALIAÇÃO

VLEX uses login cookies to provide you with a better browsing experience. If you click on 'Accept' or continue browsing this site we consider that you accept our cookie policy. ACCEPT