Inventário por escritura pública

AutorMaria Cecília Naressi Munhoz Affornalli/Rosalice Fidalgo Pinheiro
Páginas769-793
Capítulo 33
INVENTÁRIO POR ESCRITURA PÚBLICA
Maria Cecília Naressi Munhoz Affornalli
Rosalice Fidalgo Pinheiro
SUMÁRIO: 1. Para uma leitura interdisciplinar da sucessão hereditária: auto-
nomia privada e jurisdição. 1.1. Propriedade e solidariedade familiar na sucessão
hereditária: presença do Estado? 1.2. Um enfoque ético do processo: instrumen-
talidade e efetividade. 2. Inventário e partilha por escritura pública. 2.1. O ad-
vento da Lei n. 11.441/2007. 2.2. A via administrativa: faculdade ou obrigação?
3. O procedimento administrativo do inventário e da partilha. 3.1. Legitimidade
para requerer escritura pública. 3.2. Competência. 3.3. Requisitos para a escri-
tura pública de inventário e partilha. 3.4. O princípio da aplicabilidade imediata
e sua repercussão diante da Lei n. 11.441/2007. 4. A responsabilidade social na
condução do inventário: do estado-juiz ao advogado e o tabelião de notas. 5. De-
lineando os contornos da interdisciplinaridade no inventário: autonomia privada
e efetividade na tutela do Estado.
1. PARA UMA LEITURA INTERDISCIPLINAR DA SUCESSÃO HEREDITÁ-
RIA: AUTONOMIA PRIVADA E JURISDIÇÃO
1.1. Propriedade e solidariedade familiar na sucessão hereditária: presença
do Estado?
O termo sucessão hereditária designa a “transmissão dos bens de uma
pessoa pelo fato de sua morte”.1 Tal concepção coloca em causa os funda-
mentos dessa transmissão: propriedade e solidariedade familiar conjugam
um elemento econômico e, outro, moral, na justificativa do fenômeno suces-
sório.2
769
1 GRIMALDI, Michel. Droit civil: sucessions. 2. ed. Paris: Litec, 1992, p. 3.
2 Cogita-se, ainda, uma justificativa psicológica para a sucessão hereditária: a sucessão
advém de um sentimento de imortalidade, relacionando o “ser e o ter”. Eis que os bens,
por vezes, portam as marcas físicas ou afetivas de seu proprietário. Consequentemente,
deixar os bens aos filhos é deixar um pouco de si mesmo. A propriedade, então, aparece
como um prolongamento do corpo. As justificativas econômica e psicológica conduzem
a devolução sucessória a um princípio de liberdade testamentária, e a justificativa fami-
Em atenção ao primeiro desses fundamentos, afirma-se que “a proprieda-
de precede à herança”, mas, ao mesmo tempo, suscita-se uma indagação: é
conveniente considerá-la como seu fundamento?3
A perspectiva individualista que forjou o Direito Privado Moderno res-
ponderia afirmativamente a essa questão, pois a liberdade de propriedade
não existiria sem a liberdade de transmiti-la. Por outras palavras, em um sis-
tema jurídico no qual a autonomia privada restava identificada à liberdade
econômica, dispor gratuitamente dos bens é uma das maiores liberdades pa-
trimoniais. Trata-se de mero corolário da propriedade individual.
Nas entrelinhas dessa fundamentação, a sucessão hereditária ainda se re-
vela como condição de exploração econômica dos bens. Eis que ela encoraja-
ria o espírito empreendedor e favoreceria o progresso econômico.4
Contudo, não pode ser desconsiderado que o homem não trabalha ape-
nas para si, mas, ainda, para sua família. Trata-se de fundamentar na família
o fenômeno de devolução sucessória. Se, durante a vida do autor da herança,
parentes mais próximos fruíram de seus bens, imprime-se ao patrimônio um
contorno familiar. Justifica-se uma tutela social desses bens, medida pelos
laços de solidariedade. Semelhante princípio traduz uma solidariedade eco-
nômica: o trabalho dos componentes da família legítima uma justa proporcio-
nalidade no dever de contribuição para seu sustento.5
Por conseguinte, a herança é traduzida no exercício de um dever familiar,
segundo o qual os pais ajudam materialmente seus filhos, alcançando a coe-
são da família.6 Esta última e a propriedade privada se entrelaçam na condu-
ção do fenômeno sucessório: a proteção do patrimônio familiar.
Todavia, as últimas décadas testemunham, ao mesmo tempo, um proces-
so de mobilização e desmaterialização de riquezas e afrouxamento dos víncu-
los familiares. Nas sociedades pós-industrializadas, os bens imateriais assu-
mem o primeiro plano no cenário das titularidades e subtraem da proprieda-
de individual e materializada o papel de controle e gestão de riquezas.7 Por
outro lado, os filhos saem mais cedo de casa, usufruindo cada vez menos dos
bens de seus pais, e mitigando-se a concepção de patrimônio familiar.
Trata-se de indagar acerca do alcance da fundamentação, antes escolhida,
no modo de organização da devolução sucessória: a lei ou a vontade?
770
liar, uma vez ignorada, possibilita uma liberdade testamentária ilimitada (GRIMALDI,
Michel. Droit civil: sucessions. 2. ed. Paris: Litec, 1992, p. 4).
3 TERRÉ, François; LEQUETTE, Yves. Droit civil: les sucessions. Paris: Dalloz,
1983, p. 4.
4 GRIMALDI, Michel. Droit civil: sucessions. 2. ed. Paris: Litec, 1992, p. 4.
5 PERLINGIERI, Pietro. Perfis do direito civil. Rio de Janeiro: Renovar, 1997, p. 266.
6 GRIMALDI, Michel. Droit civil: sucessions. 2. ed. Paris: Litec, 1992, p. 4.
7 ROPPO, Enzo. O contrato. Coimbra: Almedina, 1988, p. 64.

Para continuar a ler

PEÇA SUA AVALIAÇÃO

VLEX uses login cookies to provide you with a better browsing experience. If you click on 'Accept' or continue browsing this site we consider that you accept our cookie policy. ACCEPT