A judicialização da vida no Brasil e legitimidade democrática

AutorHenriqueta Fernanda Chaves Alencar Ferreira Lima
Páginas47-131
47
Capítulo 1
A JUDICIALIZAÇÃO DA VIDA NO BRASIL E
LEGITIMIDADE DEMOCRÁTICA
A expansão do protagonismo judicial se deu sobretudo após a
Segunda Guerra Mundial, momento de significativas violações aos
direitos essenciais ao ser humano e de ampliação do acesso à justiça,
em todas as democracias do mundo, e que também se verificaram no
Brasil, ganhando intensidade com a Constituição Federal de 1988.
Esse protagonismo é marcado por bastante debate teórico em
torno de sua legitimidade democrática, eis que para uns representa a
intervenção indevida do Estado-juiz em matérias reservadas aos demais
poderes e ao particular, e, para outros, decorre da busca pela sociedade
da concretização das “promessas” da modernidade, materializadas na
Constituição Federal, não cumpridas por quem de direito.
Nesse contexto, o Poder Judiciário é enxergado como a “última
trincheira” e o movimento da “judicialização da vida”, que detém
acepção abrangente e se refere à procura daquele poder à efetivação de
direitos, quer verificada nas mais variadas searas da vida cotidiana, quer
no excesso de litigiosidade, revela-se uma questão que precisa ser
discutida.
1.1 CONTEXTUALIZAÇÃO HISTÓRICA
A compreensão da lógica da separação dos poderes e do papel
exercido pela Constituição, tomando como base alguns marcos
históricos de revelo, é essencial para situar o alcance semântico da
norma jurídica e os limites interpretativos do julgador.
Daí, partindo da perspectiva do Estado Liberal onde a
intervenção estatal é mínima e o purismo normativo impera dentro da
corrente filosófica do positivismo jurídico, sendo a atuação judicial ato
48
mecânico desemboca-se no Estado Neoconstitucionalista, em que se
verifica a ampliação da “moldura” interpretativa do julgador, com a
inserção dos princípios, normas dotadas de carga axiológica.
No Brasil, também se observa esse movimento, em que o Poder
Judiciário, numa lógica da jurisdição constitucional, assume postura
ativa, ou até ativista, sob a justificativa do império da “vontade de
constituição”.
1.1.1 Do Constitucionalismo Liberal ao Neoconstitucionalismo:
do positivismo jurídico ao pós-positivimo, do juiz autômato9
ao juiz protagonista
No Estado Liberal, fruto das Revoluções burguesas do Século
XVII e XVIII, há o rompimento com o absolutismo e a lei assume
função essencial no sentido de resguardar direitos individuais clássicos,
tão desrespeitados, além da defesa e ulterior sedimentação, da lógica da
separação dos poderes e o sistema dos freios e contrapesos. Nesse
modelo de Estado, a função das Constituições seria proteger o indivíduo
contra eventuais abusos de poder pelo Estado, munindo-o de
instrumentos/garantias para tanto.
Por exemplo, em 1689, com a Declaração de Direitos, fruto da
Revolução Gloriosa, a submissão do monarca à lei passou a ser uma
realidade, daí se atribuir a origem do Estado de Direito, que se consolida
com as revoluções americana e francesa do século XVIII.
Procedendo-se à breve retrospecto histórico acerca dos direitos
fundamentais e os relacionando com a teoria da separação dos poderes,
Zulmar Fachin (2019) assinala que, em 1628, com a Petição de Direitos,
produto de embate entre o rei o Parlamento, donde restou sedimentado
que ninguém mais poderia ser julgado pelo monarca, mas por seus
pares, verifica-se a origem do Tribunal do Júri, do Poder Judiciário e da
separação dos poderes do século XVIII. Destaca o referido autor, que
esse último foi formalizado, em 1789, com a Declaração de Direitos do
9 Esse termo foi usado por Canotilho (2007) ao defender a necessidade de observância
de “limites jurídico -constitucionais “pelos juízes, mas não um retorno ao “juiz
autômato”.
49
Homem e do Cidadão, com o rompimento do absolutismo, fruto da
Revolução Francesa (1779), onde o pensamento burguês predominou e
os direitos fundamentais, como à vida, passaram a se sobrepor, por
exemplo, à propriedade privada.
A relevância da Constituição Francesa ao tema “separação dos
poderes e direitos fundamentais” é tamanha, eis que a Constituição
surge com precípuo papel de limitar o poder e de disciplinar os direitos
individuais, sob pena de perder sua essência por ser a materialização da
vontade de uma nação, como assinalado por Sieyei e disposto em seu
art. 1610. (FACHIN, 2019).
A bem da verdade, a compreensão corrente da obra de
Montesquieu parece equivocada, talvez sendo adequadas outras
reflexões acerca da ideia da tripartição de poderes. Veja-se, por
exemplo, que na tripartição de poderes montesquiana, ao Judiciário é
reservada uma posição de poder “invisível e nulo” (MONTESQUIEU,
1962, p. 182). Ora, um poder nulo e sem voz (já que o juiz apenas
poderia emitir a opinião da lei) não pode verdadeiramente ser
considerado como um poder, na estrita acepção do termo. Aliás, Eros
Grau teoriza que Montesquieu jamais cogitara de uma separação de
Poderes, mas apenas uma “divisão com harmonia” (GRAU, 2014, p.
43). A lógica do “checks and ba lances” ou feios e contrapesos, foi
cunhada por Montesquieu (2003, p. 164-165) e sustenta que como
forma de se evitar o abuso de poder é preciso que, pela disposição das
coisas, o poder contenha o poder. Uma constituição pode ser feita de tal
forma, que ninguém será constrangido a praticar coisas que a lei não
obriga, e a não fazer aquelas que a lei permite”. Visão essa também
encampada por Thomas Jefferson (apud SILVEIRA, 1999, p. 76) como
essencial à democracia norte-americana, eis que forma de eliminação
do poder e contenção da tirania.
Segundo Paulo Fernando Silveira:
10 “Art. 16. Toda Sociedade em que a garantia dos Direitos não é assegurada, nem a
separação de Poderes é determinada, não possui Constituição alguma” (FACHIN,
2019).

Para continuar a ler

PEÇA SUA AVALIAÇÃO

VLEX uses login cookies to provide you with a better browsing experience. If you click on 'Accept' or continue browsing this site we consider that you accept our cookie policy. ACCEPT