Justiça econômica

AutorFernando L. Lobo d'Eça
Ocupação do AutorAdvogado tributarista em São Paulo
Páginas43-129
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JUSTIÇA ECONÔMICA
Fernando L. Lobo d’Eça
Advogado tributarista em São Paulo.
Sumário: 1. Introdução – 2. A economia de mercado e os demais siste-
mas econômicos. Estado de direito como limitação ao exercício arbi-
trário dos poderes públicos e à manipulação do Estado por influência
política e econômica – 3. A responsabilidade econômica individual e a
justificação ético-jurídica da aquisição e distribuição da renda e rique-
za privada na economia de mercado – 4. A responsabilidade econômi-
ca do Estado e as intervenções na propriedade privada legitimamente
adquirida. A justiça econômica e as limitações dos poderes de regular,
tributar e sancionar ou punir – 5. A corresponsabilidade econômica e
o princípio da subsidiariedade – 6. A doutrina social da Igreja e sua in-
fluência na economia – Referências bibliográficas.
1. Introdução
O Ilustre Professor Ives Gandra Martins nos convida a
refletir sobre o tema da “Justiça Econômica”, cuja complexi-
dade e relevância se evidenciam, não só em face das inúmeras
questões éticas e filosóficas que enseja (dignidade da pessoa
humana, mérito, solidariedade e etc.), nem só em face das
questões ético-jurídicas que envolvem o tipo de constituição
do Estado, a divisão de funções e responsabilidades entre este
e a economia privada e destes com a sociedade civil e com os
cidadãos, mas porque possibilita a aferição do grau de justiça
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UJUCASP
e eficiência (quantitativa e qualitativa) do próprio regime ju-
rídico-econômico adotado (livre mercado, socialista, ou mis-
to), eis que numa sociedade democrática e justa, não se pode
admitir um desenvolvimento econômico que propicie o bem
estar só de alguns em detrimento de outros.
A justiça é a um só tempo, uma virtude fundamental e
universal, compreensiva de todas as demais virtudes – na me-
dida em que lhes harmoniza e ordena o campo próprio de
atuação de cada qual – e um princípio de perfeição ética, uni-
versalmente admitido como o fim supremo e principal critério
de medida do Direito, eis que este só se justifica e se legitima
na medida em que se ajusta aos princípios de justiça.
O termo justiça pode ser utilizado ordinariamente em dois
significados:1 no seu aspecto formal, quer significar a fiel reali-
zação do direito existente contra qualquer infração arbitrária
a ele; em seu aspecto substancial, o termo implica a conside-
ração de valores sociais essenciais (individuais, transpessoais
e atemporais) que instruem o direito existente, e devem ser
reconhecidos, equilibrados, conciliados e racionalizados numa
síntese (custodia societatis) transcendente às partes da relação
jurídica, que se impõe racionalmente e delimita a extensão da
liberdade pessoal e patrimonial externa (pública e privada) das
autonomias individuais que, dotadas de igual dignidade e re-
conhecidas como membros independentes e indispensáveis de
uma mesma sociedade civil organizada no Estado, como tais,
não podem ser confundidas com o todo, nem ficar sujeitas ao
arbítrio alheio.
Depois de ressaltar a significação “omnicompreensiva” da
palavra justiça (justitia universalis, distributiva, comutativae
etc.), Luis Recasens Siches2 constata que entre todas as teorias
sobre o tema “se dá uma medular coincidência”, concordando
1. Cf. Georges GURVITCH no verbete “Justice” in Encyclopaedia of The Social Sci-
ences Ed. The Macmillan Company, New York, 1932 vol. VIII, pág. 509/514.
2. Cf. Luis Recasens SICHES in Tratado general de filosofía del derecho, 6ª Ed. Por-
rua S. A., México, 1978, pág. 480/481.
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JUSTIÇA ECONÔMICA E SOCIAL
todos em afirmar que a justiça é um princípio de harmonia, de
igualdade proporcional e de reciprocidade, entre o que se dá e
se recebe, nas relações intersubjetivas de troca e nos processos
de distribuição de bens e direitos, entre os indivíduos entre si,
e o indivíduo e a coletividade, de modo a atribuir a cada um o
que é seu (“Justitia est constans et perpetua voluntas jus suum
cuique tribuere”), o que obviamente implica a adoção de crité-
rios de medida ou pautas de valoração que, quando aplicados
ao Direito e ao Estado qualificam-se como medida axiológica
destes últimos, conforme o tipo de relação jurídica de que se
cogita (distributiva, comutativa ou corretiva), entre as quais
se incluem as de conteúdo econômico.
Assim, a noção de justiça comporta clara distinção3 en-
tre a justiça comutativa – que tem por objeto as relações in-
tersubjetivas de troca e distribuição de bens e direitos entre
os indivíduos entre si que, dotados de igual dignidade, auto-
nomia e liberdade perante as leis e o Direito, e reconhecidos
como membros independentes e indispensáveis da sociedade
civil organizada no Estado, detêm bens e direitos próprios que
não podem ser confundidos entre si nem com o todo e, por-
tanto, determina o que é devido a cada indivíduo – e a justiça
3. Nesse sentido, Juan Carlos Cassagne ensina que: “A noção de justiça se integra
com três elementos: a) é uma relação de alteridade, ou seja, intersubjetiva, é dizer
que se orienta sempre a outra pessoa (só em sentido figurado se pode falar em fazer
justiça a si mesmo); b) o devido (o debitum) a outro e correlativamente, o direito que
tem esta pessoa a reclamar o que considera como seu; e c) a igualdade que, por se
constituir um elemento analógico pode apresentar-se em formas variadas. [...]. Pois
bem, toda parte pode ser considerada em um duplo aspecto: na relação de parte a
parte, ao qual corresponde, na vida social, à ordem de uma pessoa privada com a
outra, e esta ordem é regida pela justiça comutativa, consistente nas trocas que co-
mumente se realizam entre duas pessoas. Outro é o todo com respeito às partes, e a
esta relação se assemelha a ordem existente na comunidade e cada uma das pessoas
individuais; esta ordem é dirigida pela justiça distributiva, que reparte proporcio-
nalmente os bens comuns. Na justiça comutativa, a igualdade se estabelece de objeto
a objeto (salvo se a condição pessoal seja causa de reais distinções) enquanto que na
justiça distributiva, a igualdade que se realiza é proporcional à condição da pessoa e
às exigências do meio social. Quanto à repartição que se opera na justiça distributi-
va, há que ter em conta que a medida destas condições deve guardar proporção com
a qualidade, a aptidão ou a função de cada um dos membros do corpo social. (Juan
Carlos CASSAGNE in Los grandes principios del derecho público constitucional y
administrativo, Buenos Aires: Thomson Reuters/La Ley, 2015, pág. 190 e 192).

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