Legados da pandemia para o direito possessório: escopode proteção, vulnerabilidades, limites e despejos comexecução diferida

AutorGuilherme Allevato
Páginas59-96
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LEGADOS DA PANDEMIA PARA O DIREITO
POSSESSÓRIO: ESCOPO DE PROTEÇÃO,
VULNERABILIDADES, LIMITES E DESPEJOS COM
EXECUÇÃO DIFERIDA
Guilherme Cinti Allevato
SUMÁRIO: Introdução. 1. A trajetória do art. do RJET:
elaboração, veto, retomada e fim do prazo. 2. Necessidade de um
cobertor normativo mais longo: o legado por trás da crítica. 3.
Vulnerabilidades nas ocupações imobiliárias: a pandemia cobrou a
conta de um atraso histórico do Brasil com suas desigualdades
sociais. 4. Limitações ao direito de despejar: um olhar mais
humano sobre o possuidor. 5. Ordens de Desocupação com
Execução Diferida: um caminho para acomodar os legítimos
direitos do reivindicante e a dignidade dos ocupantes. 6. Conclusão.
Introdução
Era fevereiro no Brasil. Como numa espécie de rito anual,
nosso lugar eram as ruas inebriadas de folia e calor humano,
decoradas por confetes e serpentinas. Ninguém queria ficar em
casa, simplesmente olhando da janela; muito menos se isolar de
toda a festa. Assim, mais um carnaval arrebatava as multidões em
todo o país, do bondinho de Santa Teresa aos bonecos brincantes a
desfilar nas ladeiras de Olinda. Infelizmente, nos esquecíamos de
que, como dizia a canção, “todo carnaval tem seu fim”1.
1 CAMELO, Marcelo. Todo carn aval tem seu fim. In: LOS HERMANOS. Bloco
do Eu Sozinho. Rio de Janeiro: Abril Music, 2001. Faixa 1. Formato CD.
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Ninguém esperava que aquela quarta-feira pudesse ser tão
cinza a ponto de se perpetuar até o ano seguinte, sem hora para
acabar. O dia era 26 de fevereiro de 2020. Enquanto milhões de
foliões se despediam de uma das maiores festas populares do
planeta, em um hospital da capital paulista, vinha a público a
confirmação do primeiro caso de contaminação pelo novo
coronavírus no Brasil. Tal qual todo o mundo, o país nunca mais
seria o mesmo.
O número de infectados passou a crescer em escala
exponencial, ocasionando uma sobrecarga para o sistema de saúde
e até situações drásticas de falta de leitos. Máscaras de proteção,
distanciamento, isolamento social e álcool em gel tornaram-se
expressões do cotidiano para os brasileiros (conquanto não tenham
sido devidamente adotados por todos). À vista desse cenário e da
marcha desenfreada de propagação do vírus, o direito precisou dar
respostas rápidas. E, desse modo, em meio a todo um arcabouço de
normas excepcionais, no dia 12 de junho de 2020, entrou em vigor
a Lei nº 14.010/20, que instituiu o Regime Jurídico Emergencial e
Transitório das Relações Jurídicas de Direito Privado (RJET).
Todavia, em que pese o aludido diploma tenha sido cunhado
para atender aos desdobramentos críticos e excepcionais
produzidos pela pandemia, não se pode negar que, sob uma e outra
perspectiva, a Lei nº 14.010/20 deixa legados que podem ser
aproveitados para se (re)pensar institutos do ordenamento jurídico
pátrio, tanto em tempos de estabilidade, quanto no enfrentamento
de outros eventos extraordinários e com impactos globais tão ou
mais drásticos do que os produzidos pela COVID-19.
Isso ocorre porque, além de novos problemas e dilemas, a
pandemia escancarou falhas que se perpetuam há anos na estrutura
social brasileira, composta por uma população de pessoas
vulneráveis que ou simplesmente não são alcançadas pelo direito,
ou, em certos casos, são oprimidas pelas demandas movidas por
quem detém recursos financeiros e técnicos. Malgrado o
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reconhecimento de um direito seja legítimo, isso não confere ao
operador uma carta em branco para implementá-lo na realidade
social de qualquer maneira, muitas das vezes, atropelando valores
de escala constitucional.
Desta feita, o presente artigo tem por objetivo investigar os
aprendizados que a pandemia proporcionou ao direito brasileiro, a
partir do controverso e incompleto (porém necessário) art. 9º da Lei
14.010/20, com relação ao instituto da posse direta, mais
especificamente no que tange à execução, a tempo e modo
adequados, das ordens de despejo e desocupação de locatários de
imóveis urbanos.
Preliminarmente, a investigação analisará a turbulenta
trajetória que o art. 9º do RJET percorreu na estrutura legislativa do
país, desde a sua concepção, passando pelo veto do Presidente da
República, a derrubada do referido ato pelo Congresso Nacional e o
fim do prazo de suspensão previsto na norma. Na sequência, será
discutido o primeiro legado trazido pelo período da COVID-19,
que se revela através das cŕticas ao chamado “cobertor curto” da
norma, cuja suspensão alcança somente alguns casos pontuais de
despejos liminares previstos na Lei 8.245/91 (“Lei do
Inquilinato”).
O Capítulo subsequente traz a segunda herança do regime
especial pandêmico, que decorre de um olhar clínico sobre
vulnerabilidades historicamente consolidadas nas relações
imobiliárias brasileiras, ilustradas sob o prisma de dois casos
concretos ocorridos no ápice da COVID-19. Por ironia, o direito
tão conhecido por não socorrer aos que dormem (dormientibus
non sucurrit ius), no Brasil, também não acode aqueles que sequer
têm onde dormir. Ainda que nem todos o façam, o país foi
chamado a acordar, pois, enquanto o mundo inteiro clama para que
pessoas fiquem nas suas casas, milhares de brasileiros estão
simplesmente ao relento, sem teto.

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