Objeto do pagamento e sua prova

AutorBassil Dower, Nelson Godoy
Ocupação do AutorProfessor Universitário e Advogado em São Paulo
Páginas192-207

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14. 1 Objeto do pagamento

Toda obrigação tem em mira uma prestação, seja ela de dar, fazer ou não fazer alguma coisa. Tudo aquilo que foi pactuado, avençado entre o devedor e o credor é o objeto da prestação. Nada mais, nada menos. O credor não está obrigado a receber outra coisa a não ser aquilo que foi acordado, ainda que a coisa seja de maior valor. O art. 313 do CC dispõe, com muita

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clareza, a respeito, dizendo textualmente o seguinte: "O credor não é obrigado a receber prestação diversa da que lhe é devida, ainda que mais valiosa". Evidentemente, o credor pode receber parcialmente a dívida se desejar. Se o pagamento for parcial, por iniciativa do devedor e com a concordância do credor, é permitido. Não se há perder de vista, então, o princípio do art. 314 do CC, in verbis:

"Ainda que a obrigação tenha por objeto prestação divisível, não pode o credor ser obrigado a receber, nem o devedor a pagar, por partes, se assim não se ajustou".

Essa tomada de posição do nosso legislador é para preservar a segurança jurídica dos negócios. Por isso, o pagamento deve coincidir com a coisa devida e o devedor só se libera da obrigação quando pagar integralmente o débito, não se esquecendo de que o pagamento é forma de extinção da obrigação.

14. 2 Estipulação de pagamento em dinheiro

Se a prestação da obrigação for de entregar dinheiro, as dívidas deverão ser pagas no vencimento em moeda corrente e pelo valor nominal (CC, art. 315). "São nulas - dispõe o art. 318 do CC - as convenções de pagamento em ouro ou em moeda estrangeira, bem como para compensar a diferença entre o valor desta e o da moeda nacional, excetuados os casos previstos na legislação especial".

Já o Decreto-lei 857, de 1.969 dispunha, no seu art. 1º, o seguinte: São nulos de pleno direito os contratos, títulos e quaisquer documentos, bem como as obrigações que, exeqüíveis no Brasil, estipulem pagamento em ouro, em moeda estrangeira, ou, por alguma forma, restrinjam ou recusem, nos seus efeitos, o curso legal do dinheiro.

Não se podendo utilizar da referida estipulação e para fugir dos efeitos da inflação, surgiu a cláusula de escala móvel. "É lícito convencionar o aumento progressivo de prestações sucessivas" (CC, art. 316).

A cláusula de escala móvel - explica Sílvio Rodrigues - é aquela que faz variar a prestação do devedor segundo os índices de custo de vida ou segundo os preços de determinadas mercadorias.144

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14. 3 Da alteração do objeto da prestação pelo juiz

O juiz pode corrigir a manifesta desproporção das prestações. "Quando, por motivos imprevisíveis, - diz o art. 317 do CC - sobrevier desproporção manifesta entre o valor da prestação devida e o do momento de sua execução, poderá o juiz corrigi-lo, a pedido da parte, de modo que assegure, quanto possível, o valor real da prestação"145. Nessa condição, é comum o seguinte aresto: "Justifica-se a aplicação da teoria da imprevisão quando a execução do contrato por parte do arrendatário, por motivo superveniente e imprevisível, a torne excessivamente onerosa" (in RT 793/349). Outro aresto: "No contrato de arrendamento mercantil incide o Código de Defesa do Consumidor. É direito básico do consumidor, garantido pré-contratualmente por força de expressa previsão legal (art. 6º, V, do CDC), a possibilidade dele vir a postular a revisão da cláusula contratual que entenda onerosa. Em homenagem a tal direito, não se pode fechar as portas do Judiciário ao consumidor, sob o argumento do princípio pacta sunt servanda146 que haverá de ser sopesado na ação principal" (in RT 768/270). Ainda: "A teoria da imprevisão somente se aplica quando ocorrerem acontecimentos extraordinários e imprevisíveis capazes de alterar o equilíbrio contratual, não se enquadrando nessa hipótese, entretanto, a desvalorização imobiliária" (in RT 757/235).

14. 4 Prova do pagamento

Escrevemos em nosso "Curso Básico de Direito Processual Civil", vol. 2, pág. 164, o seguinte: O juiz só pode julgar com a prova dos autos, nunca sem ou contra ela. Através da prova, o juiz cumpre a sua função judicante e prolata a sentença. Sentença vem de sentir. O juiz sente o processo, contemplando a situação através das provas.

As provas não se destinam diretamente ao juiz; o destinatário das provas é o processo. O juiz as examinará e as avaliará, pois ele é o destinatário

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indireto das provas. Nessa condição, o juiz não é, apenas, juiz do feito; é também da prova por ter o legislador conferido a ele poderes de livre investigação, dando-lhe até o poder discricionário para a requisição de informações e documentos.

Quem paga tem direito a quitação. É o que dita textualmente o art. 319 do CC, assim redigido:

"O devedor que paga tem direito a quitação regular, e pode reter o pagamento, enquanto não lhe seja dada".

Significa que, sem a quitação regular, não há prova de pagamento. Note-se que a "quitação regular" referida no art. 319 do novo Código Civil engloba a quitação dada por meios eletrônicos ou por quaisquer formas de "comunicação a distância", assim entendida aquela que permite ajustar negócios jurídicos e praticar atos jurídicos sem a presença corpórea simultânea das partes ou de seus representantes (enunciado n. 18 da I Jornada CJF).

É evidente que, recusando o credor a fornecer a quitação, o devedor não deve efetuar o pagamento. Deve, isto sim, ingressar em juízo com a ação de consignação em pagamento147. Esta, julgada procedente, torna o depósito então realizado, válido como pagamento, ou seja, "a dívida ficará quitada pela sentença".

Chama-se quitação todo ato pelo qual o credor ou seu representante atesta o pagamento. A palavra quitação vem do latim quietare, que significa deixar tranqüilo, aquietar. Juridicamente, significa o ato pelo qual o credor reconhece ter recebido o seu crédito. Se o pagamento foi feito em dinheiro, a lei exige que se faça a quitação por escrito. O artigo 320 do Código Civil revela-nos esta forma especial:

"A quitação, que sempre poderá ser dada por instrumento particular, designará o valor e a espécie da dívida quitada, o nome do devedor, ou quem por este pagou, o tempo e lugar do pagamento, com a assinatura do credor, ou do seu representante".

Parágrafo único. "Ainda sem os requisitos estabelecidos neste artigo valerá a quitação, se de seus termos ou das circunstâncias resultar haver sido paga a dívida".

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A quitação é um negócio jurídico e a lei impõe forma especial para o efeito liberatório. A forma escrita por instrumento particular é da sua substância, ou seja, o ato existe, uma vez respeitada a forma. Se não se revestir da forma estabelecida em lei, o ato é nulo (CC, art. 166, IV). Se a lei impõe a forma escrita, com os requisitos previstos no artigo acima transcrito, como da substância do ato, este não poderá ser provado senão pelo próprio escrito.

A quitação passada de forma regular será, pois, a prova hábil de que se servirá o devedor quando precisar provar em juízo o pagamento em dinheiro. Esse escrito ou instrumento pelo qual o devedor se serve para comprovar a quitação, chama-se recibo.

O Código de Processo Civil, que avocou para si toda a regulamentação geral do instituto da prova, ao tratar do pagamento em seu artigo 403, dispõe o seguinte:

"As normas estabelecidas nos dois artigos antecedentes aplicam-se ao pagamento e à remissão da dívida".

Os artigos anteriores, por sua vez, dispõem o seguinte:

Art. 401. "A prova exclusivamente testemunhal só se admite nos contratos cujo valor não exceda o décuplo do maior salário mínimo vigente do país, ao tempo em que foram celebrados".

Art. 402. "Qualquer que seja o valor do contrato, é admissível a prova testemunhal, quando:

I - houver começo de prova por escrito, reputando-se tal o documento emanado da parte contra quem se pretende utilizar o documento como prova;

II - o credor não pode ou não podia, moral ou materialmente, obter a prova escrita da obrigação, em caso como o de parentesco, depósito necessário ou hospedagem em hotel".

O juiz só admitirá a prova exclusivamente testemunhal, se o valor do fato probante for inferior a dez vezes o salário mínimo vigente no país ao tempo do pagamento. A admissão da prova testemunhal, quando houver começo de prova por escrito ou quando o credor não pode ou não podia, moral ou materialmente, obter a quitação regular, é subsidiária, complementar. Se alguém, por exemplo, escreve um bilhete, na presença de testemunhas, declarando a extinção da dívida, a prova testemunhal será admitida como complemento da prova escrita.

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Deve-se levar, também, em conta a natureza das relações entre as partes. "O recibo é o documento idôneo para comprovar o pagamento das obrigações de dar e fazer, escreve Sílvio de Salvo Venosa. E continua: "Nas obrigações de não fazer, o ônus da prova é do credor, que deve evidenciar se foi praticado o ato ou os atos".148

Em suma, quem paga além da taxa legal sem exigir o recibo de quitação passado regularmente (art. 320), ou nenhum documento por escrito, ou ainda, obtém um documento qualquer por escrito sem a presença de testemunhas, estará sujeito a pagar novamente ("quem paga mal, paga duas vezes"); se o pagamento for inferior à taxa legal e não existir testemunhas, a situação será a mesma.

Pelo fato do recibo...

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