O passo em falso do legislador com relação à consolidação processual e substancial

AutorMaria Isabel Fontana
Ocupação do AutorMestre em Direito Comercial pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, LL.M em Commercial and Corporate Law pela Queen Mary University of London, Doutoranda em Direito Comercial pela Universidade de São Paulo
Páginas91-109
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O PASSO EM FALSO DO LEGISLADOR
COM RELAÇÃO À CONSOLIDAÇÃO
PROCESSUAL E SUBSTANCIAL
Maria Isabel Fontana
Mestre em Direito Comercial pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo,
LL.M em Commercial and Corporate Law pela Queen Mary University of London,
Doutoranda em Direito Comercial pela Universidade de São Paulo. Diretora Jurídica
da Excelia Consultoria e Negócios. Advogada em Turnaround e Administradora Judicial.
Sumário: 1. Do objeto deste artigo. 2. Personalidade jurídica das sociedades pertencentes
a grupos: o descompasso entre teoria e prática. 3. O que sofremos até agora: a evolução de
entendimentos sobre consolidação processual e substancial. 3.1 Sobre a já consagrada con-
solidação processual. 3.2 O eterno problema da consolidação substancial. 4. O que vamos
sofrer com as alterações da Lei 11.101/2005 quanto à consolidação processual e substancial.
5. Conclusão. 6. Referências.
1. DO OBJETO DESTE ARTIGO
Até a entrada em vigor da Lei 14.112/2020 para alteração da Lei 11.101/2005 (LFR), o
ordenamento jurídico era completamente omisso com relação à recuperação judicial ou extra-
judicial de grupos de sociedades1. Tal lacuna fez com que a comunidade jurídica atravessasse
um longo caminho no escuro até que a doutrina e a jurisprudência começassem a iluminá-lo.
Os conceitos estrangeiros de consolidação processual e substancial passaram a ser
adotados pouco a pouco e, ao menos nas varas e câmaras especializadas do país, foi sendo
f‌irmado o entendimento de que o deferimento em conjunto do pedido de recuperação
judicial de sociedades pertencentes a grupos (consolidação processual) não acarreta, em
regra, o tratamento unif‌icado de ativos e passivos (consolidação substancial).
Muito embora não se ignore que a consolidação silenciosa2 ainda esteja presente em
grande parte dos processos envolvendo grupos de sociedades, a doutrina e a jurispru-
1. Para Nelson Eizirik: “O grupo de sociedades constitui uma técnica de concentração empresarial.
mediante a qual duas ou mais sociedades, sendo uma dominante e as demais dominadas, unem-se sob uma mesma
direção para alcançar objetivos comuns” (In: A Lei das S/A comentada. v. II. São Paulo: Quartier Latin, 2011, p.
217-218).
2. Termo extraído do artigo de Sheila Cerezetti e Francisco Satiro, contendo resultado de pesquisa de jurimetria,
em que se constatou que em grande parte das recuperações judiciais de grupos de sociedades, a consolidação
substancial decorre automaticamente da consolidação processual, sem qualquer questionamento, ou seja, de
forma silenciosa. “A silenciosa ‘consolidação’ da consolidação substancial. Resultados de pesquisa empírica sobre
recuperação judicial de grupos empresariais”. Revista do Advogado. n. 131. Out. 2016, p. 216-223.
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dência mais atualizadas vêm lutando para que a consolidação substancial seja adotada
em caráter excepcional, seja de ofício (consolidação obrigatória) ou por deliberação
assemblear (consolidação voluntária).
Quando f‌inalmente o Brasil tem a oportunidade de def‌inir na LFR o tratamento
adequado a ser conferido aos processos de insolvência de grupos societários, infelizmente
demos um passo em falso: uma evolução com relação às previsões sobre consolidação
processual e um retrocesso com relação à consolidação substancial.
Como será abordado neste artigo, apesar de louvável o esforço do legislador em
f‌inalmente prever um sistema de processamento e tratamento de recuperações judiciais
de grupos, a nova redação da LFR, em especial em razão do art. 69-J, escancara a porta
para utilização da consolidação substancial como regra, em total desrespeito à persona-
lidade jurídica de cada sociedade pertencente ao grupo.3
Antes que se faça uma análise crítica à nova previsão legal, esse artigo visa a con-
textualizar a questão. Na realidade, há tempos a personalidade jurídica das sociedades
pertencentes a grupos passa por uma crise, mesmo porque, exigir autonomia total de
tais sociedades parece ser incompatível com a realidade4.
Primeiramente o artigo abordará a dissonância entre a realidade empresarial dos
grupos e a exigência legal de autonomia das sociedades a eles pertencentes. Após, recor-
dar-se-á a evolução de entendimentos doutrinários e jurisprudenciais sobre tratamento
de recuperação judicial de grupos até a entrada em vigor da Lei 14.112/20 e, f‌inalmente,
será feita uma análise artigo por artigo na nova redação da LFR.
2. PERSONALIDADE JURÍDICA DAS SOCIEDADES PERTENCENTES A GRUPOS:
O DESCOMPASSO ENTRE TEORIA E PR ÁTICA
Não é de hoje que quem atua em direito empresarial se depara com problemas
oriundos da dissonância entre teoria e prática com relação à personalidade jurídica das
empresas pertencentes a grupos societários.
Seja em razão do frequente desrespeito à previsão legal contida no artigo 266 da
Lei das Sociedades Anônimas (LSA), seja por causa do tratamento inadequado confe-
rido pelo legislador aos grupos ao exigir uma utópica autonomia das sociedades que
os compõem, a comunidade jurídica enfrenta graves obstáculos de natureza societária,
processual e material que eclodem quando os grupos se encontram em recuperação
judicial ou extrajudicial.5
3. O que, como é cediço, é exigido pelo artigo 266 da Lei das Sociedades Anônimas (LSA):
Art. 266 LSA “As relações entre as sociedades, a estrutura administrativa do grupo e a coordenação ou subordinação
dos administradores das sociedades f‌iliadas serão estabelecidas na convenção do grupo, mas cada sociedade
conservará personalidade e patrimônios distintos.”
4. Nesse sentido: TEPEDINO, Gustavo e POPPA, Bruno. A Crise da Pessoa Jurídica. Direito Empresarial: Estudos
jurídicos em homenagem à Maria Salgado. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2019, p. 29-50.
5. Nesse sentido o artigo divisor de águas sobre o tema é de Sheila Cerezetti Neder, Grupos de sociedades e recuperação
judicial: o indispensável encontro entre Direitos Societário, Processual e Concursal. In: YARSHELL, Flávio Luiz
e PEREIRA, Guilherme Setoguti J. (Coord.). Processo Societário II. São Paulo: Quartier Latin, 2015.

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