É possível mitigar a capacidade e a autonomia da pessoa com deficiência para a prática de atos patrimoniais e existenciais?
Autor | Aline de Miranda Valverde Terra e Ana Carolina Brochado Teixeira |
Páginas | 29-48 |
É POSSÍVEL MITIGAR A CAPACIDADE
E A AUTONOMIA DA PESSOA COM
DEFICIÊNCIA PARA A PRÁTICA DE ATOS
PATRIMONIAIS E EXISTENCIAIS?
Aline de Miranda Valverde Terra
Ana Carolina Brochado Teixeira
“Consentir equivale a ser.”1
Sumário: 1. O modelo médico da deciência e o regime abstrato e excludente das incapacidades da
pessoa com deciência no código civil de 2002 – 2. O modelo social da deciência e o novo regime
das incapacidades das pessoas com deciência introduzido pelo estatuto da pessoa com deciência,
a partir da convenção sobre os direitos da pessoa com deciência – 3. Possibilidade de restringir a
capacidade e a autonomia das pessoas com deciência para a prática de atos patrimoniais e exis-
tenciais – 4. Conclusão.
1. O MODELO MÉDICO DA DEFICIÊNCIA E O REGIME ABSTRATO E
EXCLUDENTE DAS INCAPACIDADES DA PESSOA COM DEFICIÊNCIA NO
CÓDIGO CIVIL DE 2002
No Brasil, como em todo o mundo, o conceito de deciência vem passando por
profundas transformações a m de acompanhar as inovações na área da saúde, bem
como a forma pela qual a sociedade se relaciona com a parcela da população que apre-
senta algum tipo de deciência.
Na Antiguidade, vigia o modelo moral de deciência, por meio do qual se buscava
uma justicativa religiosa para a deciência, que transformava a pessoa em alguém
improdutiva, alguém a ser tolerada pela família e pela sociedade.2 Essa ideologia foi
sucedida pelo modelo médico de incapacidade, que considerava somente a patologia
física e o sintoma associado que dava origem a uma incapacidade. Esse modelo foi ado-
tado pelo Código Civil de 1916 e reproduzido no Código Civil de 2002, que estabeleceu
1. RODOTÀ, Stefano. Dal soggetto alla persona. Napoli: Editoriale Scientica, 2007, item 5.
2. PALACIOS, Augustina. El modelo social de discapacidad: origenes, caracterización y plasmación em la Con-
vención Internacional sobre los Derechos de las Personas con discapacidad. Ceri. Madrid: Cinca, 2008, p. 37.
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ALINE DE MIRANDA VALVERDE TERRA E ANA CAROLINA BROCHADO TEIXEIRA
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disciplina abstrata das incapacidades baseada no sistema de tudo ou nada:3 a pessoa com
deciência mental, que não tivesse o necessário discernimento para a prática dos atos
civis, seria considerada absolutamente incapaz, sendo-lhe negado o exercício autônomo
de qualquer ato da vida civil; fazia-se imperioso um representante para, em seu lugar,
manifestar a vontade necessária à prática de referidos atos. A vontade do representante,
portanto, substituía inteiramente a vontade da pessoa com deciência. Se, no entanto,
a pessoa com deciência mental ostentasse discernimento reduzido, seria considerada
relativamente incapaz, e a validade de sua manifestação de vontade vinculava-se à con-
junta manifestação de vontade de seu assistente. Para os atos da vida civil, de maneira
geral, exigia-se também a manifestação do assistente.
O modelo médico acabou por negar a inúmeras pessoas com deciência, sujeitos
de direito, em primeiro lugar, o exercício de parcela de autonomia relativa a atos que
teriam plenas condições de exercer livremente, a revelar um regime excludente, que
retira da pessoa com deciência a possibilidade de decidir mesmo sobre os atos mais
prosaicos da vida. Embora absoluta ou relativamente incapaz, a pessoa com deciência
raramente será desprovida de qualquer possibilidade de manifestação de vontade au-
tônoma, sendo necessário assegurar-lhe espaços de liberdade dentro dos quais possa
exercer sua autonomia, por menor e mais singela que seja.
Além disso, e ainda mais grave, o sistema das incapacidades codicado permitia,
como regra, a dissociação entre titularidade e exercício também dos direitos inerentes à
pessoa humana. Em um sistema abstrato, do tudo ou nada, isso acaba por impedir que a
pessoa com deciência pratique todo e qualquer ato ligado diretamente à realização do
seu projeto de vida e ao livre desenvolvimento de sua personalidade. E mais, no extremo,
semelhante modelo pode mesmo permitir que lhes seja negada a própria qualidade de
pessoa humana: a dissociação abstrata e absoluta entre titularidade e exercício de direitos
inerentes à pessoa humana acaba, na prática, por promover a própria desconsideração
das titularidades, fomentando um processo de reicação da pessoa com deciência.
No Brasil, o exemplo mais emblemático e chocante desse fenômeno de reicação
da pessoa com deciência a partir da própria negação da titularidade de direitos ine-
rentes à pessoa humana se passou no Hospital Colônia de Barbacena, fundado em 12 de
outubro de 1903. O Hospital Colônia de Barbacena se tornou conhecido pelo público
na década de 1980, em razão do tratamento desumano que oferecia aos pacientes, aos
quais eram negados os mais básicos direitos inerentes à pessoa humana. O psiquiatra
italiano Franco Basaglia, pioneiro na luta antimanicomial na Itália, esteve no Brasil e
conheceu o Hospital Colônia em 1979. Na ocasião, em uma coletiva de imprensa, desa-
3. Em crítica ao regime das incapacidades do Código Civil de 2002, armam Anderson Schreiber e Ana Luiza
Nevares: “Manteve-se um regime unitário que reúne todas as incapacidades sob o mesmo rótulo sempre sob
a lógica do ‘tudo ou nada’. Quem é incapaz o é para todos os atos da vida civil, expressão que abrange desde a
doação de um imóvel à compra de um refrigerante” (SCHREIBER, Anderson; NEVARES, Ana Luiza Maia. Do
sujeito à pessoa: uma análise da incapacidade. In: TEPEDINO, Gustavo; TEIXEIRA, Ana Carolina Brochado;
ALMEIDA JÚNIOR, Vitor (Coord.). O Direito Civil entre o Sujeito e a Pessoa: estudos em homenagem ao Pro-
fessor Stefano Rodotà. Belo Horizonte: Fórum, 2016, p. 42).
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